Anna
O ônibus desce a Avenida Brasil com o sol batendo de frente nas janelas, um ouro cansado que estala no vidro rachado. Seguro as apostilas contra o peito, o jaleco dobrado por cima, e conto mentalmente as paradas como quem reza. Não é medo; é método. Quem mora no Complexo aprende cedo que o caminho mais curto nem sempre é o mais seguro.
Quando salto, o calor me abraça com pressa e o cheiro de empada velha briga com o de gasolina. Ajusto a alça da mochila, confiro se o celular está no bolso interno e inicio a subida pelo Escadão. A respiração se encaixa nos degraus, e eu deixo a cabeça organizar as coisas: prova de anatomia semana que vem, plantão no posto de saúde na quinta, dinheiro para a passagem, fraldas para o filho da Dona Celina que virou pai sem preparo — e o meu plano de sempre: passar invisível. Estudar. Sair daqui pelo mérito.
A comunidade, porém, tem o hábito de encarar de volta.
— Ô, Anna — grita um menino descalço, a bola de futebol presa no braço. — Tu viu o gol que eu fiz hoje?
— Vi nada, Miguelito. Mas se foi melhor que o de ontem, tá virando profissional — respondo, sorrindo. — Estuda a tabuada, que eu confiro depois.
Ele ri e sai correndo pela viela que cheira a sabão em pó. À esquerda, o Bar do Dico já abriu, mesas de plástico amontoadas e uma música baixa que pede licença para o dia. Na curva, duas mulheres discutem o preço do botijão, e eu desvio como quem dança. O morro é uma coreografia de sobrevivências.
Quase na metade da subida, ouço o chiado de um rádio. É um som que não me pertence, mas que a gente aprende a decifrar. Não olho. Nunca olho. O chiado vira vozes curtas, códigos que repetem nomes de pontos, e por um segundo penso em acelerar o passo. Penso, mas não acelero. A regra é antiga: quem corre chama a atenção do predador, e aqui quase tudo pode virar predador.
Dobro no Beco do Arame. O portão de ferro da Dona Celina aparece, meio gasto, com o cadeado ainda pendurado. Eu bato de leve.
— Senhora?
Ela surge com o avental florido, o cabelo preso grosso no topo da cabeça, as mãos molhadas de sabão.
— Chegou cedo, menina. O baile ontem só desligou tarde… tu conseguiu dormir?
— Parece que captei tudo por osmose — digo. — Mas sobrevivi.
— Quem manda no horário não é o DJ, é ele — ela fala, num misto de reclamação e aceitação. — Dizem que hoje encerra meia-noite.
Eu não pergunto quem é “ele”. Todo mundo sabe. Kadu. O Rei. O homem que faz as ruas obedecerem como se fossem nervos do próprio corpo. Ignoro a faísca que o nome acende por dentro, uma mistura irritante de susto e curiosidade. Coloco minha bolsa no sofá da sala apertada que eu alugo no fundo da casa dela.
— Vou passar no posto antes de subir pra estudar — aviso. — Prometi a Dona Nena que revisaria os curativos da mãe.
— Vai com Deus — ela murmura, mas abre a boca de novo, como quem vai adicionar um conselho. Desiste. — Cuidado.
Caminho dois quarteirões na diagonal, tentando ficar no fluxo das pessoas. O sol já decidiu que vai torturar até o fim. Abano o rosto com a apostila e espio o relógio, quando sinto o ar mudar. Não é vento; é uma pausa. Gente que andava para e se encosta nas paredes, como se alguém tivesse baixado um volume invisível.
A moto aparece na Curva da Antena, dois homens de capacete espelhado. Reconheço o alerta na postura dos moradores: ninguém grita, ninguém se empurra. A rua… cala. É nessa hora que ele surge.
Kadu vem descendo os degraus como se tivesse medido cada centímetro do morro ao nascer. Camisa preta, rádio no ombro, olhar de quem enxerga por detrás das esquinas. Não é bonito no sentido de propaganda; é uma beleza que não pede, toma. Por um segundo, detesto a forma como meu corpo percebe isso — a postura se endireita por reflexo, a pele estala como se lembrasse que é viva.
— Capacete — ele diz, sem erguer a voz.
O som não é um pedido, é um veredito. O piloto obedece; o carona vacila. Kadu avança meio passo e sua mão toca o peito do sujeito com uma segurança irritante. O capacete cai. Tigrão, um dos braços direitos — o apelido chega ao meu ouvido por terceiros, por anos de rua — puxa a pistola do bolso do moletom do carona. Ninguém grita, ninguém aponta nada para ninguém. Eu nunca tinha visto violência virar disciplina tão rápido.
Penso em ir embora, mas a atenção me deita num lugar de onde não é fácil levantar. O homem que mantém esse território de pé inclina levemente a cabeça, e por um instante os olhos dele passam por mim. Não é uma parada demorada, nem uma avaliação descarada. É um arranhão de viso. A gente não esquece.
