capitulo 02

1301 Palavras
Manu narrando Eu nunca gostei de chamar atenção. Sempre achei que quanto menos gente soubesse da minha vida, melhor pra mim. No morro, boca aberta é convite para problema. E eu já aprendi cedo demais que quem fala muito acaba se ferrando. Por isso, até hoje, pouca gente sabe que eu sou aviãozinho. Prefiro assim. Não me acho a mais esperta, não, mas sei que quanto mais discreta eu for, menos chance eu tenho de ser entregue para polícia. Já vi vizinho que achava que todo mundo era amigo se dar m*l, ser denunciado, ser pego na esquina e nunca mais voltar. Eu não quero esse fim pra mim. Hoje eu tinha que fazer uma entrega no asfalto. Era pouca coisa, mas era daquelas que exigiam cuidado redobrado. Eu sempre me concentro muito nesses momentos, respiro fundo e me finjo de invisível no meio do movimento. Carrego a encomenda como se fosse nada, como se fosse só mais uma menina voltando da feira ou indo visitar parente. O segredo é parecer normal, sempre. Com a morte do Foguete, tudo mudou. Ele era quem fazia a ponte entre o Dadinho e a rota das drogas que caíam no meu colo pra eu levar. Agora não tinha mais esse elo. Estranho pensar assim, mas, no fundo, achei melhor. Porque de certa forma eu não precisava mais ficar indo direto na boca toda hora. Foguete sempre foi bom, mas no fim, cada morte aqui é só mais uma lembrança de que nada dura. A entrega de hoje foi tranquila. Mais do que eu esperava, na verdade. Fiz meu papel, recebi o dinheiro e já queria dar o fora dali. Sempre fico tensa até o último segundo, com medo de ser seguida, de ser parada, ou de alguém desconfiar. Mas deu tudo certo. Quando guardei o dinheiro, senti aquele alívio gostoso percorrer meu corpo, tipo a certeza de que pelo menos por hoje o meu dever já havia sido cumprido e agora eu poderia voltar para casa. A primeira coisa que fiz ao sair da boate foi ligar pro Dadinho, para contar que estava tudo certo e eu já estava no ônibus. Mas o telefone dele só chamava, chamava, e nada. Estranhei, porque ele sempre atende, nem que seja pra falar rápido. Tentei de novo, e de novo, e nada. Respirei fundo e pensei que o melhor era ir direto pra casa, até porque a vontade de ir ao banheiro já tava gritando em mim. Passei pela barreira de cabeça baixa igual eu sempre fiz. Subi as vielas parecendo um foguete porque eu precisava muito ir ao banheiro. O morro tava do mesmo jeito de sempre: moleque soltando pipa, mulher gritando no portão, música alta estourando de uma casa pra outra. Mas, ao chegar na minha porta, o choque me paralisou. Minha casa… meu canto, meu refúgio… estava toda quebrada. A porta entreaberta, o sofá virado, os pratos no chão em pedaços. Senti o chão sumir debaixo dos meus pés. Entrei devagar, como se cada passo pudesse revelar uma tragédia maior. Meu coração batia tão rápido que parecia que ia rasgar meu peito. Fui andando pela sala, olhando os cacos espalhados, tentando entender o que tinha acontecido. “Será que invadiram?”, pensei. Mas logo essa ideia saiu da minha cabeça porque todo mundo sabe que é proibido roubar nem que seja uma bala de morador. Subi as escadas olhando todos os cômodos, e então, com a respiração pesada, empurrei a porta do quarto. Foi aí que vi. O Dadinho estava jogado no chão, caído em cima de uma poça de vômito. Meu estômago embrulhou na hora com o cheiro forte de álcool misturado com aquela cena horrível. — Meu Deus, Dadinho. — gritei, correndo até ele. Ajoelhei ao lado dele, sacudi seus ombros, tentando acordá-lo. Ele resmungou, abriu os olhos meio pesados, vermelhos, e tentou falar alguma coisa, mas só