Sendo o melhor com eles e para eles

1455 Palavras
Sombra O bagulho aqui na Penha é jogo de cintura, parceiro. Não adianta só meter pressão no morro, tem que desenrolar no oficial também. Hoje cedo já mandei aquela moral no pé quente da polícia, meu contato lá dentro, o mano que sempre vai abre caminho e fecha os olhos quandoprecisa.r. Peguei o celular e liguei. - Fala, irmão, como é que tá as paradas? _ perguntei. - Tranquilo, chefe. Operação tá de lado, deixa os teus na moral que ninguém chega. - É isso aí que eu gosto de ouvir, parceiro. Escuta, vou mandar uma grana boa pra tu segurar o esquema, sei que tu não deixa a favela se ferrar. - Já tô ligado, chefe, sem vacilo. - Então, mantém a força onde tem que ter, fecha o olho pro que não precisa, e fica ligado nos inimigo que tão querendo bater de frente com a gente. Se algum espertinho inventar de passar do ponto, me avisa que a gente resolve rápido. - Pode crer, mano. Tu fica tranquilo que o bagulho tá na mão. Desliguei e soltei um sorriso frio. Enquanto a rua ferve lá fora, aqui dentro a gente mexe as peças certas, faz a política do crime funcionar. Chamei o Cirilo na sala e passei o recado. - O papo é esse: grana entrando, problema saindo, operação na favela? Só se for na conta deles, que a nossa tá garantida. Quero ronda discreta, pressão só onde tem que ter, e nada de vacilo pra me ferrar o corre. - Tá suave arrombado, o bagulho vai ficar no esquema, ninguém vai nem sentir. - Exato, parceiro. Quem vacilar, cai fora. Enquanto isso, o dinheiro já circula, a polícia fica mansa e o morro segue de pé. É assim que o poder se mantém: não só na bala, mas na mão que alimenta e na cabeça que pensa. O corre hoje foi frenético, bagulho de resolver pendência com fornecedor, dar recado pra vapor folgado e ainda lidar com a pressão do morro vizinho querendo testar terreno. Mas no final do dia, quando eu encostei em casa e fechei a porta atrás de mim, foi como se tudo desligasse. Pelo menos por uns minutos . Cheguei meus casa, segui ate a porta, tirei a camisa suada. Entrei em casa, O Arthur tava lá, jogado no tapete com uns carrinhos espalhados, todo concentrado numa corrida imaginária que só existia na cabeça dele. Assim que me viu, o moleque abriu um sorriso tão puro que chegou a doer no peito. - Papaaaaai! _ gritou todo animado, correndo e agarrando minhas pernas. - Qual foi, bandidozinho do meu coração? _ falei pegando ele no colo e girando no ar. O moleque gargalhava daquele jeitinho que só criança sabe fazer, aquele som que parece limpar qualquer sujeira da alma. - Brinca comigo, papai? - Bora, fiote, mas antes deixa o coroa respirar um pouco. Papai tá só o pó. A vó dele apareceu na porta da cozinha, rindo. - Esse menino não parou um minuto desde que acordou. Tá ligado no 220. - Igual o pai dele, né mãe. _ falei sentando no sofá com Arthur no colo. - Moleque parece que tem pilha. Arthur se ajeitou no meu peito, brincando com a corrente de ouro no meu pescoço. - Papai... a mana vem hoje? Sorri fraco. Só de ouvir ele falar da Heloísa já me dava aquele orgulho. - Não hoje, filho. A mana tá com a mãe dela. Mas amanhã ela vem passar o dia com a gente, beleza? - Êbaaa! _ ele comemorou todo empolgado.- Quero mostrar meu carrinho novo pra ela. - Vai gostar sim. Ela sempre gosta das tuas paradas. Heloísa é outra parada. Dez anos já, tá crescendo rápido, inteligente pra caralh0. Mora na pista com a mãe, que graças a Deus é uma mulher de postura, me respeita e a gente se entende bem. Faço de tudo pra tá presente mesmo de longe. Ela é mais calada, observadora, puxou a mim. Mas quando a gente tá junto, o olhar dela fala mais que qualquer coisa. Arthur encostou a cabeça no meu peito e fui passando a mão no cabelinho dele devagar. - Tu sabe que o papai te ama, né? - Te Amo também, papai. _ Ele respondeu meio mole, os olhinhos já pesando de sono. - Tu e tua irmã são