Muralha narrando
Eu sou o primeiro na linhagem do comando. Meu pai foi o fundador dessa p***a toda, o primeiro líder do Comando Vermelho que fez o nome dele ser respeitado de Norte a Sul. E quando ele morreu, há três anos, foi natural que eu herdasse o trono. Não porque era filho dele, mas porque desde novão fui criado no crime, moldado à imagem e semelhança dele. Eu rodo todas as favelas do Rio, passo de quebrada em quebrada, ninguém me barra. Não tem frente, não tem gerente, não tem soldado que não abaixe a cabeça quando eu apareço. Porque sabem quem eu sou. Sabem que o sangue que corre aqui é o mesmo que fundou o império deles.
Sempre fui o peito de aço do meu pai. Desde moleque, do lado dele, aprendendo a viver e a morrer. Ele me acordava antes do sol nascer, me botava no carro, me levava pra fazer contagem de boca, pra visitar ponto, pra esculachar frente que se achava dono de alguma coisa. Eu não tinha nem 14 anos completos quando já contava pistola, carregava fuzil, pegava dinheiro e fechava boca pra ele. E o melhor de tudo é que não era só pelo crime, era porque ele fazia questão de me ensinar o certo e o errado — dentro do nosso mundo torto. “Respeita morador, respeita mulher, não vacila com criança. Se tem que matar, mata. Mas não faz covardia.” Isso era lei na boca do meu pai.
O problema é que a minha mãe nunca foi igual a ele. Ela é deslumbrada, cabeça cheia de vazio, vive de salão de beleza, de pilates às três da tarde, de shopping pra comprar joia que não precisa. Enquanto isso, eu — às três da tarde — já tô fazendo revisão na segunda, na terceira favela do dia, botando moral em frente que pensa que é dono do morro e esquece que trabalha pra mim.
Quando meu pai morreu, o sussurro foi geral. “Ah, ele é novo demais, só tem 23 anos, não vai segurar o peso.” Pois bem, hoje tô com 26 e já carreguei mais sangue nas mãos do que muito macaco velho por aí. E sabem por quê? Porque eu acordei e dormi aprendendo com o melhor. Meu pai me contava do passado, me contava dos erros dele, das armadilhas que enfrentou, me preparou pra tudo. Ele foi um criminoso de se tirar o chapéu, mas acima de tudo foi o melhor pai e o melhor marido que eu já vi na minha vida.
Nunca levantou a mão pra minha mãe, nunca traiu. Tinha o nome dela tatuado no peito, o rosto dela nas costas. Todo ano, na data do casamento, trocavam alianças em alguma viagem que ele programava só pra ela. Era cego por aquela mulher. Eu admirava tanto o amor que ele tinha, mesmo sabendo que ela muitas vezes não retribuía do mesmo jeito. Porque o que movia a minha mãe sempre foi ostentação. Ela amava o luxo que o meu pai dava. O amor dela vinha junto com as viagens pra Dubai, com as bolsas da Gucci, com as correntes banhadas a ouro que ele enchia o pescoço dela. Mas ele não via isso. Pra ele, ela era uma rainha, e ele fez questão de tratar ela assim até o fim.
No dia que meu pai morreu, eu tava com ele. Nunca vou esquecer aquele dia. Ele me olhou no fundo dos olhos, viu o desespero que eu tentava esconder e me nocauteou com uma coronhada na cabeça, me jogando num buraco improvisado que ele mesmo cavou na casa. Eu apaguei, não vi nada. Quando acordei, horas depois, meu celular tava vibrando sem parar no bolso. E quando olhei pra cima, vi o terror. O chão coberto de sangue, o corpo do meu pai largado sem cabeça, como se fosse lixo. A cabeça dele nunca foi encontrada. Enterramos só o corpo. E minha mãe? Gritava, se descabelava, fazia cena. Mas não era pela perda de um companheiro de vida, era porque o mundo de luxo dela tava ameaçado.
Eu lembro de ter saído daquela cova improvisada, desesperado, pisando no sangue, tropeçando nos restos. E foi ali que eu me tornei o que sou hoje. Prometi que ninguém ia botar a mão no nosso império de novo. Que o nome dele ia ser maior ainda pelas minhas mãos. E cumpri.
Mas o preço disso é conviver com a minha mãe do jeito que ela é. Essa manhã foi o exemplo. Eu tava largado na cama, só de cueca, pensando no dia pesado que me esperava, quando ela entrou abrindo as cortinas, toda animada:
— Meu filho, eu acho que vou trocar meu carro. A BMW já tá passada, né? É do ano passado. Eu preciso me manter atualizada. Tava pensando numa Mercedes nova…
Eu me sentei na cama, cobri o p*u com a mão e só encarei ela, puto, sem vontade de responder nada. Levantei, fui direto pro banheiro tomar um banho frio, e ela ficou do lado de fora, falando sem parar.
