📖 CAPÍTULO 4 — CATARINA
Saí do gabinete da Madre com o coração quente, leve, cheio.
Era como se cada passo pelo corredor ecoasse diferente não barulho, mas sentido.
Como se o chão reconhecesse que eu acabara de dizer um sim que ia moldar o resto da minha vida.
A luz entrava pelas janelas longas e brancas, desenhando faixas douradas no chão encerado.
Eu passava por elas como quem atravessa um símbolo.
Freira.
Não ainda… mas logo.
A primeira porta estava prestes a se abrir.
Segui pelo corredor, caminho direto para a capela, como ela tinha pedido.
Mas no meio do trajeto, algo me puxou.
Algo que eu já vinha sentindo fazia dias discreto, educado… mas insistente.
Como uma mão tocando meu ombro pela metade.
Pare.
Olhe.
Repare.
E eu reparei.
Meu passo desacelerou.
Meu coração também.
Antes de entrar na capela, parei diante da porta de madeira escura.
A imagem de Cristo esculpida ali sempre me dava paz.
Mas naquele momento, deu também… coragem.
Coragem de pedir o que eu nunca pedia.
Eu que nunca pedi nada para mim.
Respirei fundo.
Ajeitei o véu.
Segurei o terço com mais força do que eu gostaria de admitir.
E voltei.
Voltei pelo corredor silencioso até a porta da Madre.
Bati.
— Entre, filha — ela respondeu, a mesma voz serena de sempre.
Abri devagar.
Ela levantou os olhos do livro que lia, surpresa suave no rosto não surpresa desconfiada, só surpresa de quem conhece seu rebanho e sabe quando algo foge do padrão.
— Catarina? Aconteceu algo?
Fechei a porta.
A mão no terço.
O coração pulando como se quisesse falar antes de mim.
— Madre… — minha voz saiu mais baixa do que eu pretendia. — Eu… queria pedir uma permissão.
Ela endireitou a postura, atenta.
— Diga, filha.
Engoli o ar.
Mais forte que medo.
Mais firme que dúvida.
— Eu gostaria de visitar meus pais.
O silêncio caiu entre nós como neve.
Lento.
Frio.
Sem pressa.
A Madre franziu o cenho não em reprovação, mas em análise profunda.
— Visitar… seus pais? — repetiu.
Assenti.
— Sim, Madre.
Ela apoiou as mãos na mesa, entrelaçou os dedos.
O olhar dela atravessou o meu como uma lâmina gentil — cortando só o necessário para encontrar o núcleo.
— Filha, você não visita sua família há dois anos completos.
— Eu sei — respondi com calma. — Mas… sinto que preciso ir.
Ela manteve o silêncio por um instante, como quem conversa internamente com Deus antes de dar uma resposta.
— Seu pai ainda vive na comunidade onde vocês moravam, correto?
Meu peito apertou.
O nome daquele lugar, mesmo sem ter sido dito, trouxe imagens rápidas:
o beco estreito, o barulho das motos, o cheiro de fritura no óleo velho, a roupa no varal, o barulho constante.
O morro.
A nossa casa simples.
A rotina dura.
E meus pais.
Os dois.
Sempre lutando.
Sempre cansados.
Sempre vivos.
— Sim, Madre — respondi. — Ainda lá.
Ela respirou fundo, apoiando as mãos na mesa.
— Sabe que… o morro é perigoso.
— Sei. — respondi de imediato.
— E ainda assim deseja ir?
— Desejo. — firme. — Não por saudade apenas. Mas… — procurei a palavra — por responsabilidade.
Antes de dar meu sim definitivo… preciso olhar nos olhos deles.
Quero que saibam.
Quero que entendam.
Quero que vejam quem eu me tornei.
A Madre me olhou longamente.
E eu soube que ali estava o julgamento mais importante daquela conversa.
Não julgamento de condenação julgamento de verdade.
Ela apoiou o queixo sobre os dedos entrelaçados.
— E você sabe, filha… que não é qualquer morro.
Aquele lugar vive sob tensão constante.
E o atual… comando… não é exatamente conhecido pela paz.
Meu coração bateu mais rápido.
Eu sabia.
Todo mundo sabia.
Até no convento, mesmo sem televisão, sem rádio, sem nada… as notícias encontram caminho.
— Sei, Madre — disse, firme, sem baixar os olhos.
Ela me estudou.
Por longos segundos.
Depois, respirou devagar.
— Você não está pedindo para sair para o mundo… — ela disse, com suavidade. — Está pedindo para voltar a uma raiz.
E a raiz, por mais simples, é parte da vocação também.
Não se serve ao altar fugindo da própria história.
Meu peito se abriu.
Calor.
Alívio.
Gratidão.
— Então…? — perguntei, sem ousar completar.
A Madre sorriu.
Sereno.
Aquele sorriso que sempre parece saber mais do que diz.
— Concedo sua permissão.
Você poderá visitar seus pais este domingo, após a missa das oito.
Voltará antes do pôr do sol.
Vai acompanhada de outra irmã, como manda a regra.
E… — ela fez uma pausa — seja prudente, filha.
O mundo fora daqui tem ruídos que o coração não deve levar para dentro.
