capítulo 6

920 Palavras
O relógio do celular mostrava 15h47. Hoje, o itinerário parecia bem definido: muitas andanças e poucas afirmações. Atravessei a rua e, por um triz, não esbarrei em uma mulher que usava batom vermelho e tinha um sorriso largo e contagiante. Um perfume intenso exalava dela, seu salto alto ressoava na calçada, e seu cabelo estava preso com um grampo dourado. Ela era Lola, o tipo de pessoa que atrai olhares sem precisar fazer esforço. — Você é a Isa, certo? sorriu, como se já me conhecesse de algum lugar. — Te vejo pela vizinhança. — Sou eu. Ela me avaliou de uma forma que não era desprezo, mas sim uma análise profunda. — Perambulando pelo bairro com essa pastinha... buscando emprego? — Na verdade, procurando dinheiro. — A sinceridade é algo que eu aprecio. Com um gesto ágil, ela retirou um cartão de sua bolsa e o colocou na minha mão. — Aurora Club. Eles estão precisando de garçonete para hoje à noite. O trabalho é só com bandeja e um olhar firme. Sem registro, mas a gorjeta é boa. Olhei para o cartão. As letras douradas brilhavam sobre um fundo preto e lustroso. O nome do lugar soava pesadamente. Era o tipo de estabelecimento que a cidade tenta ignorar, mas vive lotado. — Não danço . avisei. — Ninguém mencionou dança. — Ela deu de ombros, de maneira prática. — Hoje você leva bandeja. Amanhã, quem sabe, você dança. Você tem uma postura ereta, um passo leve, e um olhar que impõe respeito. Isso ajuda a pagar as contas. — E quanto ao respeito pelas garçonetes? — Respeito é algo que se conquista. ela olhou nos meus olhos de forma direta, sincera e firme. — O resto, eu cuido na entrada. Fiquei segurando o cartão, sentindo-o quente contra a pele. Um turbilhão de pensamentos surgiu. Lembrei dos meus boletos, da conta de luz prestes a ser cortada, do remédio que não cabia na prateleira da nossa casa simples, e de Sera subindo as escadas sem fôlego. — Pense com calma . Lola disse, já se afastando. — Se decidir vir, apareça às 20h30 e pergunte por mim. A senha na portaria é: “café forte”. Se não for, não se preocupe, não perguntarei o porquê. Coloquei o cartão dentro do meu caderno de currículos, como se estivesse guardando uma faca embrulhada. **De volta para casa** Durante o caminho, comprei dois pães e um pacote de macarrão. Subi dois andares devagar, lembrando do “93” que ela mencionou. Abri a porta cuidadosamente, para não assustar ninguém. Sera estava sentada no sofá, coberta com uma manta e com um oxímetro esquecido na mesa. O telefone descansava sobre seu colo. — Eu quase te liguei. — E eu quase cheguei mais cedo. sorri, sentando-me ao seu lado. — Como está esse fôlego? — Melhor. Mas… quando eu rio, sinto vontade de tossir. Ela riu intencionalmente, tossiu suavemente e fez uma careta. — Viu? É irritante. — Essa virose é bem persistente, não é? deixei a afirmação pairar, sem convicção. Preparei macarrão com alho, óleo e uma sardinha, dividindo-o em partes iguais, como um ritual. Enquanto a água fervia, peguei o cartão de Aurora novamente. Deixar de lado a moral não paga as contas, mas também é a moral que nos mantém firmes. O equilíbrio se assemelha a uma corda bamba. — Isa… — Sera estava me observando. — Você encontrou algo? — Um talvez. mostrei o cartão, sem entrar em muitos detalhes. — Vou trabalhar como garçonete. Hoje à noite. — É perigoso? — Tudo é perigoso quando não se tem uma rede de proteção. Mas o verdadeiro perigo é ver você sem ar. Um silêncio breve se estabeleceu entre nós, o suficiente para que ambas pensássemos a mesma coisa sem verbalizar: já não estávamos mais competindo apenas com uma “gripe”. — Se você for, eu fico aqui e não me movo. — Ela levantou o dedo, como se estivesse fazendo um voto solene. — Prometo. — Se eu for, você me liga para qualquer coisa. — repeti meu mantra habitual. — Porta trancada. Copo d’água à mão. Oxímetro à vista. — Sim, senhora. Ela fez uma continência, com a língua entre os dentes, tentando descontrair a situação. Sorri involuntariamente. Jantamos juntas. Lavei a louça devagar, escutando a respiração dela na sala um pouco mais curta do que deveria. Anotei tudo no meu caderno azul: “tosse noturna + cansaço na escada + saturação 93 durante esforço”. Em letras maiúsculas, ressaltei: VOLTAR AO MÉDICO (OUTRO). Preparei minha roupa na cama. Jeans escuro, camiseta preta simples, tênis. Nada de saias, nada de decotes. Não se pode escolher o olhar do outro, mas eu posso escolher meu campo de batalha. Antes de sair, encostei minha testa na dela. — Lembra da senha de emergência? — Eu ligo. — Isso. Eu volto antes que a insônia chegue. Abri a porta. O corredor exalava o cheiro da fritura do vizinho e de produtos de limpeza baratos. Guardei o cartão novamente. Desci degrau por degrau, sentindo que a corda bamba balançava mais do que o normal. Entre voltar ao posto de saúde e adentrar a porta do Aurora, existe uma linha tênue. Hoje, eu estava decidida a andar sobre essa linha. Amanhã, o que vier, enfrentaremos juntas com exames, com testes, com o nome certo para essa tosse. E, se o mundo quiser me encarar com fome, que olhe. Eu estou aqui por causa do ar da minha irmã.
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