Segredo

1035 Palavras
Lara cresceu no morro, conhecendo todos os becos e vielas como as linhas de sua própria mão. Matheus e Elias sempre foram figuras conhecidas em sua vida. Desde crianças, cruzaram caminhos no campo de terra improvisado que servia de futebol nos fins de tarde ou nas brincadeiras entre as crianças do lugar. Mesmo com as mudanças que vieram com o tempo, Lara nunca perdeu a lembrança das risadas da infância. Apesar de estarem no mesmo morro e dividirem o mesmo espaço, ela e os dois amigos nunca foram próximos demais. Lara era daquelas que mantinha distância das confusões, sempre focada em ajudar a mãe com os afazeres de casa e na escola. Com o tempo, as diferenças entre Matheus e Elias começaram a ficar claras. Matheus sempre demonstrou respeito não só por Lara, mas por todos no morro. Quando começaram a ascender no movimento, ele nunca deixava de cumprimentá-la quando passava pela padaria ou pela ladeira onde ela subia com as sacolas de compras. Ele era justo em suas ações, mesmo no poder. Aos olhos de Lara, ele havia mudado muito pouco em relação ao garoto de infância: talvez mais sério, mais calejado pela vida no morro, mas ainda o mesmo Matheuzinho que, quando criança, ajudava os mulekes menores no futebol. Havia uma genuinidade nele que ela apreciava, mesmo sem querer admitir isso para si mesma. Elias, por outro lado, sempre foi diferente. Onde Matheus tinha carisma, Elias tinha arrogância. Ele nunca se importou em medir palavras ou atos, e isso ficava claro cada vez mais com o passar dos anos. Ele era imprevisível, muitas vezes irritante, e tinha uma postura que incomodava Lara profundamente. Mesmo assim, ela sabia manter distância dele, respondendo com polidez às investidas ou insinuações. Para Lara, Elias sempre foi mais uma lembrança do que o poder podia fazer com as pessoas do morro. Mas o que Lara não sabia era que o caminho entre os três estava prestes a se cruzar de forma ainda mais intensa. Matheus chegou à casa de Zé Preto com passos apressados e o coração inquieto. A notícia de que o homem não estava bem o havia deixado em alerta. A casa simples exalava silêncio, quebrado apenas pela respiração pesada de Zé, que descansava em sua rede na sala. O câncer avançava rápido, deixando evidente a luta desigual que Zé enfrentava. Mesmo assim, seus olhos tinham o mesmo brilho determinado de sempre. Ele gesticulou com a mão trêmula, chamando Matheus para se aproximar. — Senta aqui, moleque. Tenho algo pra te falar. Algo que vai ficar só entre nós dois. Matheus puxou uma cadeira e se sentou ao lado dele. O olhar de Zé era sério, carregado de um peso que parecia maior do que sua doença. — Fala, chefe. Eu tô ouvindo. Zé suspirou fundo antes de começar a falar, a voz baixa, mas firme. Suas palavras eram pausadas, cada frase carregada de significados que Matheus ainda estava tentando absorver. O que ele disse foi suficiente para deixar Matheus sem palavras. Quando terminou, Zé olhou para ele com expectativa, como se buscasse alguma garantia. — Isso morre aqui — disse Zé. — É só entre nós dois. Faz a minha vontade. Matheus assentiu lentamente. — Eu vou cuidar disso, chefe. Pode contar comigo. Zé pareceu relaxar, como se um peso enorme tivesse saído de seus ombros. — Sabia que podia confiar em você, moleque. Você nasceu pra isso. Matheus ficou ali por mais alguns minutos, em silêncio, refletindo sobre o que acabara de ouvir. Quando saiu da casa, o sol parecia mais forte do que nunca, mas dentro dele, um novo peso agora residia. Matheus sabia que o segredo compartilhado naquela tarde mudaria o futuro — não só do morro, mas também o dele. Matheus desceu a ladeira em passos firmes, mas sua mente estava longe dali. O que Zé Preto lhe confiara pesava como chumbo em seus ombros. O morro parecia o mesmo de sempre, com crianças correndo descalças, mulheres estendendo roupas e os vapores atentos aos movimentos. Porém, para ele, algo havia mudado. Chegando à boca principal, Matheus encontrou Elias em seu lugar habitual, observando a movimentação do alto, como quem controla tudo. Elias tinha aquele sorriso cheio de confiança, mas que, aos poucos, começava a soar diferente para Matheus. — E aí, Matheuzinho? Tá com cara de quem viu coisa r**m — brincou Elias, acendendo um cigarro. Matheus o olhou por um instante antes de responder, forçando um sorriso. — Coisa r**m é ter que resolver problema de vacilão. Mas tá tranquilo, tá tudo no esquema. Elias riu, jogando fumaça para o lado. — Nada que o chefe do morro não segure, né? Agora você é a lenda, meu irmão. Matheus desviou o olhar, incomodado com a forma como Elias o exaltava. Ainda que fossem amigos de infância, ele sabia que uma linha tênue separava admiração de inveja. — Vou lá resolver umas pendências. Me espera pra reunião de mais tarde — disse Matheus, se afastando antes que Elias pudesse perguntar mais. Nos dias seguintes, Matheus começou a observar tudo ao seu redor com mais atenção, principalmente Elias. Ainda era difícil digerir o peso do segredo confiado por Zé Preto. Como líder, ele sabia que não podia vacilar, mas também não queria alimentar paranoias desnecessárias. Mesmo assim, pequenos detalhes começaram a chamá-lo a atenção: os comentários de Elias nas reuniões, o olhar dele para os moradores, e o jeito como parecia agir como se já fosse o dono do lugar. Elias não apenas se colocava como braço direito; ele queria mais. Enquanto isso, a rotina de Lara seguia entre a padaria e os afazeres em casa. Ela notava o movimento crescente no morro e, mesmo sem se envolver, sabia que as mudanças no comando estavam criando tensões. Certa tarde, enquanto organizava o balcão, ouviu as conversas de dois clientes que entraram apressados. — O Elias tá achando que é o dono do morro. Tá até discutindo ordem do Matheus. — Esse aí nunca foi de respeito. Quem salvava era o Zé, mas agora tá complicado. Lara fingiu não ouvir, mas os comentários ficaram em sua mente. Embora procurasse manter distância, seu caminho estava prestes a se cruzar novamente com os dois líderes.
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