A manhã começou como tantas outras no Morro do Horizonte. O sol m*l tinha dado as caras, mas já iluminava os telhados de zinco e refletia nas janelas pequenas das casas apertadas. Eu gostava de observar como a vida acordava junto comigo: o barulho do rádio do seu Jorge tocando samba, as crianças correndo com uniforme amassado para a escola, os vendedores ambulantes organizando suas caixas de doces e balas para vender nos ônibus. Tudo tinha um ritmo próprio, uma cadência que só quem morava ali entendia.
Eu me arrumei para mais um dia de rotina. Tinha aula na parte da manhã e, à tarde, daria apoio no curso de reforço para as crianças menores. Esse era um dos meus momentos preferidos: estar perto deles, sentir que podia ensinar algo, ouvir suas histórias inocentes que me arrancavam sorrisos. Não importava o quanto a realidade fosse dura ao redor, aqueles pequenos olhos ainda acreditavam em sonhos.
Vesti uma calça jeans surrada, uma blusa branca simples e prendi o cabelo em um coque alto. Olhei-me no espelho da sala e dei aquele sorriso tímido que minha mãe sempre dizia ser minha marca registrada. Não era vaidade, mas sim o desejo de carregar um pouco de esperança no rosto, mesmo que às vezes o coração estivesse cansado.
Peguei minha mochila e desci a rua estreita que levava até o ponto de ônibus. O movimento já era intenso: motos passando rápido, vizinhas conversando nas portas, o cheiro de café e pão quente se misturando com o de fumaça dos carros. Tudo era tão familiar, tão meu, que eu me sentia parte viva daquela paisagem.
Foi então que percebi algo diferente. Um carro preto parado na esquina, um pouco afastado do movimento principal. Chamou minha atenção justamente porque destoava da cena cotidiana. Não era comum ver um carro daquele porte circulando no morro — vidros escuros, pintura brilhante, motor ainda ligado.
No primeiro instante, não dei muita importância. Continuei andando, fingindo naturalidade. Mas confesso que a curiosidade me corroía por dentro. Quem estaria ali dentro?
De canto de olho, senti que os vidros escuros escondiam alguém que observava o movimento. O coração acelerou um pouco, talvez sem motivo real, talvez só pelo instinto de quem cresce em um lugar onde tudo pode acontecer. O Morro do Horizonte ensinava a gente a ser desconfiado, a reparar nos detalhes, a nunca passar batido pelas coisas estranhas.
Atravessei a rua, e quando meus pés tocaram a calçada do outro lado, uma sensação estranha percorreu meu corpo, como se eu estivesse sendo seguida por um olhar intenso. Não consegui identificar de onde vinha, mas estava ali, grudado em mim.
A vontade de virar a cabeça e encarar o carro foi quase irresistível, mas resisti. Apenas acelerei o passo, tentando disfarçar a inquietação.
Naquele instante, sem que eu soubesse, Erik estava ali, do outro lado do vidro fumê. Seus olhos me acompanhavam, atentos, talvez intrigados. Eu era só mais uma garota comum do morro, mas algo nele o fez parar, observar, reparar em cada detalhe — meu jeito de andar apressado, a forma como segurava a mochila contra o peito, como se fosse um escudo.
Para mim, era apenas um carro preto parado em um canto suspeito. Para ele, eu era a cena que preenchia o retrovisor da sua vida naquele dia.
Continuei meu caminho até o ponto, tentando afastar as sensações estranhas. Respirei fundo e pensei: “Deve ser só mais alguém perdido ou esperando alguém.” Quis acreditar nisso, porque a vida já era complicada o suficiente para criar teorias sobre desconhecidos dentro de carros misteriosos.
O ônibus chegou, e entre o aperto das pessoas e o balanço da viagem, tentei deixar o episódio para trás. Ainda assim, em alguns momentos, a imagem do carro preto surgia de novo na minha mente, como uma sombra silenciosa.
A aula foi tranquila. Gosto de quando consigo me perder nos cadernos, nos livros, nas explicações dos professores. É como se, por algumas horas, o mundo lá fora não existisse. Eu me transformava em alguém com futuro, com possibilidade de ser mais.
Mas ao voltar para casa, no fim da tarde, passei novamente pela mesma rua. O carro não estava mais lá. Senti um alívio estranho, misturado com uma ponta de decepção que não consegui explicar. Talvez fosse só curiosidade m*l resolvida. Talvez fosse o pressentimento de que aquela presença não tinha sido apenas coincidência.
Naquela noite, deitada na minha cama, fechei os olhos e voltei a pensar na cena. Eu, apressada, atravessando a rua. O carro preto, parado, silencioso. A sensação de ser observada.
Não sabia ainda que, dentro dele, Erik tinha me visto. Que os nossos mundos, tão diferentes, tinham começado a se aproximar sem que nenhum de nós tivesse dado um passo direto. Era só o destino, brincando de cruzar caminhos de forma discreta, quase invisível.
O Morro do Horizonte era pequeno, mas cheio de mistérios. E eu tinha certeza de que aquele carro preto ainda voltaria a aparecer.
Segui meu caminho tentando agir como se nada tivesse acontecido, mas o peso daquele olhar invisível me acompanhava como uma sombra. Eu sabia que era só um carro, parado como qualquer outro, mas algo dentro de mim insistia que havia algo diferente ali. O coração batia mais rápido do que o normal, e mesmo entre o barulho do trânsito e das vozes ao redor, o silêncio daquela presença ecoava dentro de mim.
No ônibus, encostei a cabeça na janela e fechei os olhos por alguns segundos. Tentei me convencer de que era paranoia, que a minha imaginação fértil estava criando histórias onde não havia nada. Mesmo assim, voltei a ver o reflexo do carro preto na memória, e a sensação de que havia olhos escondidos atrás do vidro me fez estremecer.
Na escola, sorri como sempre, conversei com as colegas, fiz anotações, participei da aula. Mas em cada intervalo, quando o pensamento se distraía, a imagem retornava. Eu me perguntava: e se alguém estivesse de fato me observando? Quem teria interesse em mim? Eu não era ninguém importante, só mais uma garota do morro tentando estudar e ajudar a família.
Quando voltei para casa à tarde e não vi o carro, respirei fundo, mas a inquietação não foi embora. De noite, já deitada, observei o teto do meu quarto e percebi que algo tinha mudado. Eu, que sempre me sentia em casa nas ruas do Horizonte, agora carregava a estranha sensação de que havia sido escolhida, notada.
O mais curioso era que, no fundo, eu não sabia se isso me dava medo ou se, de alguma forma, me despertava uma expectativa que eu não sabia explicar.