— Porque você sabe, né, filho? Mulher tem que estar bem, tem que se cuidar, se valorizar. Não posso ficar andando de carro velho…
Saí do banho, com a toalha na cintura, fiz minha higiene sem falar nada. Mas quando terminei, não me aguentei. Olhei sério pra ela, o peito pesado de uma verdade que eu carregava há anos.
— Essa hora da manhã, mãe? Tá de s*******m com a minha cara? Eu tenho cara de o****o, por algum acaso? — perguntei, a voz saindo dura. — Pelo amor de Deus, mãe. Eu me mato de trabalhar. O que tu se tornou depois da morte do meu pai?
Ela ficou me olhando, em choque, os olhos arregalados. Eu continuei, porque não dava mais pra segurar.
— Me desculpa, mãe. Eu te amo, mas p***a, tudo pra tu é dinheiro, é carro, é ouro, é luxo, é diamante, é joia, é casa, é viagem. c*****o, não é possível, mãe. Não é possível. Tu quer ocupar um vazio que nunca vai se ocupar. Que nunca vai ser ocupado. Meu pai morreu, mãe. E esse vazio aí dentro não vai ser joia, não vai ser dinheiro gasto, não vai ser casa nova que vai preencher, não. Se liga.
Eu vi quando as lágrimas começaram a rolar pelo rosto dela. E doeu em mim também. Porque eu sabia que ela sofria. Mas escolhia sofrer do jeito errado. Tentava tampar o buraco gigante que o amor do meu pai deixou com coisas que não significavam nada.
Fui até o guarda-roupa, peguei minha Glock, minha carteira, a corrente do meu pai que agora era minha, botei no pescoço e me aproximei dela. Segurei pela nuca, dei um beijo demorado na testa.
— Me dá tua bênção, mãe.
— Deus te abençoe, meu filho — ela disse baixo, chorando, passando a mão no meu rosto.
E eu meti o pé. Saí daquele quarto com o coração pesado, o peito em guerra, a cabeça fervendo. Meu dia já tinha começado virado do avesso. E quem caminhasse errado na minha frente hoje ia tomar. Porque eu sou o herdeiro do meu pai. Sou o comandante. Sou o Muralha. E aqui, o sangue dele corre por mim — e faz questão de cobrar quem ousar esquecer isso.
Saí do condomínio da minha mãe a milhão, quase rasgando o asfalto com o carro blindado. Ela mora ali, num daqueles condomínios de luxo, super reservados, com guarita dupla, ronda armada, câmeras até no bueiro. Um condomínio imenso, que meu pai construiu exatamente do jeitinho que ela desenhou. Cada detalhe daquele lugar saiu da cabeça dela — o jardim, o desenho da piscina, o hall cheio de mármore. E eu lembro bem da vida dos pedreiros virando um inferno pra sair do jeito que ela queria. Meu pai fez questão de botar cada centavo ali, não só pra dar o melhor pra mulher que ele idolatrava, mas também pra realizar o sonho dela. Um sonho que virou a prisão particular dela depois que ele morreu.
Eu não fico muito lá. Passo mais tempo pelos morros ou na minha cobertura, porque minha vida não permite esse tipo de conforto. De vez em quando, apareço pra dar atenção pra minha coroa, porque apesar de tudo, eu amo aquela mulher. Não duvido do amor que ela sentia pelo meu pai, mas o que me consome é ver como ela tenta tapar o buraco que ele deixou com coisa material. Não é assim. Se fosse assim, eu ia viver num estande de tiro, porque era isso que preenchia o vazio do meu pai e o meu. A gente passava horas atirando, rindo, tomando cerveja, ouvindo pagode na nossa casa da serra, em frente à piscina, só nós dois. E mesmo assim o mundo não ficava leve. Porque a vida não é simples, não é colorida.
Hoje foi dia puxado. Rodei várias favelas, muito esquema errado, muita frente achando que podia passar a perna. Estoque que não batia, caixa que sumia. Só cobrança errada. Eu tava com o sangue fervendo desde cedo. Pra completar, hoje eu precisava ir na favela do Coringa. E o Coringa, pra mim, é o tipo de cara que já merecia ter o castigo dele faz tempo. No começo, ele nem queria me respeitar. O filha da p**a tem só três anos a mais que eu e se acha o bandido mais p**a do mundo. Não é do Rio não, é do mundo. Anda com aquele peito estufado, fala cuspindo, rindo alto pra disfarçar o medo que tem de mim. Mas pra mim ele não é p***a nenhuma. Tô ligado nos desfalques que ele tá dando na boca. Já peguei a visão dele faz tempo. Só dei corda pra ver até onde ele ia se enforcar. E hoje, talvez, fosse o dia de começar a cortar as asinhas desse p*u no cu.