tudo pra mim, meu cria. O resto é só bagulho que a vida joga. Fiquei ali em silêncio, com ele adormecendo no meu colo. Olhei pro teto e respirei fundo. No meio de tanta sujeira, tanto corre, tanta merda... são esses dois que me fazem continuar. Por eles, eu mato, morro e se precisar... sumo do mundo. No fundo, eu só queria garantir que nenhum dos dois precisasse seguir o caminho que eu segui. Nem Arthur, nem Heloísa. Que eles fossem livres dessa porr@ toda. Mas por enquanto... o pai deles ainda tem muita guerra pra travar. (...) O dia m*l tinha começado direito e eu já tava de pé. O sol nem tinha se esticado todo no céu, mas minha mente já tava ligada no corre, e hoje ainda tinha um compromisso que pesava mais que qualquer entrega, que qualquer boca funcionando, que qualquer guerra: buscar minha cria, minha princesa, minha Heloísa. Tomei meu café em silêncio, vesti uma bermuda preta, camisa básica e meu cordão, e desci pro carro. O radinho tava no bolso, ligado, mas por enquanto deixado de lado. Hoje, o tempo era dela, deles na verdade. Liguei o som num volume suave, só pra cortar o silêncio da manhã, e fui. O caminho até a casa da mãe dela era tranquilo, já fiz aquele percurso tantas vezes que se meu carro tivesse alma, ia sozinho. Parei em frente ao prédio e buzinei de leve. Não demorou muito e lá vinha ela, toda estilosa, com a mochila nas costas e aquele sorrisinho que só ela tem. A mãe dela apareceu na porta junto, acenou de longe. A gente não tem mais nada, mas o respeito permanece. E isso é o que importa. - E aí, princesa? _ falei abrindo a porta pra ela. - Oi pai! _ Ela entrou toda empolgada. - Tava morrendo de saudade. - Também tava, minha rainha. Hoje o dia é nosso. Ela colocou o cinto e já começou a puxar assunto, contando da escola, das amigas, dos livros que tava lendo. Fico só ouvindo, admirando a inteligência da minha cria. É centrada, esperta. Muito diferente do que o povo acha que sai de um dono de morro. E é isso que me move: provar que ela pode ter um caminho diferente. Chegamos na minha casa, Arthur já tava acordado comendo fruta na cozinha com a vó. Assim que viu a irmã, o moleque abriu um sorrisão. - Manaaa! _ gritou, saindo correndo e agarrando ela pelas pernas. - Oi irmãozinho! _ respondeu rindo e se abaixando pra abraçar ele. - Que saudade de você! Fiquei na porta só observando. Aquilo ali era minha maior riqueza. Pode vir polícia, pode vir guerra, pode vir o que for… enquanto eu tiver eles dois, eu tô no lucro. - Bora aproveitar esse dia. O pai hoje tá 100% com vocês _ falei entrando, pegando Arthur no colo e bagunçando o cabelo da Heloísa com a outra mão. - Vai fazer o almoço, pai? _ ela perguntou sorrindo. - Pô, vocês me quebram. Mas vou sim, vou meter meu famoso e strogonoff. - Ebaaa! _ os dois comemoraram. - Depois a gente joga videogame? - A gente joga o que vocês quiserem. Hoje não sou o Sombra, hoje sou só o pai de vocês. Ali naquela casa, naquele momento, não tinha crime, não tinha corre, não tinha radinho. Tinha só um pai tentando fazer o certo. (...) Tava tranquilão na minha quando um dos meus vapores me mandou um áudio. - Fala tu chefia. então, só pra te avisar que chegou moradora nova hoje aqui na quebrada. A mulher se mudou agora pouco, chegou de mala, cria e tudo. Falaram que é da Rocinha… dizem que o bagulho lá foi doido. Só te mandei esse papo pra ver se tu quer saber qual é a fita, né. Vai que a mina tá envolvida em alguma parada aí. Se quiser, já boto alguém pra puxar a ficha. Mas se tu quiser ver com teus próprios olhos, tá na tua mão, chefe. Fala tu. - Pô, hoje não dá não fiote, tô com meus cria aqui, não vou sair pra nada. Mas amanhã mesmo eu vejo esse bagulho aí. Fica de olho, qualquer gracinha me avisa… mas deixa quieto por enquanto, não quero ninguém apertando a mina não. Amanhã eu vejo qual é a dela.
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