Capítulo 06 – Uma Noite Proibida

1699 Palavras
Anna O baile começou como a noite sempre começa no morro: música cortando o ar denso, luzes coloridas pingando nas fachadas como se alguém tivesse pendurado constelações nos fios, gente demais cabendo em um espaço pequeno demais. O cheiro de churrasco, cerveja e perfume barato contava histórias que eu não precisava perguntar para entender. Eu fui pelas beiradas, mochila leve, os cabelos soltos pela primeira vez desde que cheguei àquele labirinto de lajes. Queria só observar, guardei para mim. Kadu apareceu quando a batida mudou. Não foi anúncio; foi presença. O corpo alto, com sua tatuagem no pescoço, a camisa escura aberta no colo, o olhar que não pede passagem, toma. Ele não tocou em mim. Bastou caminhar até ficar a dois passos e a energia do lugar se reorganizou como água após a pedra cair. O morro, ao redor, o reconheceu; meu corpo também — para meu desgosto e fascínio. — Não esperava te ver aqui — disse, baixo. — Eu vim ouvir música — respondi, fingindo normalidade. — E estudar o mapa. — Mapas soam melhor ao vivo. A proximidade dele era um campo gravitacional. Não era o toque; era a possibilidade. Ele não me encostava e, ainda assim, eu sentia a pele acordada, como se alguém tivesse acendido um interruptor no fundo do peito. A gente dançou sem combinar passos — não era dança de salão, era de território. Ele guiou o espaço, eu tomei o ritmo. Houve um empurra-empurra perto do bar. Garrafas bateram, um rapaz abriu os braços exagerados. Senti o músculo do morro tensionar, aquele silêncio velho querendo nascer, mas Kadu ergueu só um dedo. Bastou. Dois rapazes apartaram, o clima retornou à festa. Ele curvou o rosto ao meu ouvido, a voz grave e limpa: — Aqui a noite só vira problema se eu deixar. — E se você quiser? — Eu nunca quis que você virasse problema. Respirei. O perfume dele — tabaco frio com algo amadeirado — colou em mim como lembrança. A música subiu. Minha mão flertou com a barra da camisa dele sem tocar. Ele sorriu, curto. Jogo antigo, regra nova. — Vem — convidou, quando a madrugada trocou de marcha. — A vista é melhor de cima. Não perguntei para onde. Talvez porque eu soubesse. Talvez porque, pela primeira vez em muito tempo, eu quisesse não pensar. Havia consequências esperando em todos os becos, e eu não estava pronta para conversas longas com a minha consciência. Subimos por entre lajes e varais; os olheiros acenaram, as portas se fecharam em respeito à passagem. Quando chegamos ao portão alto que abria para o terraço mais amplo do morro, entendi por que chamavam aquilo de mansão. Não era ostentação de papel de revista; era soberania. Concreto bem-feito, vidro discreto, uma linha de luz percorrendo o chão como rio. — Não há lugar aqui que eu não saiba o que respira — ele disse, empurrando a porta com o ombro. — Mas aqui é onde eu descanso do som. — Isso existe? — perguntei, entrando. — Quando você entra, sim. O terraço dava para uma cidade que parecia um bicho enorme dormindo m*l. Do outro lado, a favela brilhava com orgulho silencioso. O vento noturno trouxe um frio que arrepiou meus braços. Kadu me ofereceu uma jaqueta. Eu não aceitei. Ele riu com os olhos, aproximou-se, os dedos roçando no meu ombro como quem pedisse permissão. Eu dei. — Você sabe que isso é uma péssima ideia — falei, sincera, o coração jogando contra mim. — As melhores são — devolveu, com aquela calma perigosa. — Me diz não, Anna, e eu paro agora. Eu tentei procurar o “não”. Procurei onde sempre encontro: na razão, nos planos, na lista de perdas possíveis. Não achei. O “sim” estava na pele, na boca, no meio-termo em que a gente se entrega e ainda assim se guarda. A música da festa ainda subia do chão como memória distante. Eu encostei a palma no peito dele, senti o calor firme, o pulso controlado. Ele não me invadiu; aproximou-se. O beijo aconteceu como acontece o que é inevitável: primeiro lento, para memorizar. Depois, inteiro. Era beijo de quem aprendeu a calibrar a força. Conduzia sem quebrar, pedia sem implorar, cedia sem desaparecer. O mundo se apagou um pouco na borda; no centro, ficou o sabor dele, a mão na curva da minha nuca, a outra na minha cintura, puxando apenas o suficiente para eu perder a dúvida. Eu me agarrei no ombro dele, ancorei ali um pedaço de mim que sempre teve medo de cair. Não caí. — Diz meu nome — ele pediu, morno, entre um respiro e outro. — Kadu. O som me traiu com um tremor. Ele sorriu contra a minha boca, como quem ganha aposta. Me ergueu com um gesto sem esforço, e eu obedeci ao caminho que os braços dele me desenharam. Passamos por um corredor quase sem luz, paredes de cimento aparente, quadros mínimos — fotografias em preto e branco de becos que eu reconhecia. A cama era