capitulo 4

938 Palavras
Narrado por Miguel Santana O sol já passava das dez, mas o pátio ainda fervia. A tropa tinha sido dispensada depois do treino da manhã, e o barulho da base tinha diminuído. Só dava pra ouvir o som ritmado dos meus passos, o estalo seco da arma descarregando e a respiração firme que marcava o tempo. Eu fiquei. Sempre fico. Pro resto, treino é obrigação. Pra mim, é vício. Montei o circuito no canto do pátio: barril de areia, muro baixo, boneco tático e alvo móvel. Carreguei o fuzil, ajustei o colete e comecei de novo. Um, dois, três passos. Rastejo, rodo, miro. Disparo. Clack. Boom. Eco. O barulho da pólvora misturado ao sol batendo no ferro. O suor escorrendo pro olho. O cheiro do óleo de arma subindo junto com o calor. O corpo dói, mas a mente agradece. Aqui dentro, dor é sinal de que ainda tô inteiro. Mais um disparo. Mais um alvo perfurado no centro. Foco. Respiração. Controle. Foi quando ouvi uma voz rindo atrás de mim: — “c*****o, Santana… tu não cansa, não?” Olhei por cima do ombro. Touro vinha caminhando, o uniforme aberto até o peito, o cabelo bagunçado e aquele cigarro pendurado na boca. O moleque era dois anos mais novo que eu, dezoito anos, mas achava que o mundo girava no ritmo da risada dele. — “Tu devia tá dormindo.” — falei, sem parar o treino. Ele deu uma tragada e soltou a fumaça. — “E tu devia tá lembrando que folga existe. Mas não… o Capitão Santana prefere se matar antes do almoço.” Dei mais dois disparos. A cápsula quente caiu no chão, rolando até o pé dele. Ele chutou de volta. — “Tu sabe que a galera te chama de máquina, né? Nem parece humano.” — “Humano demais.” — respondi, travando o fuzil. — “Por isso treino.” Touro riu. Riso leve, debochado. — “Treina pra quê? Pra matar mais rápido?” Olhei pra ele, sério. — “Pra morrer mais devagar.” Ele ficou quieto por um segundo. Depois soltou uma risada curta. — “c*****o, filosofia essa hora da manhã… já entendi, Capitão Existencialista. Quer um cigarro?” Jogou o maço. Peguei no ar. Olhei o cigarro, depois pra ele. — “Tu sabe que fumar aqui dá gancho, né?” — “Dá, mas também dá paz.” — ele respondeu, acendendo outro. — “E eu prefiro ficar sem folga do que sem cabeça.” Sorri de canto. O moleque tinha aquele tipo de coragem inconsequente que o tempo ainda não curou. Touro era linha de frente, mas com alma de garoto. Queria viver tudo antes de entender o preço. — “Tu devia guardar o fôlego, não a língua.” — falei, acendendo o cigarro também. Ele me olhou, surpreso. — “Olha só… o Capitão fuma! É o fim dos tempos!” — “Não espalha.” — respondi. — “A tropa precisa achar que eu sou de ferro.” Touro deu uma tragada, encostou no muro e soltou a fumaça pro alto. — “De ferro tu é. Só falta aprender a relaxar.” — “Aqui dentro ninguém relaxa, Touro.” — falei, olhando pro horizonte. — “Quem relaxa, morre.” Ele balançou a cabeça, ainda rindo. — “Tá vendo? Tu fala umas paradas que fazem o cara rir e pensar ao mesmo tempo. Mas tu não tem medo de nada, né?” — “Tenho.” — respondi sem hesitar. — “De me acostumar.” O silêncio ficou pesado por uns segundos. O vento trouxe o cheiro de graxa e pólvora velha. Lá longe, o som do helicóptero cortava o céu. Touro chutou uma pedra, desviando o assunto do jeito dele. — “Tu devia sair hoje, cara. Tem um bar novo lá no Centro. Mulher, música, cerveja gelada. A gente chega, e o mundo até parece normal por umas horas.” — “Normalidade é armadilha.” — falei, tragando devagar. Ele riu, balançando a cabeça. — “Tu fala igual padre, irmão. Só que com uma arma no colo.” — “E tu fala demais.” — “É o charme, capitão.” — respondeu, apontando o cigarro pra mim. — “Um dia tu vai sorrir de verdade, eu juro.” Sorri de canto, quase imperceptível. — “Então reza pra viver até lá.” Ele jogou a bituca longe e suspirou. — “Reza nada, capitão. Quem é do BOPE já tá no purgatório faz tempo.” O rádio chiou dentro da base. A voz do sargento ecoou: > “Todos os operadores, pátio central às 13h! Reunião com o comando! Operação nova confirmada!” Touro ergueu as sobrancelhas, animado. — “Olha aí! Nem precisa de bar, já tem festa marcada.” — “Festa?” — perguntei, apagando o cigarro. — “É. Só que nessa, quem erra o passo… não volta pra casa.” Ele riu, deu um tapa leve no meu ombro e saiu andando, ainda com aquele jeito leve de quem não sabe que o mundo pesa mais do que aparenta. Fiquei olhando ele ir embora, o eco dos passos se misturando com o barulho do vento. No chão, a fumaça do cigarro subia lenta, igual o vapor que sai do ferro quente. Peguei o fuzil de novo, respirei fundo e voltei pro circuito. Treinar era o que me mantinha vivo. Porque a guerra, cedo ou tarde, sempre acha o caminho de volta. E eu precisava estar pronto quando ela batesse de novo.
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