Fazia tempo que eu não sentava na roda da quadra sem ser o centro.
Mas agora, os olhares não vinham só de cobrança.
Vinham de espera.
De expectativa.
De voz querendo ecoar junto.
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— A gente precisa fazer mais do que remendar buraco — disse Rosa.
— A gente precisa começar a construir coisa nova.
— Tipo o quê? — perguntei.
— Tipo escola sem militar.
Posto sem polícia.
Lugar de escuta, e não só de socorro.
Nando completou:
— Cê levantou esse morro com sangue e coragem, Amanda.
Mas agora é hora de passar o microfone.
De abrir espaço.
— Cês querem me tirar?
— A gente quer te dividir.
Silêncio.
— Dividir o trono?
— Não.
Dividir a luta.
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Essas palavras bateram mais forte que tiro.
Porque meu instinto de sobrevivência sempre gritou:
comando único.
Controle firme.
Ordem e proteção.
Mas o mundo novo não cabia em cabeça sozinha.
A coroa, pesada demais pra uma, precisava se multiplicar.
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— Tá bom — falei.
— Então vamo fazer conselho.
Vamo ouvir voz, criar voto.
Vamo botar o povo pra decidir o rumo junto comigo.
Rosa sorriu.
— Isso é revolução de verdade.
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Na semana seguinte, criamos o Conselho da Favela Livre.
Nome bonito.
Sonho mais bonito ainda.
Sete cadeiras.
Três mulheres.
Três homens.
E uma vaga rotativa pra jovens da comunidade.
Fiz questão de não ser a única a assinar nada.
Eu queria pertencer.
Não dominar.
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O primeiro encontro foi intenso.
— Tem que tirar o lixo da rua principal — disse Dona Fátima.
— E abrir espaço pra mães voltarem a estudar — falou Camila, de 17 anos.
— E segurança! — gritou Nando.
— A gente quer paz sem depender de polícia.
Anotei tudo.
E no fim da reunião, falei:
— A favela tem voz.
Agora…
vai ter caneta também.
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Gabriel olhava tudo com orgulho.
— Cê mudou mesmo, Amanda.
— Eu cresci.
— Mas não perdeu sua força.
— Só entendi que força de verdade…
não é mandar.
É saber ouvir e continuar de pé.
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O impacto veio rápido.
Jornais noticiando:
> “Morro do Sul cria modelo de autogestão.
Amanda Rodrigues abandona título de rainha e vira coordenadora comunitária.”
Sorri ao ler.
— Abandona é exagero.
— Eu só… redesenhei a coroa.
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Mas nem todo mundo gostou.
Mensagens começaram a chegar:
> “Virou política agora?”
> “Rei morto, rainha fraca. Tá dividindo o que é teu.”
> “Se continuar nessa, vai perder respeito. O povo gosta de liderança forte.”
Li tudo calada.
Mas meu sangue…
pegava fogo.
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— Amanda, cê precisa ignorar — disse Gabriel.
— Eu não consigo.
— Tem gente que só sabe respeitar o medo.
Mas você quer mais que respeito.
Você quer transformação.
— Eu só queria respirar.
— Então deixa os gritos pra lá.
Quem quer ouvir, vai te ouvir.
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À noite, fui sozinha até o mirante do morro.
O lugar onde Darlan costumava sentar.
Onde eu encarei a morte pela primeira vez.
Onde entendi que liderança era uma sentença,
mas também podia ser salvação.
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— Pai, se você estiver vendo isso… — sussurrei pro vento.
— Eu tô tentando fazer diferente.
Tô tentando ser menos ferro e mais ponte.
Menos comando, mais cuidado.
Fechei os olhos.
E naquele silêncio, senti o morro respirar comigo.
Pela primeira vez, em paz.
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No outro dia, Camila me chamou no portão.
— Tem um grupo de jovens querendo montar rádio comunitária.
— Pra quê?
— Pra contar nossas histórias do nosso jeito.
— Vocês têm ideia de como fazer?
— Nenhuma.
Mas temos coragem.
Sorri.
— Então vocês já têm tudo.
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Rosa chegou correndo mais tarde.
— Tu viu isso?
— O quê?
— A prefeitura marcou reunião com o conselho.
— Eles querem ouvir o projeto de vocês.
Me calei.
— Amanda, cê tá entendendo?
— A cidade tá vindo aqui.
Pra te ouvir.
Pra NOS ouvir.
— E agora…
quem vai falar?
— Você.
Balancei a cabeça.
— Não.
A gente.
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Na reunião, olhei cada rosto ao meu lado.
Jovem.
Velho.
Mãe.
Professor.
Criança.
E quando peguei o microfone, não senti medo.
Senti propósito.
— Meu nome é Amanda Rodrigues.
Mas aqui, ninguém fala sozinho.
E hoje, vocês vão ouvir a voz de um morro inteiro.
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O auditório ficou em silêncio.
E depois, em aplauso.
Mas o mais importante foi o que veio depois:
apoio.
Projeto aprovado.
Rádio liberada.
Primeira verba pra biblioteca multiplicada.
E o melhor:
nenhum crédito só meu.
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Gabriel me abraçou no portão.
— Tá vendo o que você começou?
— Tô vendo o que a gente tá construindo.
— E o trono?
— Virou banco coletivo.
— E a coroa?
— Continua no meu coração.
Mas agora…
tem várias espalhadas por aí.