saiu um gemido. O cheiro era insuportável. Era claro: ele estava bêbado e drogado demais, destruído. Sem pensar duas vezes, puxei ele com toda força que eu tinha. — Vamos, levanta. — falei, colocando o braço dele por cima do meu ombro. Arrastei ele até o banheiro, tropeçando nos cacos que estavam pelo caminho. Liguei o chuveiro na água gelada, sentei ele no box de roupa e tudo e deixei a água cair. Ele começou a se debater, tentando se livrar da água fria. — Para, Manu. — ele gritou, tentando empurrar minha mão. — Tá gelada, p***a. — É pra acordar, Dadinho. — respondi firme, mas meu coração doía de ver ele naquele estado. — O que aconteceu com você? Ele respirou fundo, olhou pra mim com os olhos marejados e falou com a voz embargada: — Eu tô cansado, Manu… cansado de dar meu melhor no morro e não ser reconhecido. — Eu engoli seco. — Do que você tá falando? Ele virou o rosto, lágrimas se misturando à água que caía. — Escolheram o Danzinho e o Leto para serem os de frente… eles vão assumir junto com o novo dono que chega em alguns dias. Eu fiquei de lado. Como se eu fosse nada. Meu peito apertou. Eu sabia que aquilo era o maior medo dele: não ser visto, não ser respeitado. Ele sempre quis mostrar serviço, conquistar espaço. E agora, diante dessa decisão, ele estava desmoronando. — Não fala assim… — tentei acalmá-lo, mas antes que eu conseguisse, ele me empurrou com força. Eu caí sentada no chão molhado, sentindo o frio da água respingar em mim. Olhei pra ele, que chorava descontrolado, misturando raiva e dor. — Eu dei tudo de mim, Manu. Tudo! — ele gritava, batendo as mãos no azulejo. — E pra quê? Pra ser tratado como lixo! Fiquei ali, no chão, sem saber o que fazer além de tentar ser presença. — Você não é lixo, Dadinho. Você é muito mais do que isso. Ele chorava tanto que parecia uma criança perdida. E eu, mesmo machucada pelo empurrão, só queria acalmá-lo. — Eu tô aqui, tá? — falei baixinho. — Eu tô aqui com você. O tempo foi passando. Uns trinta minutos ali dentro, com a água caindo, o cheiro de álcool se diluindo, e ele foi voltando para si. A respiração dele acalmou, os olhos ficaram menos pesados. Ele parecia quase sóbrio. — Tira essa roupa molhada — falei, me levantando. — Senão vai acabar doente. Ele me olhou em silêncio, respirou fundo e começou a tirar a roupa pesada e encharcada. Eu desviei o olhar, respeitando o momento, e saí do banheiro. Fechei a porta atrás de mim e fui pra sala. Quando vi a bagunça de novo, meu coração despencou. Tinha coisas quebradas ali que eram dos meus pais, lembranças pequenas que eu guardava como tesouro. Um porta-retrato rachado, um vaso que minha mãe tinha ganhado da patroa quando ainda trabalhava de faxina… memórias que ninguém nunca vai entender o valor. Me ajoelhei no chão, pegando os cacos um por um, e senti as lágrimas caírem sem que eu conseguisse segurar. Não era só a bagunça da casa. Era a bagunça da minha vida. Era a sensação de que, mesmo quando tudo parece que vai dar certo, vem uma onda e derruba tudo. Limpei o vômito com as mãos trêmulas, respirei fundo e continuei. Eu precisava arrumar. Precisava, de algum jeito, salvar o pouco que restava do meu mundo. E ali, no meio daquela sujeira, percebi o quanto eu estava cansada também. Cansada de carregar peso, de tentar ser forte o tempo inteiro. Mas, ao mesmo tempo, eu sabia que não podia parar. Porque se eu parasse, quem ia segurar o Dadinho? Quem ia segurar a mim mesma? A vida nunca me deu escolha. E, mais uma vez, eu só tinha uma opção: juntar os pedaços e seguir em frente.
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