📖 Capítulo 8 – A Responsa
Narrado por Kael
O morro não dorme depois de tiros. O silêncio vira ruído, e a paz é só uma pausa entre dois estouros. A madrugada carregava cheiro de pólvora, fumaça que subia preguiçosa e um vento que parecia sussurrar: “fica atento”. Cada beco, cada viela, cada sombra tinha olhos. Ouvi passos, senti olhares, o rádio não parava. Vozes sussurradas, códigos trocados, nomes repetidos como se fossem moedas. Tudo indicava que a tentativa de invasão não fora apenas ousada — fora pessoal. Alguém queria testar meu controle, medir minha reação, encontrar meu ponto fraco.
Fiquei na laje central, imóvel, olhando a cidade lá embaixo. As luzes brilhavam como se nada tivesse acontecido. Como se não houvesse sangue secando no chão da viela três. Como se eu não tivesse quase perdido ela.
Olivia.
A lembrança do rosto dela naquela cozinha, ainda tremendo, mas firme, pedindo pra ficar… não saía da minha cabeça. A escolha dela tinha mudado tudo. Ela queria entender, queria participar de algo que ela não tinha ideia do peso. Queria enxergar de perto o mundo que eu aprendi a controlar com violência, estratégia e medo. E agora, o fato de ela estar ali significava que não podia mais fingir que era tudo só meu.
NK chegou correndo, ofegante, ainda sentindo o peso da corrida e da tensão.
— Eles recuaram por enquanto, chefe — falou baixo, conferindo cada canto antes de continuar. — Os caras estavam preparados. Sabiam exatamente onde mirar. Isso não foi acidente, foi aviso.
Segurei a mandíbula, cerrando os punhos com força.
— Alguém falou demais — falei, com a voz carregada de frieza. — Traição.
— Quer que eu vá atrás? — NK perguntou, firme, já pronto pra qualquer corre.
— Ainda não. Primeiro a gente acalma o bonde, segura o território. Depois a gente caça o traidor. Quem vacilar já sabe o preço. — Minha voz era dura, mas carregava o peso de anos de sobrevivência e estratégia. Cada palavra era cálculo, cada pausa era ameaça não dita.
NK assentiu, mas percebeu o que eu não falava. O que estava claro apenas pra mim. Olivia.
— E a menina? — Zoio, da base atrás de mim, cortou a conversa, voz firme. — E se ela for problema?
Virei devagar. Olhei pra todos e vi nos olhos deles uma mistura de dúvida, preocupação e lealdade. Cada um sabia que a escolha de proteger alguém de fora não era simples. Não era seguro. Mas também sabiam que eu não aceitava interferência.
— A Olivia não é problema de vocês — falei firme. — É responsabilidade minha.
O silêncio que caiu depois disso pesava mais que qualquer barulho da rua. Um silêncio que dizia: “entendi, mas estamos atentos”.
Zoio cruzou os braços, desafiador, mas havia uma pontada de compreensão.
— E se essa responsa pesar, chefe? Não é pouca coisa colocar alguém que não é daqui no meio dessa guerra.
— Eu sei o que tô fazendo — respondi, firme. — E se alguém mexer com ela, vai ter que passar por mim antes.
Olivia não nasceu pra isso. Não merecia esse mundo. Mas agora que ela viu, que sentiu, que escolheu ficar… eu estava preso também. Cada passo dela perto de mim tornava mais difícil manter a frieza que me trouxe até aqui. Aquele toque de humanidade que ela despertava era ao mesmo tempo um perigo e um alívio.
— Sentimento demais no morro — comecei, olhando para eles — pode ser fraqueza. Pode ser sentença.
Foi quando a porta rangeu, e Olivia surgiu com o rosto iluminado pela luz fraca da lâmpada, meio tímida, meio desafiadora.
— E se fraqueza for coragem? — perguntou, com uma voz firme que me fez levantar uma sobrancelha.
O silêncio caiu. NK trocou um olhar comigo, e por um instante, houve um leve sorriso, quase de alívio. Talvez fosse coragem dela, talvez fosse teimosia, mas aquilo fazia tudo parecer menos pesado.
— Pode ser — respondi, e senti que a carga da responsabilidade ficava um pouco mais leve. Mas sabia que havia muito fogo pra apagar, e que proteger o morro era só o começo. Proteger alguém como Olivia… isso era novo. E perigoso.
Ela caminhou até mim, hesitante, sentindo a tensão no ar, mas decidida.
— Quero entender — disse baixinho. — Quero ajudar de algum jeito. Não posso ficar parada.
Eu respirei fundo. A realidade batia forte: ela podia tentar, mas esse mundo não tem espaço para hesitação. Um erro e tudo que ela conhecia podia acabar.
— Vai aprender, mas do meu jeito — falei firme. — Cada passo teu aqui, cada palavra, cada olhar… tem que ter cuidado. A favela não perdoa.
Ela assentiu, e pela primeira vez eu vi no rosto dela uma mistura de determinação e medo controlado.
Passamos a madrugada planejando, conversando baixinho, observando cada movimento. Eu explicava rotas, quem evitar, quais sinais significavam que a situação ia explodir de novo. Cada detalhe era uma lição de sobrevivência, cada instrução, um ato de confiança.
E entre uma ordem e outra, ela falava pouco, mas o olhar acompanhava cada gesto meu, absorvendo o mundo que eu construí com regras, medo e controle. Era estranho ter alguém assim tão perto, alguém que não devia estar ali, mas que tinha escolhido estar.
No primeiro raio de sol, quando a madrugada finalmente cedeu lugar ao alvorecer, eu senti algo que não sentia há muito tempo: a possibilidade de confiar. E confiar não era fraqueza — era escolha.
Escolher Olivia significava que eu estava disposto a dividir mais do que território ou poder. Significava que ela podia ver quem eu realmente era. E se alguém ousasse cruzar essa linha, saberia que estava mexendo com mais do que um líder. Estava mexendo com a minha vida inteira.
E eu não podia falhar. Porque falhar agora não era só perder território — era perder quem tinha escolhido ficar.
— Bora — disse, finalmente, me levantando e passando o braço levemente por trás dela. — Hoje o morro precisa de atenção, mas você fica comigo. Cada passo, cada olhar, cada movimento. Não me deixa na mão.
Ela assentiu. Um passo atrás do outro, e o mundo lá fora parecia menor, mas mais ameaçador. Entre nós, havia tensão, cuidado e a estranha sensação de pertencimento. A responsabilidade tinha nome agora: Olivia. E eu faria de tudo para que ela tivesse chance de escolher de novo. Porque ali, entre fogo e silêncio, entre tiros e olhares, era dela também a responsabilidade de viver — mas comigo ao lado.
E naquela madrugada, percebi: proteger o morro eu já sabia. Proteger alguém como ela… isso seria a minha maior batalha.