Lucas Andrade
Faz quase um ano desde que escolhi o isolamento — ou, talvez, ele tenha-me escolhido. Desde o dia em que perdi tudo o que dava sentido à minha vida. Quando Marisa morreu naquele acidente, não foi apenas ela que se foi. Um pedaço de mim morreu junto, e o resto se estilhaçou quando descobri que ela carregava nosso filho. O fruto do nosso amor. A promessa silenciosa de que éramos feitos um para o outro… e que, por minha imprudência, nunca chegaria a existir.
Eu poderia ter parado. Poderia ter ouvido quando ela pediu para descansar, para encontrarmos um hotel e esperarmos a chuva passar. Mas a pressa, a teimosia — talvez o orgulho — fizeram-me continuar dirigindo em meio ao temporal. Ignorei as advertências, o perigo, os sinais. E foi ali, naquela estrada escura e molhada, que tudo acabou. Perdi o controle. O carro girou, capotou… e Marisa foi lançada para longe de mim, para longe de qualquer hipótese de sobrevivência.
Desde então, o meu único refúgio tem sido a velha casa dos meus pais na colina. Longe da cidade, das pessoas, da vida. Um lugar onde o sinal de celular m*l funciona e onde a ‘internet’ falha mais do que conecta. Exatamente o que eu queria: silêncio. Solidão. Castigo.
Mas hoje alguma coisa mudou.
Recebi uma mensagem de Sabrina — uma das poucas pessoas com quem ainda mantenho contato — dizendo que Camilly estava a caminho. Fugindo dos olhares, da humilhação, da dor que agora a perseguia. Assim como eu.
E, por mais que eu não quisesse conviver com ninguém, não podia negar ajuda. Não com Sabrina pedindo. Não com Camilly precisando.
Enquanto esperava, uma mistura estranha tomava conta de mim. Lembranças da infância surgiam — de como Camilly sempre chamava atenção com aquele carisma natural, aquele sorriso que iluminava qualquer ambiente. Nunca fomos próximos, mas era impossível não notar quando ela chegava. Agora, tantos anos depois, estaríamos dividindo o mesmo teto. Em qualquer outro momento, isso pareceria improvável. Agora… era apenas inevitável.
Precisava esfriar a cabeça. Andei pelo quintal por longos minutos, tentando imaginar como seria ter alguém novamente tão perto. Após meses com apenas os meus pensamentos — e meus fantasmas — como eu iria lidar com uma presença viva? Real?
Quando finalmente voltei para dentro, tudo mudou em um segundo.
Entrei no quarto… e ela estava ali.
Camilly.
Deitada na minha cama.
A luz suave da tarde destacava cada curva, cada traço, cada detalhe que confirmava o óbvio: ela havia se tornado uma mulher ainda mais linda do que eu lembrava. Forte, delicada… desejável.
E, por um momento, esqueci que não deveria olhar daquele jeito.
Perguntei-me como Fred — aquele i****a — teve coragem de trair uma mulher como ela. Éramos da mesma idade e estudamos a vida inteira juntos, mesmo que nunca tivéssemos sido amigos. Eu fui embora para a França, e ele começou um namoro aparentemente perfeito com Camilly. Um conto de fadas... até não ser mais.
Afasto esses pensamentos imediatamente. Não posso permitir que eles cresçam.
Desço para a cozinha, tentando focar em algo simples — preparar café. Preciso ignorar a perdição que repousa no meu colchão. Pelo menos não da forma como a minha mente, traidora, insiste em sugerir.
Balanço a cabeça, expulso todos os pensamentos indevidos e volto para o quarto já, mais calmo.
— Camilly! — exclamo, surpreso, mesmo sabendo que ela estava aqui. — Eu não esperava… encontrar você desse jeito.
Ela arregala os olhos, claramente constrangida.
— Lucas… — a sua voz sai baixa, tremula. — Eu não queria invadir nada. Só… não consegui pensar direito.
Dou alguns passos até ela, parando a uma distância respeitosa.
— Sabrina me contou o que aconteceu. Sinto muito, Camilly. De verdade. Eu não consigo imaginar a dor que você está sentindo.
A simples menção faz os seus olhos transbordarem. Novas lágrimas escorrem.
— Eu não sei o que fazer, Lucas. Meu mundo desabou. Eu confiava no Fred. Eu… amava ele. E agora tudo acabou.
Sem pensar, a envolvo num abraço. Um abraço firme, de proteção. De conforto. Algo que eu não oferecia a ninguém há meses.
— Ei… você não está sozinha. — digo contra os seus cabelos. — Vamos passar por isso juntos.
Ela chora mais forte, os ombros tremendo. E, por algum motivo, a dor dela desperta a minha. Aquela que escondo de todos. Aquela que me corrói em silêncio.
— Ele não merece as suas lágrimas, Camilly — digo, enxugando o seu rosto com delicadeza. — Você precisa descansar. Respirar. Esquecer esse i****a… pelo menos por alguns dias.
Ela inspira fundo, tentando se recompor.
— Obrigada, Lucas. A sua presença… significa muito para mim.
Seguro as suas mãos, ignorando o pequeno choque elétrico que percorre os meus dedos.
— Você é forte. Corajosa. Não deixe que essa traição defina quem você é. Você merece alguém que te ame de verdade. Que te respeite. E eu vou apoiar-te em tudo o que precisar.
Ela me observa em silêncio. Depois, algo muda no seu olhar — um reconhecimento silencioso. Como se ela enxergasse em mim algo que ninguém mais percebeu.
— Lucas… eu também estou aqui para você. Se quiser conversar… desabafar… eu vou ouvir.
Desvio o olhar, incapaz de sustentar aquela sinceridade por muito tempo.
— Obrigado. Mas… há coisas que eu preciso lidar sozinho. Não é fácil explicar.
— Eu entendo — ela diz. — Mas não precisa se isolar do mundo.
Solto um riso amargo.
— Fala a garota que fugiu do próprio casamento.
Ela levanta o rosto, ferida.
— Eu não fugi. — a sua voz quebra. — Eu encontrei o meu futuro marido na cama com a Lorena minutos antes da cerimônia. E você queria o quê? Que eu sorrisse e ganhasse o prêmio de “corna do ano”? Não dá, Lucas.
Você pode não lembrar, porque você sumiu assim que comecei a namorar o Fred, mas ninguém imaginava que ele seria capaz disso.
Ela vira o rosto, tentando conter a dor, e sai do quarto sem olhar para trás. As lágrimas escorrem. E, ao vê-las, a culpa me atinge como um soco no estômago.
Vou atrás dela, mas paro ao ouvir os seus soluços na sala. Me sinto um monstro. Um i****a. O mesmo i****a que destruiu a própria vida.
Saio de casa. O ar da noite bate forte no meu rosto enquanto pego o celular. Há apenas uma pessoa que pode me ajudar com isso.
Sabrina.
A minha irmã sempre sabe o que fazer. E, agora, mais do que nunca, eu preciso dela para não estragar tudo com a Camilly.