Ellis sorriu, pequeno, com um misto de orgulho e tristeza.
— Vai dar certo, Donna. Mas saiba que, onde quer que vá, o sangue Amorielle ainda corre em você. Você pode esconder o nome... mas não pode apagar quem você é.
— Eu não quero apagar. Só... entender. Só... respirar por conta própria.
Ellis assentiu.
— Só não se esqueça de onde veio.
— Nunca. — garantiu Donna.
Então Ellis caminhou até a porta, abriu-a com delicadeza e, antes de sair, se virou mais uma vez.
— Só mais uma coisa — disse com a voz calma, mas carregada de uma promessa implícita.
Donna ergueu o rosto, já esperando que não seria algo leve.
— O quê?
— Já que você se inscreveu como Donna Smith, então você será uma freshman. — Ellis arqueou uma sobrancelha. — Portanto, é bom se preparar.
Donna franziu a testa, desconfiada.
— Eu já fiz a inscrição. Já foi. Não tem mais nada a ser feito.
Ellis deu uma risadinha seca, balançando a cabeça como se estivesse diante de uma criança ingênua.
— E é aí que você se engana. Agora é que você tem muito o que fazer.
Donna cruzou os braços.
— Como assim?
Ellis encostou o ombro no batente da porta, com os olhos fixos na filha.
— Já que escolheu ser Donna Smith, vai ter que garantir que o passaporte esteja válido, cuidar de vistos, seguros de saúde, matrícula presencial, contato com os advisors da universidade...
Donna mordeu o lábio inferior, desconfortável.
— Eu… eu forjei.
— Eu sei — Ellis disse, séria. — Mas como uma boa mãe americana, jamais admitiria que minha filha burlasse o sistema. Então, enquanto essa inscrição não for aprovada, você vai correr atrás de todos os documentos verdadeiros. Então, enquanto isso não estiver regularizado, você não vai a lugar nenhum.
— Mas como eu vou fazer isso? — Donna arregalou os olhos. — É impossível. Eu não sou uma cidadã americana, legalmente.
Ellis se afastou da porta, caminhando alguns passos de volta ao quarto. Seus olhos estavam firmes, e sua voz, suave como gelo.
— Você é uma mulher adulta. Inteligente. Como você mesma disse, a certidão é verdadeira. Então, encontre uma solução. Essa é a beleza de ser “normal”: ninguém faz as coisas por você.
Donna bufou, encarando a mãe como se esta tivesse acabado de lhe pedir para atravessar o Atlântico a nado.
— Você não pode estar falando sério.
— Estou falando mais sério do que nunca.
— Isso é punição?
— Não. Isso é oportunidade. — Ellis endireitou os ombros. — E não termina aí.
Donna passou a mão pelo rosto, como se tentasse acordar daquele pesadelo.
— Tem mais?
— Muito mais. Você vai ter que começar a pesquisar bairros seguros perto do campus. Procurar acomodações estudantis ou repúblicas. Verificar transporte, custos de vida. — continuou Ellis. — Você quer ser uma pessoa normal? Uma estudante anônima? Então viva como uma.
— Tudo bem, isso é fácil — disse Donna, tentando manter a compostura.
— Claro que é — assentiu Ellis. — Só que pra isso, você vai precisar abrir uma conta em banco americano. E nada de movimentações financeiras ligadas à família. Nada de depósitos suspeitos vindos da Suíça ou de contas offshore com sobrenome Amorielle. Nenhuma transferência suspeita, nenhum depósito anônimo.
Donna ficou em silêncio. O mundo que ela havia idealizado desabava em pequenas ruínas. Cada detalhe deixado de lado agora se erguia diante dela como uma muralha. Finalmente, encarou a mãe, atordoada:
— Mas todos os meus recursos estão ligados à família…
Ellis assentiu, calma.
— Pois é. E agora você vai ter que dar um jeito nisso. Afinal… você é Donna Smith. E a Donna Smith não é rica, poderosa, e nem filha de um dos homens mais temidos da Europa.
— Eu não pensei nisso… — sussurrou Donna, sentindo o pânico crescer no peito como fumaça n***a subindo por uma chaminé.
— Então está na hora de pensar. — Ellis cruzou os braços, como quem não aceitava menos do que uma revolução —Você sempre teve tudo. Agora vai ter que conquistar. Você não quer viver como uma pessoa normal? Então, descubra como viver com o que uma pessoa normal tem. A começar com um emprego.
— E como espera que eu consiga um emprego? Eu nunca trabalhei. Não como ela. A Donna Smith não tem currículo, não tem histórico, não tem referência!
Ellis sorriu.
— Perfeito. Então é um novo começo.
— Um novo começo? — Donna riu sem humor. — Eu sou uma Amorielle, mãe. Você tem ideia do que está pedindo?