— Contenção — ele fala ao rádio. — Sem cena.
A moto é levada. O ar, devagar, volta para os pulmões da rua. Eu lembro de respirar. Lembro também de me xingar mentalmente. Ele é o problema, não o remédio. Ele é a regra, e regra por aqui costuma cobrar mais do que pode dar.
No posto de saúde, a fila já serpenteia até a porta. A moça do guichê afina a voz com paciência distraída, chamando senhas. Eu me identifico, entro pelo corredor estreito e cheiro de cloro. A enfermeira-chefe, Dona Nena, me dá um abraço rápido.
— Chegou bem na hora, Anna. A mãe da Lurdinha tá com o curativo úmido. E o seu João quer conversar sobre a pressão.
— Deixa comigo.
Eu me perco em instruções, gaze, soro fisiológico. As mãos lembram o caminho mesmo quando a cabeça insiste em voltar aos degraus de fora. Por que ele olhou? Na verdade, por que eu notei que ele olhou? Entre um curativo e outro, converso com o seu João sobre remédio e sal, falo com a mãe da Lurdinha sobre febre noturna, e me obrigo a pensar no que interessa: notas, estágio, diploma, saída.
Quando o relógio marca três da tarde, despeço-me. Na porta, encontro Dona Celina, que veio pegar receita.
— Vi a confusão da moto — ela comenta, ajeitando a bolsa. — Teu Rei tá com os olhos nas curvas.
— Não é meu — eu solto, mais dura do que gostaria.
— O morro todo acaba sendo — ela rebate, enviesando um sorriso.
Quero dizer algo, defender um princípio que me sustenta: eu sou minha antes de ser de qualquer lugar. Mas a frase não cabe bem quando as ruas são compartilhadas com um homem que dita horários para a música e decide por quais becos a morte não passa.
Volto pelo caminho de cima, evitando o Bar do Dico. Duas meninas cochicham quando cruzo, uma sussurra “enfermagem”. Eu sorrio de canto. Sim, enfermagem. E é esse futuro que preciso repetir como mantra quando as coisas me tentam para lados errados.
Quase no meu portão, ouço passos atrás. Não acelero. Chave na mão, olho atento no chão. A sombra se aproxima e, quando gira, já está à minha frente, encostada na parede. Ele.
— Mocinha da faculdade — Kadu diz, sem sorriso. — Não correu.
Meu peito levanta um decibel.
— Correr por quê?
— Quando o rádio chia, muita gente vira vento.
— Eu não sou muita gente — respondo, e apenas quando as palavras já saíram percebo o quanto soam como desafio. — Tenho coisas a fazer.
Ele me observa. O olhar não é sujo, tampouco suave. É uma análise, como o toque da base da mão dele no peito do cara da moto: preciso, rápido, sem espaço para ilusão.
— As tuas coisas a fazer não passam pelo Bar do Dico hoje — ele informa. — Fecha cedo.
— Não bebo — digo, seca.
— Eu sei — ele devolve, e a informação me atravessa: ele presta atenção. — Tua Dona Celina fica mais tranquila quando tu sobe pela lateral. Vai pela lateral.
Abro a boca, fecho. A raiva e o alívio se engalfinham dentro de mim.
— Eu não pedi escolta.
— Não é escolta. É informação. Escolta é outra coisa — ele conclui, e dá meio passo para o lado, deixando o caminho livre. — Vai, Anna.
Meu nome na voz dele tem efeito de curto-circuito. De novo, me xingo por dentro. Agradeço? Não agradeço? Opto pelo mínimo.
— Boa tarde.
Entro, travo a porta e encosto a testa na madeira. O coração, traidor, parece dançar funk em contramão. Pego um copo d’água, bebo em goles rápidos e me olho no espelho da sala: uma moça de vinte e poucos, cabelo preso de qualquer jeito, olhos que aprenderam a ser firmes. Firmes, não cegos, eu me corrijo.
A noite cai com o barulho do bairro diminuindo em degraus. O baile realmente fecha à meia-noite. Ouço pelo relógio e pela forma como o silêncio agradece. Deito com a janela aberta, o ventilador cuspindo vento morno, e tento ler. As linhas se embaralham com degraus, rádios, uma mão firme que toca um peito alheio e desarma um gesto antes do tiro. Raiva de mim. Raiva dele. Um fio de… desejo, que me recuso a nomear.
A comunidade é um tabuleiro onde às vezes nos colocam como peça; meu projeto de vida é virar jogadora. Amanhã acordo cedo, vou para a faculdade, volto pelo caminho lateral, reviso os conteúdos. Repito o roteiro como quem se protegia com palavras.
Antes de dormir, o pensamento me trai e inventa uma pergunta que eu nunca diria em voz alta: e se a vida resolvesse cruzar nossos caminhos de novo? Viro para o lado, apago a luz e me obrigo a sonhar com diplomas, não com coroas. Mesmo assim, sei que a favela, caprichosa, gosta de repetir cenas até que alguém confesse o que sente.