Se tem uma coisa que meu pai me ensinou foi a ser frio, calculista. Ele me falava: “Não faz com raiva, faz com calma. O sangue deles vai esquentar, o teu não.” E isso eu aprendi muito bem. O Coringa só tá vivo porque ainda não é hora de eu morrer junto. Porque se eu tombar ele agora, vem uma guerra que pode me pegar também. E eu não vou cair igual meu pai. Todos os dias, quando acordo, faço uma promessa silenciosa: ainda vou achar a cabeça do meu pai. Pra mim, essa é a maior questão de honra que existe. Enterrar ele incompleto é como se ele ainda estivesse lá fora, esperando eu concluir essa merda.
Cheguei na favela do Coringa e o Lobo tava logo ali, na frente, distribuindo as ordens pros vapores. Como sempre. O Lobo é quem segura essa p***a toda funcionando, o verdadeiro frente dessa bagaça, porque o Coringa é só fachada. Fala tu, meu chapa.
— Como é que tá as parada aí? — perguntei, e ele só fez um gesto meio desanimado.
— Sei lá, mano… fala lá com o Coringa — respondeu, de cabeça baixa, sem ânimo nenhum.
Eu vi logo o cabresto. O Lobo já tá por aqui com o Coringa tem tempo. Fiz sinal pra ele:
— Nós ainda vamos trocar uma ideia, já é? — e ele concordou, meio cabreiro.
Nisso, passou uma novinha de moto. Linda, posturada, com o rosto sério, mas o corpo dizendo tudo. O Lobo saiu correndo atrás dela, gritando:
— Babi, Babi, peraí, peraí!
Eu fiquei parado, assistindo a cena. Já tinha visto essa garota várias vezes no morro. Ela organiza os campeonatos de luta aqui. Pensa numa mina firmeza, bonita, diferente. Nos bailes é a maior princesa, rebola como ninguém, mas na hora da porrada é sinistra, bate em homem fácil. Dei uma encarada nela daquelas que não deixa dúvida, e ela sustentou meu olhar por dois segundos antes de desviar e fazer o toque com o Lobo. Desceu rasgando favela acima, e eu percebi que tava secando as lágrimas. Tinha algo errado aí. E o Lobo, na sequência, voltou pra mim.
— Pô, Muralha… nós vamos ter que trocar ideia de um bagulho aí mesmo. Tem umas coisas que não tão fechando pra mim, tá ligado?
Eu só fiz um sinal pra ele me acompanhar, sem abrir o jogo ali no meio dos vapores. Já deixei no ar que ia rolar cobrança.
Quando entrei na sala do Coringa, foi o que bastou pra minha paciência sumir de vez. Tava uma p*****a do c*****o, uma orgia completa, gente gemendo, chupando, trepando no chão, sofá, até no canto da mesa. Dei um berro, fiz todo mundo se arrastar pra fora. Não tenho paciência pra desenrolada com vagabunda.
— O que foi, Muralha? Chegou aqui no esculacho? Que isso, meu parceiro, o esculacho é o c*****o! — o Coringa falou, ainda com o peito inflado, rindo amarelo.
Eu já fui na direção dele na marra. Segurei pelo pescoço e empurrei contra a parede.
— Tu esqueceu que tu trabalha pra mim, ô seu filho da p**a? — falei entalando o gogó dele. — Tu é só o frente do meu morro, c*****o, essa p***a aqui é minha!
Joguei ele no chão, e ele caiu meio desengonçado, o olho arregalado de quem não esperava que eu partisse pra cima. O Lobo olhou de canto, meio constrangido, meio satisfeito, porque sabia que alguém precisava dar esse sacode.
— Eu quero ver os lucros dessa p***a aqui, é agora! — gritei, indo pra trás da mesa dele e começando a revirar tudo. Papelada, caderno, caixa com dinheiro.
O Coringa ficou nervoso. Dava pra ver no jeito que ele suava, na forma como olhava pro Lobo, tentando encontrar alguma cumplicidade. Mas não ia ter. Eu só fingia não estar vendo o roubo dele. Não agora. Porque ele ia ter a surpresa dele no momento que eu quisesse.
Fui empilhando as anotações na mesa, passando o dedo pelos números, olhando de r**o de olho o jeito dele se contorcer. Meu pai me ensinou a não agir por impulso. A dar corda. E quando eu cortasse, ia ser de uma vez só.
O Coringa ainda tava no chão, tentando recuperar a pose. Eu olhei pra ele e só soltei:
— Tá me tirando pra o****o nessa p***a, meu irmão? Continua assim… daqui a pouco tu vai entender o que é perder de verdade.
E aí ele ficou quieto. Quieto porque sabe que quando eu falo, eu cumpro. Porque nessa favela, no Rio inteiro, quem manda sou eu. Eu sou o Muralha, filho do homem que construiu tudo isso aqui. E ainda vou honrar o nome dele com o sangue de quem achar que pode me fazer de o****o.