— Tenho. Porque eu mesma já fiz isso. — Ellis deu um passo à frente, a voz mais baixa, mais íntima. — Foi você mesma que me lembrou que eu fui Ellis Barker muito antes de ser Ellis Amorielle. Eu fui garçonete em uma lanchonete. Eu morei em uma casa no Brooklyn e pegava metrô às cinco da manhã. E foi lá que eu descobri quem eu realmente era, não entre colunas de mármore e tapetes persas.
Donna engoliu em seco.
— Eu não conseguiria emprego nenhum…
— Bom, para sua sorte, tenho um emprego perfeito pra você.
Donna estreitou os olhos, desconfiada.
— O quê? Que tipo de emprego?
— Amanhã você saberá, mas já posso adiantar: vai odiar.
Antes que Donna pudesse protestar, Ellis se virou. Caminhou até a porta com a mesma suavidade com que havia entrado. E, com a mão na maçaneta, completou:
— Amanhã, vista algo confortável. E sem maquiagem. Donna Smith não precisa parecer perfeita. Enquanto isso, corra atrás dos seus documentos, os verdadeiros.
E então ela se foi.
Sozinha, Donna olhou para o reflexo no espelho. Pela primeira vez, ela não viu a herdeira dos Amorielle. Viu apenas uma jovem assustada, mas determinada. E talvez… só talvez… isso fosse um bom começo.
***
Na manhã seguinte, Donna foi acordada por uma batida firme na porta. Era Ellis. Usava uma calça jeans escura, blusa branca e um blazer cinza claro — americana clássica. Havia um brilho determinado em seu rosto.
— Levanta. Tem uma entrevista às nove.
— Entrevista?
— Para seu novo emprego.
— Aqui em Pedesina?
— Não. Em Como. Já que você quer uma vida normal, vai começar com um emprego normal.
Trinta e cinco minutos depois, elas estavam no carro, Ellis dirigindo pelas estradas sinuosas da Lombardia como se estivesse em missão diplomática.
— Pode me dizer onde é? — Donna perguntou, desconfiada.
— Um café. Tradicional. Famílias. Turistas. Paga pouco, exige muito.
— Barista?
— Não. Garçonete.
Donna arregalou os olhos.
— Você tá brincando.
— Nunca falei tão sério.
— Eu não sei atender pessoas!
— Vai aprender. A maioria aprende. As pessoas normais aprendem. Esse é o ponto, lembra?
Donna cruzou os braços, encolhida no banco do passageiro.
— E se alguém me reconhecer?
— Você é Donna Smith. Ninguém vai reconhecer você. Mas se reconhecerem, é porque você ainda não está fazendo certo.
***
O café se chamava Vecchio Fico. Pequeno, elegante, com mesas na calçada de pedra antiga, envolto por parreiras e o aroma doce de espresso.
O dono era um homem robusto e calvo chamado Paolo, de expressão desconfiada e olhar clínico. Falava pouco, mas observava tudo. Após uma conversa rápida com Ellis, pediu que Donna o acompanhasse até os fundos, onde entregou um avental, uma bandeja, e um bloco de anotações.
— Sabe carregar três xícaras de uma vez?
— Não.
— Aprenda. Hoje.
Donna o encarou, e pela primeira vez na vida, foi tratada como qualquer outra pessoa tentando um emprego. Era libertador. E aterrorizante.
***
As primeiras horas foram desastrosas.
Derrubou um cappuccino em um americano impaciente. Errou dois pedidos de croissant. Levou um expresso onde pediram chá. Levou chá onde pediram água. Uma criança chorou porque ela não entendeu que “sem espuma” significava “sem espuma mesmo”.
Às 13h, estava exausta, com os cabelos presos em um coque frouxo e manchas de café na blusa branca que Ellis havia separado para ela.
Mas então, algo mudou.
Na terceira tentativa, conseguiu equilibrar três xícaras na bandeja. Paolo não sorriu, mas assentiu, discretamente.
Uma senhora a chamou de volta à mesa para dizer que ela tinha um “olhar gentil”.
E, por um instante, Donna percebeu que ninguém ali fazia ideia de quem ela era. Ninguém a temia. Ninguém queria algo dela. Ninguém esperava que fosse perfeita. Era só mais uma garota aprendendo a servir café.
E isso, paradoxalmente, era tudo o que ela sempre quis.
***
Ellis a buscou ao final do expediente. Donna entrou no carro, sentando-se com cuidado como se tivesse saído de uma guerra.
— E então? — Ellis perguntou, sem tirar os olhos da estrada.
Donna encarou o par de mãos sujas de espuma de leite, cheias de pequenas queimaduras de vapor.
— Eu odiei.
— Eu disse que você odiaria.
Um silêncio confortável se formou entre as duas. O sol se punha atrás das montanhas, tingindo o céu com tons dourados e rubros.
Donna então sussurrou, quase imperceptível:
— Mas… eu gostei de ser a Donna Smith. Por algumas horas, pelo menos.
Ellis sorriu. E não disse nada. Porque sabia que aquela era a resposta que importava.