A manhã começou silenciosa demais.
O céu estava limpo, mas havia um ar denso na cidade. Como se o calor não viesse do clima — mas de algo prestes a explodir.
Noah estava na universidade, tentando retomar a rotina. Mesmo com os acessos acadêmicos ainda parcialmente bloqueados, ele insistia em frequentar o laboratório. Precisava mostrar que estava ali. Firme.
Mas bastou uma mensagem para quebrar o equilíbrio precário do dia:
📲 "Tem algo na sua vaga do estacionamento." — enviada por um colega de curso.
Ele estranhou. Pegou o crachá e saiu do prédio em passos rápidos.
Ao chegar no pátio, o mundo pareceu parar por um segundo.
O para-brisa da moto estava destruído. O tanque arranhado com força. E uma palavra riscada com algo pontiagudo no assento de couro: “TRAIDOR.”
O estômago de Noah revirou.
Não havia dúvida.
Não era um roubo.
Não era vandalismo aleatório.
Era aviso.
Era Leonardo.
O coração batia forte, mas ele se manteve calmo. Tirou fotos. Respirou fundo. E ligou para Atena.
— Você tá segura? — foi a primeira pergunta.
— Sim. Por quê? O que aconteceu?
Ele contou. Ela não respondeu de imediato. Depois apenas disse:
— Começou.
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Enquanto isso, em outro ponto da cidade, Letícia Ferreira digitava com atenção máxima em sua sala abafada de redação. A matéria estava quase pronta: datas, testemunhos, histórico de denúncias encobertas, o áudio de Lorena — tudo organizado, verificado, cruzado. Uma bomba prestes a ser lançada.
Mas ela também sabia o risco. E por isso, agia com cautela.
> "Antes de ser justiça, é guerra."
Ela recebera um e-mail anônimo naquela manhã.
📧 “Cuidado com quem você entrevista. Alguns nomes somem da lista mais rápido do que você publica. Só uma dica.”
Ela leu. Sorriu com desdém.
E respondeu com uma frase simples:
> “Então corre. Porque essa bomba já tá com o pavio aceso.”
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Naquela noite, Atena e Noah estavam juntos no apartamento dela. Ela trancava as janelas com mais firmeza, verificava trincos, conferia as luzes. Ele observava tudo, sem interferir. Sabia que ela precisava controlar o que ainda podia.
— Isso é só o começo — disse ela, sentando no chão da sala.
— E a gente já tá no meio. — respondeu ele, sentando ao lado.
— Eu tô com medo.
— Eu também.
Ela encostou a cabeça no ombro dele. E pela primeira vez, sussurrou algo que não esperava dizer:
— Obrigada por não ir embora.
Ele virou o rosto, encarando-a de lado.
— E você... obrigada por confiar.
Eles ficaram assim. Sem beijos. Sem promessas. Só o calor entre dois sobreviventes que sabiam que o pior ainda não tinha nome.
Mas quando a madrugada caiu, e as ruas se calaram, alguém parou diante do prédio deles.
Vestia um capuz. Carregava um envelope pardo.
Colocou-o discretamente na portaria. E sumiu nas sombras.
> Dentro do envelope: uma foto da mãe de Noah saindo da clínica onde trabalhava.
Atrás da foto, uma frase rabiscada com caneta vermelha:
"Você sabe o que eu posso fazer. Não me teste."
A foto estava sobre a mesa.
A mãe de Noah, sorrindo levemente enquanto saía do trabalho, envolta pela ameaça silenciosa rabiscada no verso.
Noah permanecia de pé, em silêncio, os punhos fechados. O sangue pulsava nas têmporas. Por dentro, um campo em chamas.
Atena o observava de longe, sentada no sofá. Sabia exatamente o que era aquela raiva: o tipo que não grita — o tipo que consome.
— Você vai fazer alguma loucura? — ela perguntou, num sussurro.
Ele olhou para ela, e a fúria no olhar se dissolveu um pouco.
— Não. Não agora. Mas a partir de hoje, eu não espero mais que ele se exponha. Eu vou expor ele.
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Noah enviou as fotos do ataque à moto e da ameaça contra sua mãe para Letícia, junto com um áudio gravado por ele mesmo:
> “Ele sabe que estamos perto. E está ficando desesperado. Isso é o que faz um predador quando perde o controle. Mas nós não vamos recuar.”