larga, os lençóis, pesados. Havia uma janela imensa com vista para as luzes da cidade; Kadu tocou no controle e a cortina correu só pela metade. Quis as testemunhas no lugar certo: o mundo lá fora vendo o mínimo. — Eu não sou de promessas — avisei, a mão no peito dele, dominando meu fôlego. — Eu sou de cumprir as minhas — respondeu, dedos no zíper do meu vestido, lentos. — Hoje a promessa é simples: você dita o ritmo. Fechei os olhos para perder a vergonha. Eu me vi de fora por um segundo — a mulher que não corre do medo, que escolhe. Escolhi. A roupa desceu como água; o corpo, antes cheio de ângulos, encontrou formas novas. Kadu me deitou no centro da cama, os joelhos tocando os meus num cuidado feroz. Os beijos dele se espalharam pelo meu rosto, pela linha do maxilar, pelo pescoço, num mapa que me arrancava suspiros que eu não sabia guardar. Era luxúria, era fome, mas tinha método. Tinha respeito. — Assim? — perguntou, a boca a um fio da minha pele. — Mais perto — pedi, surpresa com a firmeza da minha voz. Ele veio. O calor dele encostou no meu, e o mundo reduziu ao tamanho exato de dois corpos que se encontram. A mão dele achou a minha e entrelaçou os dedos, um gesto insuportavelmente íntimo. A outra mão percorreu meu flanco, desenhando caminhos de fogo sob a pele. Eu retribuí: explorei a largura dos ombros, o contorno das costas, a tensão que escondia e a que mostrava. Kadu reagiu ao meu toque com um som rouco que acendeu algo no fundo de mim. Não era poder pelo poder; era um reconhecimento quase animal. — Fala comigo — ele pediu, os lábios no meu ouvido. — O que você precisa? — Você. Agora. Não havia mais cálculo. Havia o estalo nítido da decisão. A noite, do lado de fora, prendeu o fôlego quando ele me tomou; o corpo dele encaixou no meu como se as duas metades tivessem sido talhadas na mesma madeira. O primeiro movimento foi lento, para ensinar. O segundo, mais fundo, para gravar. Eu segurei a nuca dele, uma âncora e um incentivo. O ritmo encontrou a cadência exata do nosso silêncio. Meus dedos arranharam a pele dele, ele sorriu com os olhos fechados, e a respiração virou linguagem. Ele sussurrou coisas que não se dizem em público; eu respondi com a honestidade que só a pele conhece. — Bonita — murmurou, entre um beijo e outro, a voz quebrada em lugares que eu queria guardar. — Desse jeito, você desarma até as sombras. Eu ria e gemia, sem pudor, porque o prazer não permite diplomacias. O mundo inteiro foi sendo empurrado para a borda da cama até sobrar o que importa: o calor, o suor, a certeza de que eu tinha escolhido. Kadu me virava como quem me lê; eu conduzia como quem sempre soube dançar. Houve um momento em que ele parou só para me olhar — um segundo —, e eu vi que a intimidação dele, por baixo, escondia ternura vigilante. Esse contraste me quebrou no meio e me reconstruiu em seguida. Quando o prazer finalmente explodiu, não foi fogo de artifício: foi um rio de dentro para fora, arrastando junto todas as minhas barreiras. Eu deixei. Eu quis. Ficamos um tempo sem fala, apenas o som do nosso fôlego tentando aprender a ser normal de novo. A cortina dançava com o vento. Kadu rolou para o meu lado sem se afastar, a mão ainda em mim, como quem afirma: “aqui”. Eu encostei o rosto no ombro dele, o coração batendo descompasso e paz ao mesmo tempo. Poucas coisas no mundo me surpreendem para o lado bom; aquela noite foi uma. — Você vai se arrepender? — ele perguntou, sem ironia. — Vou lidar com as consequências — respondi, sem prometer mais do que posso. — Mas me arrepender seria mentir. A risada dele veio mansa, uma brecha rara. — Então eu prometo cuidar para que as consequências não sangrem além do necessário. — Está me fazendo promessas de rei? — De homem. Silenciamos. E, nesse silêncio, descobri que havia um lugar em mim que só dormia quando abraçado. Adormeci com a sensação estranha de estar segura no lugar mais improvável. Antes de o sono me puxar inteira, ouvi a rua lá embaixo cantar outra música. Não era a do baile; era uma melodia baixinha de normalidade possível. Amanhã viria com suas cobranças, eu sabia. Haveria olhares, rumores, escolhas. Mas, naquela noite proibida, decidi que a prudência podia dividir espaço com a coragem. E me permiti pertencer, por algumas horas, a um homem que intimida o mundo e, paradoxalmente, me soube tocar com delicadeza. Quando acordei, ainda era madrugada. Kadu dormia ao meu lado, mais jovem no repouso do que jamais se permitiria parecer acordado. Eu me virei devagar, beijei a curva do ombro dele e sussurrei, sem promessa: — Obrigada. Do lado de fora, a favela respirava. Do lado de dentro, eu também. E, pela primeira vez em muito tempo, isso bastou.
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