Assenti, emocionada.
— Sim, Madre. Eu serei.
Ela abriu mais o sorriso.
— Vá à capela agora. Agradeça. E prepare o espírito.
O caminho de volta às origens, às vezes, ensina mais do que todos os livros juntos.
Inclinei a cabeça, respeitosa.
Saí.
O corredor pareceu diferente.
Como se eu estivesse atravessando dois mundos ao mesmo tempo:
o da paz que me moldou…
e o da história que me fez nascer.
No domingo…
eu desceria o morro de Deus
para subir o morro da minha vida.
Desci o corredor até a capela e empurrei a porta devagar, como quem pede licença para entrar no silêncio.
A luz das velas tremia baixinha.
O cheiro de incenso abraçava o ar.
A cruz acima do altar parecia olhar direto pra mim não com cobrança, mas com um tipo de carinho que só o sagrado entende dar.
Ajoelhei.
E ali, com o joelho tocando o chão frio, fechei os olhos e deixei o coração falar sem frase pronta:
“Obrigada, Senhor, por confiar em mim.
Pelos passos que me desse, pelos que faltam.
E… por me guiar de volta aos meus pais.
Que eu leve paz. Que eu volte em paz.”
Demorei ali.
Não contando o tempo vivendo ele.
Quando me levantei, a alma estava ajeitada no lugar certo.
Voltei para o corredor e segui até o claustro, onde as outras noviças sempre se reuniam na hora livre.
O pátio interno tinha as paredes brancas, o chão de pedra clara e um pequeno jardim no centro que sempre cheirava a hortelã quando ventava.
As meninas estavam lá sentadas em bancos de madeira, conversando baixinho como quem compartilha segredos que não são proibidos, só delicados demais pro mundo de fora.
Quando me aproximei, elas abriram espaço.
— Catarina! — Clara chamou, sempre meiga demais pra idade que tinha. — A Madre falou com você? A gente viu você indo pro gabinete…
Sorri pequeno.
— Falou sim.
Os olhos delas brilharam de curiosidade, mas nenhuma perguntou o que não devia.
No convento, respeito é hábito também.
Mesmo assim, todos aguardavam a novidade que eu não podia contar voto temporário só se anuncia na missa, nunca antes.
Então, desviaram o assunto para algo mais leve.
— A gente estava falando… — disse Irmãzinha Júlia, as bochechas já vermelhas de tanto rir — sobre o porquê de cada uma querer ser noviça. A Clara disse que desde pequena queria ser missionária, a Rita disse que foi porque a tia era irmã consagrada… e eu… — ela riu — bom, eu achei bonito o hábito quando era criança e nunca tirei isso da cabeça.
As outras riram.
Era doce ouvir aquilo.
Verdadeiro.
Até que Clara virou pra mim com aquela curiosidade limpa:
— E você, Catarina?
Por que quis ser noviça?
Pensei antes de responder não por dúvida, mas por respeito à profundidade da pergunta.
— Porque aqui… — toquei o próprio peito — eu encontro paz.
E paz, pra mim, sempre foi um milagre.
Eu quis aprender a servir, a cuidar, a ser útil.
E… porque senti que Deus me chamou.
Do jeito dEle.
No tempo dEle.
As meninas sorriram, assentiram.
Era resposta simples, mas não leve.
E elas entenderam.
Mas aí… Júlia, sempre atrevida na medida exata que uma noviça pode ser, inclinou a cabeça e soltou:
— Catarina… posso perguntar uma coisa… íntima?
Eu já imaginei pela expressão.
E realmente…
— Você… quer dizer… antes de vir pra cá…
Você nunca…?
As outras arregalaram os olhos, indignadas.
— Júlia! — Clara cutucou — isso não se pergunta!
Ela riu, cobrindo o rosto com o véu.
— Ah, eu só falei! A gente estava comentando que quase todas aqui já teve ao menos um beijo na vida antes de entrar. Eu só fiquei curiosa…
Todas me olharam.
Meu rosto esquentou não de vergonha r**m, mas da timidez que eu guardava como quem protege uma flor pequena demais pro vento.
Respirei fundo.
E falei.
— Não.
Nunca beijei ninguém.
Silêncio.
Depois, Clara sorriu, doce.
— Você nunca… quis?
Pensei honestamente.
— Não — respondi, tranquila. — Não senti falta.
Nunca me fez falta o que nunca chamou meu coração.
Clara suspirou, como se achasse aquilo bonito.
Júlia arregalou os olhos, impressionada.
— Nossa… que pureza!
— Não é pureza — corrigi com calma. — É escolha.
Sempre tive outras urgências dentro de mim.
Outras prioridades.
Outros chamados.
A conversa ficou leve depois disso.
Júlia riu, Clara mudou de assunto, Rita comentou sobre a missa do domingo.
E eu fiquei ali, com elas, ouvindo, ajudando, rindo junto.
Mas por dentro…
…um vento estranho passou por mim.
Não r**m.
Não perigoso.
Só… presságio.
Como se, lá longe, muito longe num lugar onde a fumaça sobe antes do sol alguém estivesse falando meu nome sem nunca ter me visto.