Letícia respondeu em minutos:
📧 “Preparo uma publicação parcial para amanhã. Um teaser. Se ele tentar censurar, o público reage primeiro. Ele não vai conseguir parar o que já começou.”
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Enquanto isso, Atena trancava a porta do banheiro do apartamento.
Olhou-se no espelho.
Sem maquiagem. Sem vestido. Sem salto.
Apenas ela, como não se via há muito tempo.
E de repente, sentiu as lágrimas virem — não por medo, mas por exaustão.
Ela desabou no chão frio.
Não por fraqueza.
Mas porque estava finalmente se permitindo sentir.
> “Ele não vai me quebrar de novo. Nem ele. Nem o passado.”
Lembranças vieram como ondas:
— o primeiro show,
— a primeira ameaça,
— o rosto do pai no hospital,
— a porta do camarim batendo após a primeira investida de Leonardo.
Por tanto tempo, guardou tudo isso atrás de uma máscara de resistência.
Mas agora, ao lado de Noah, de Letícia, até mesmo de Matheus...
> Ela não precisava mais fingir ser feita de ferro.
Podia ser carne.
Podia ser alma.
E ainda assim lutar.
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Mais tarde, ela saiu do quarto com os olhos inchados. Noah a esperava, quieto, com um cobertor nas mãos.
— Choveu aqui dentro — ela disse, forçando um meio sorriso.
Ele não respondeu. Só abriu os braços.
E ela foi.
Deitou a cabeça no peito dele.
E juntos, permaneceram ali. Não como vítimas. Não como sobreviventes.
Mas como dois seres renascendo, pouco a pouco, no meio do caos.
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Na manhã seguinte, a matéria parcial de Letícia saiu no site da Revista Verdade.
Título:
📰 “Poder, silêncio e chantagem: os bastidores do império Calazans começam a ruir”
O artigo não citava nomes diretamente. Mas quem conhecia a história sabia quem estava sendo exposto.
A internet reagiu.
Comentários, compartilhamentos, indignação.
Leonardo recebeu o link de três fontes diferentes.
Leu cada linha com um sorriso escuro.
Depois ligou para um número restrito.
— Hora de tirar a Dama do tabuleiro.
De vez.
A noite caiu com um silêncio incomum.
Nenhuma mensagem chegou. Nenhuma ameaça nova. Nenhuma movimentação de Leonardo visível.
E, por algum motivo, isso parecia ainda mais assustador.
Noah e Atena jantavam juntos na pequena varanda do apartamento dela, onde duas cadeiras improvisadas e uma mesinha de madeira serviam como refúgio. As luzes da cidade brilhavam à distância, como se o mundo inteiro continuasse... ignorando a guerra deles.
— Faz quanto tempo que você não tem um dia inteiro de paz? — ele perguntou, com a voz baixa.
Ela riu, sem humor.
— Desde os dezessete.
— Então hoje... é uma raridade.
Ela o olhou com carinho silencioso.
— Com você, é a primeira vez que isso não me assusta.
Noah apoiou o cotovelo na mesa, observando os traços dela à meia-luz. Cada curva do rosto, cada marca sutil de expressão parecia mais viva, mais real — mais livre.
— Você sabe que mesmo que tudo dê errado... — ele começou — eu não vou te deixar.
Ela respirou fundo. Por um instante, o impulso de dizer algo grandioso surgiu. Mas ela escolheu a verdade.
— E mesmo que tudo dê certo... eu quero que você fique.
Os olhos se encontraram.
Não houve beijo.
Não houve toque.
Houve entrega.
Atena encostou a cabeça no ombro dele. O mundo parecia distante. Intocável.
— Eu queria congelar esse instante — disse ela. — Só por hoje. Só pra lembrar que a gente também pode ser leve, sabe?
— Então congela. — respondeu ele. — Fecha os olhos. Finge que o amanhã não existe. Só agora.
Ela fechou.
E por alguns minutos, a cidade desapareceu.
Leonardo desapareceu.
A dor, o medo, as cicatrizes...
Só existia o agora.
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Longe dali, porém, no silêncio de um escritório escuro, Leonardo terminava de digitar um documento.
Fez uma ligação.
Curta.
Fria.
— Eles querem fogo? Então vamos incendiá-los de dentro.
> No dia seguinte, uma denúncia anônima chegaria à universidade.
Acusando Noah de assédio contra uma colega de turma.
Falsa. Planejada. Calculada.
Mas naquela noite...
Atena e Noah dormiram em paz.
> Pela última vez em muito tempo.