Capítulo 04

1153 Palavras
Luna narrando ( maya) Cada passo em direção à entrada do morro parecia pesar toneladas. O Turano se erguia na minha frente como um labirinto sem volta. Eu apertei mais a alça da mochila no ombro, tentando manter a respiração calma, mesmo com o coração batendo tão alto que eu tinha certeza que qualquer um que passasse por mim conseguiria ouvir. A conversa com o senhor Ernani ainda martelava na minha cabeça. Aquela oração… aquelas palavras de fé… só Deus sabia o quanto eu precisava ouvir aquilo. Mas agora eu estava sozinha. Era eu por mim. Vi as primeiras paredes pichadas surgirem, as vielas estreitas se abrindo, gente olhando de dentro das portas entreabertas. Mas a rua em si… tava quase vazia. Era como se o morro tivesse segurando a respiração. Um clima estranho no ar. Tenso. E eu, completamente deslocada. Não demorou muito pra eu avistar o que só podia ser a tal barricada que a Rayane tinha me explicado pelo telefone. Ela me disse que o morro tava “meio fechado”, que tinha que esperar ela descer pra me buscar. Mas eu não podia esperar parada ali no meio da rua, de mochila nas costas e cara de forasteira. Não no estado em que eu tava. Não no Turano. Numa favela, num local que eu nunca tinha entrado. Eu não sei se eu ficava com mais medo do lado de fora ou do lado de dentro, era simplesmente pavoroso das duas formas, eu não sabia nem o que pensar na realidade… Me aproximei devagar. Era um emaranhado de entulho, grades velhas, sacos de areia, cones, um carro queimado encostado de lado e um grupo de uns seis moleques uns mais novos, uns mais velhos todos armados até os dentes. Fuzis pendurados no peito, rádio preso no ombro, olhar desconfiado. Eles me notaram antes mesmo que eu pudesse abrir a boca. — Ô, ô, ô! — um deles gritou, já se adiantando com a mão levantada. — Qual foi, boneca? Parou aí, tá maluca? O morro tá fechado, p***a! Ta maluca de ir passando assim, tá achando que tá na Disney, c*****o! Parei na hora. A garganta secou. O peso da mochila parecia me puxar pro chão. Engoli em seco e tentei manter a voz firme. — Eu… eu sou a prima da Rayane da 15. Ela… ela tá me esperando. O moleque me olhou de cima a baixo. Alto, magro, rosto marcado de espinha, mas os olhos… aqueles olhos carregavam uma malícia que me arrepiou inteira. — É mesmo? E ela não te avisou que aqui não tá entrando ninguém hoje, não? Tá geral fechado, tá ligado? — Ela… ela disse que vinha aqui me buscar. Eu só… só tô esperando, eu vou ficar na casa dela... Outro moleque se aproximou. Mais velho. Braço fechado de tatuagem, olhar mais pesado. Me analisou como se eu fosse um pacote suspeito. — Tá achando que é assim, é? Que vai subir só porque falou que é prima da fulana? Ninguém tá subindo, boneca. Fica aí na moral ou tu vai arrumar um problema que nem sabe de onde vem. Toda perdida no bagulho — ele fala bolado — tu é bonitinha mas nós enche tua cara de bala se ligou ? Meu peito apertou. O medo me travou por dentro. Mas eu não podia fraquejar. Não ali. Não naquele momento. Eu tinha vindo pra sobreviver. Não podia voltar pra trás. Não tinha mais pra onde voltar. E eu não ia deixar meu irmão vencer. Respirei fundo, mesmo com a vontade de chorar crescendo de novo. — Eu não sou problema. Só quero ficar na casa da minha prima. Não tenho outro lugar pra ir. — minha voz saiu trêmula, mas verdadeira. Os moleques se entreolharam e meu estômago virou. Era como se cada segundo ali pesasse uma eternidade. Fechei os olhos por um instante, tentando conter as lágrimas que ardiam. Não era medo do morro. Era o peso de tudo que eu carregava. Era o cansaço. Era o luto. Era a revolta. Eu tava ali pra sobreviver. Mas tudo em mim ainda gritava de dor. A Rayane chegou logo em seguida, ofegante, correndo pra me abraçar. — Meu Deus, prima! Você tá bem? Desculpa, não sabia que o morro ia fechar justo hoje… — ela chorava, apertando forte meus ombros. Eu tentei responder, mas não consegui o som de uma moto se aproximando me fez abrir os olhos. E ali, descendo feito um raio, veio ela: uma mulher loira, de rosto bonito e forte, olhos verdes que saltavam mesmo de longe, que eu ainda não conhecia, deve ser mulher dele, sei lá… mas a mina era gata demais mesmo! E que homem em? Meu olhar tava preso naquele homem em cima da moto. Ele me olhava como se tivesse vendo um fantasma. E por um segundo, juro… parecia que o mundo parou. Meu coração quase parou. Não sei explicar. Um arrepio me percorreu da cabeça aos pés. Ele tava de fuzil no ombro, cara fechada, olhar cortante. Não falava, só olhava. Mas o olhar dele me atravessou como uma lâmina afiada. Como se ele pudesse enxergar tudo que eu carregava por dentro. Toda a dor. Toda a culpa. Todo o medo. E pela primeira vez em dias… eu me senti exposta. De verdade. Ele virou o rosto pro rádio, soltou um “Liberada.” seco, sem tirar os olhos de mim. E aquilo… aquilo me desmontou por dentro. Quem era ele? Por que meu corpo inteiro reagiu àquele olhar? Por que a dor dele parecia conversar com a minha? Meu peito doía. Minhas pernas tremiam. Mas segui, abraçada à Rayane, tentando entender o que acabava de acontecer. Atrás de nós, o ronco da moto ecoava, e no retrovisor, os olhos daquele homem ainda estavam ali, cravados em mim. Eu não sabia quem ele era. Mas alguma coisa me dizia que aquele não seria o último olhar que ele me daria. Meus passos eram pesados, como se cada degrau daquele morro sugasse um pouco mais da pouca força que eu ainda tinha. Eu sentia as pernas bambas, o peito travado, e a cabeça… a cabeça era um turbilhão que não me deixava respirar direito. A Rayane me puxava pela mão, falando alguma coisa, mas no começo eu não ouvia. Só ouvia o eco do que tinha acabado de acontecer lá embaixo. A ameaça dos moleque. O olhar daquele homem ainda grudava na minha pele como fogo. Eu não sabia explicar. Não sabia por que tinha me atingido tanto. Mas ali, naquele momento, eu não podia pensar nisso. Porque a minha vida… meu mundo… tudo tinha sido destruído. E eu não sabia nem por onde começar a catar os cacos e eu não sei mais o que fazer, eu só preciso de um tempo, um tempo pra colocar tudo no lugar e poder voltar pra minha cidade com a minha dignidade restaurada… Continua…
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