Narrado por Miguel Santana
O sol já passava das dez, mas o pátio ainda fervia.
A tropa tinha sido dispensada depois do treino da manhã, e o barulho da base tinha diminuído.
Só dava pra ouvir o som ritmado dos meus passos, o estalo seco da arma descarregando e a respiração firme que marcava o tempo.
Eu fiquei.
Sempre fico.
Pro resto, treino é obrigação.
Pra mim, é vício.
Montei o circuito no canto do pátio:
barril de areia, muro baixo, boneco tático e alvo móvel.
Carreguei o fuzil, ajustei o colete e comecei de novo.
Um, dois, três passos.
Rastejo, rodo, miro.
Disparo.
Clack.
Boom.
Eco.
O barulho da pólvora misturado ao sol batendo no ferro.
O suor escorrendo pro olho.
O cheiro do óleo de arma subindo junto com o calor.
O corpo dói, mas a mente agradece.
Aqui dentro, dor é sinal de que ainda tô inteiro.
Mais um disparo.
Mais um alvo perfurado no centro.
Foco. Respiração. Controle.
Foi quando ouvi uma voz rindo atrás de mim:
— “c*****o, Santana… tu não cansa, não?”
Olhei por cima do ombro.
Touro vinha caminhando, o uniforme aberto até o peito, o cabelo bagunçado e aquele cigarro pendurado na boca.
O moleque era dois anos mais novo que eu, dezoito anos, mas achava que o mundo girava no ritmo da risada dele.
— “Tu devia tá dormindo.” — falei, sem parar o treino.
Ele deu uma tragada e soltou a fumaça.
— “E tu devia tá lembrando que folga existe. Mas não… o Capitão Santana prefere se matar antes do almoço.”
Dei mais dois disparos.
A cápsula quente caiu no chão, rolando até o pé dele.
Ele chutou de volta.
— “Tu sabe que a galera te chama de máquina, né? Nem parece humano.”
— “Humano demais.” — respondi, travando o fuzil. — “Por isso treino.”
Touro riu.
Riso leve, debochado.
— “Treina pra quê? Pra matar mais rápido?”
Olhei pra ele, sério.
— “Pra morrer mais devagar.”
Ele ficou quieto por um segundo.
Depois soltou uma risada curta.
— “c*****o, filosofia essa hora da manhã… já entendi, Capitão Existencialista. Quer um cigarro?”
Jogou o maço.
Peguei no ar.
Olhei o cigarro, depois pra ele.
— “Tu sabe que fumar aqui dá gancho, né?”
— “Dá, mas também dá paz.” — ele respondeu, acendendo outro. — “E eu prefiro ficar sem folga do que sem cabeça.”
Sorri de canto.
O moleque tinha aquele tipo de coragem inconsequente que o tempo ainda não curou.
Touro era linha de frente, mas com alma de garoto.
Queria viver tudo antes de entender o preço.
— “Tu devia guardar o fôlego, não a língua.” — falei, acendendo o cigarro também.
Ele me olhou, surpreso.
— “Olha só… o Capitão fuma! É o fim dos tempos!”
— “Não espalha.” — respondi. — “A tropa precisa achar que eu sou de ferro.”
Touro deu uma tragada, encostou no muro e soltou a fumaça pro alto.
— “De ferro tu é. Só falta aprender a relaxar.”
— “Aqui dentro ninguém relaxa, Touro.” — falei, olhando pro horizonte. — “Quem relaxa, morre.”
Ele balançou a cabeça, ainda rindo.
— “Tá vendo? Tu fala umas paradas que fazem o cara rir e pensar ao mesmo tempo.
Mas tu não tem medo de nada, né?”
— “Tenho.” — respondi sem hesitar. — “De me acostumar.”
O silêncio ficou pesado por uns segundos.
O vento trouxe o cheiro de graxa e pólvora velha.
Lá longe, o som do helicóptero cortava o céu.
Touro chutou uma pedra, desviando o assunto do jeito dele.
— “Tu devia sair hoje, cara. Tem um bar novo lá no Centro.
Mulher, música, cerveja gelada. A gente chega, e o mundo até parece normal por umas horas.”
— “Normalidade é armadilha.” — falei, tragando devagar.
Ele riu, balançando a cabeça.
— “Tu fala igual padre, irmão. Só que com uma arma no colo.”
— “E tu fala demais.”
— “É o charme, capitão.” — respondeu, apontando o cigarro pra mim. — “Um dia tu vai sorrir de verdade, eu juro.”
Sorri de canto, quase imperceptível.
— “Então reza pra viver até lá.”
Ele jogou a bituca longe e suspirou.
— “Reza nada, capitão. Quem é do BOPE já tá no purgatório faz tempo.”
O rádio chiou dentro da base.
A voz do sargento ecoou:
> “Todos os operadores, pátio central às 13h!
Reunião com o comando! Operação nova confirmada!”
Touro ergueu as sobrancelhas, animado.
— “Olha aí! Nem precisa de bar, já tem festa marcada.”
— “Festa?” — perguntei, apagando o cigarro.
— “É. Só que nessa, quem erra o passo… não volta pra casa.”
Ele riu, deu um tapa leve no meu ombro e saiu andando, ainda com aquele jeito leve de quem não sabe que o mundo pesa mais do que aparenta.
Fiquei olhando ele ir embora, o eco dos passos se misturando com o barulho do vento.
No chão, a fumaça do cigarro subia lenta, igual o vapor que sai do ferro quente.
Peguei o fuzil de novo, respirei fundo e voltei pro circuito.
Treinar era o que me mantinha vivo.
Porque a guerra, cedo ou tarde, sempre acha o caminho de volta.
E eu precisava estar pronto quando ela batesse de novo.