Capítulo 33 – A Coroa Tem Que Caber em Mais Cabeças

808 Palavras
Fazia tempo que eu não sentava na roda da quadra sem ser o centro. Mas agora, os olhares não vinham só de cobrança. Vinham de espera. De expectativa. De voz querendo ecoar junto. --- — A gente precisa fazer mais do que remendar buraco — disse Rosa. — A gente precisa começar a construir coisa nova. — Tipo o quê? — perguntei. — Tipo escola sem militar. Posto sem polícia. Lugar de escuta, e não só de socorro. Nando completou: — Cê levantou esse morro com sangue e coragem, Amanda. Mas agora é hora de passar o microfone. De abrir espaço. — Cês querem me tirar? — A gente quer te dividir. Silêncio. — Dividir o trono? — Não. Dividir a luta. --- Essas palavras bateram mais forte que tiro. Porque meu instinto de sobrevivência sempre gritou: comando único. Controle firme. Ordem e proteção. Mas o mundo novo não cabia em cabeça sozinha. A coroa, pesada demais pra uma, precisava se multiplicar. --- — Tá bom — falei. — Então vamo fazer conselho. Vamo ouvir voz, criar voto. Vamo botar o povo pra decidir o rumo junto comigo. Rosa sorriu. — Isso é revolução de verdade. --- Na semana seguinte, criamos o Conselho da Favela Livre. Nome bonito. Sonho mais bonito ainda. Sete cadeiras. Três mulheres. Três homens. E uma vaga rotativa pra jovens da comunidade. Fiz questão de não ser a única a assinar nada. Eu queria pertencer. Não dominar. --- O primeiro encontro foi intenso. — Tem que tirar o lixo da rua principal — disse Dona Fátima. — E abrir espaço pra mães voltarem a estudar — falou Camila, de 17 anos. — E segurança! — gritou Nando. — A gente quer paz sem depender de polícia. Anotei tudo. E no fim da reunião, falei: — A favela tem voz. Agora… vai ter caneta também. --- Gabriel olhava tudo com orgulho. — Cê mudou mesmo, Amanda. — Eu cresci. — Mas não perdeu sua força. — Só entendi que força de verdade… não é mandar. É saber ouvir e continuar de pé. --- O impacto veio rápido. Jornais noticiando: > “Morro do Sul cria modelo de autogestão. Amanda Rodrigues abandona título de rainha e vira coordenadora comunitária.” Sorri ao ler. — Abandona é exagero. — Eu só… redesenhei a coroa. --- Mas nem todo mundo gostou. Mensagens começaram a chegar: > “Virou política agora?” > “Rei morto, rainha fraca. Tá dividindo o que é teu.” > “Se continuar nessa, vai perder respeito. O povo gosta de liderança forte.” Li tudo calada. Mas meu sangue… pegava fogo. --- — Amanda, cê precisa ignorar — disse Gabriel. — Eu não consigo. — Tem gente que só sabe respeitar o medo. Mas você quer mais que respeito. Você quer transformação. — Eu só queria respirar. — Então deixa os gritos pra lá. Quem quer ouvir, vai te ouvir. --- À noite, fui sozinha até o mirante do morro. O lugar onde Darlan costumava sentar. Onde eu encarei a morte pela primeira vez. Onde entendi que liderança era uma sentença, mas também podia ser salvação. --- — Pai, se você estiver vendo isso… — sussurrei pro vento. — Eu tô tentando fazer diferente. Tô tentando ser menos ferro e mais ponte. Menos comando, mais cuidado. Fechei os olhos. E naquele silêncio, senti o morro respirar comigo. Pela primeira vez, em paz. --- No outro dia, Camila me chamou no portão. — Tem um grupo de jovens querendo montar rádio comunitária. — Pra quê? — Pra contar nossas histórias do nosso jeito. — Vocês têm ideia de como fazer? — Nenhuma. Mas temos coragem. Sorri. — Então vocês já têm tudo. --- Rosa chegou correndo mais tarde. — Tu viu isso? — O quê? — A prefeitura marcou reunião com o conselho. — Eles querem ouvir o projeto de vocês. Me calei. — Amanda, cê tá entendendo? — A cidade tá vindo aqui. Pra te ouvir. Pra NOS ouvir. — E agora… quem vai falar? — Você. Balancei a cabeça. — Não. A gente. --- Na reunião, olhei cada rosto ao meu lado. Jovem. Velho. Mãe. Professor. Criança. E quando peguei o microfone, não senti medo. Senti propósito. — Meu nome é Amanda Rodrigues. Mas aqui, ninguém fala sozinho. E hoje, vocês vão ouvir a voz de um morro inteiro. --- O auditório ficou em silêncio. E depois, em aplauso. Mas o mais importante foi o que veio depois: apoio. Projeto aprovado. Rádio liberada. Primeira verba pra biblioteca multiplicada. E o melhor: nenhum crédito só meu. --- Gabriel me abraçou no portão. — Tá vendo o que você começou? — Tô vendo o que a gente tá construindo. — E o trono? — Virou banco coletivo. — E a coroa? — Continua no meu coração. Mas agora… tem várias espalhadas por aí.
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