Manu narrando
Acordei cedo porque hoje eu tinha que levar uma entrega lá na boate do senhor Jorge, já que a posse do dono do morro acabou atrasando um pouco as entregas.
De todos os lugares que eu tenho que entregar, lá é um dos lugares que eu mais odeio ir, porque o senhor Jorge é meio s*******o. Toda vez que vou lá ele fica dizendo que eu daria uma ótima dançarina pra boate dele, que se eu trabalhasse lá ia ganhar muito dinheiro. Eu sempre deixo claro que nunca tive interesse nenhum em trabalhar lá, que aquilo ali não era vida pra mim, porque eu não tenho coragem de fazer aquelas coisas que aquelas mulheres fazem por dinheiro. Não julgo, até porque cada um tá no seu corre pra se virar e se bancar do jeito que dá. Mas eu particularmente não consigo, e é um tipo de profissão que eu nunca seguiria.
Hoje o Dadinho trabalhou no turno da noite, então a hora que eu tava saindo com a droga, ele tava chegando pra dormir.
— Vai lá e qualquer coisa você me liga, beleza? — ele falou me dando um beijo.
— Beleza. — ajeitei a bolsa nas costas.
Nesses momentos eu agradeço por não ser muita droga, porque chama menos atenção.
Fui descendo o morro de boa, e esse horário geralmente é tranquilo. A única coisa que a gente vê são as crianças indo pra escola de manhã, alguns moradores indo pro serviço e os meninos do corre na função, de um lado pro outro.
Tava chegando na barreira quando aproveitei pra pedir meu Uber. Gosto de andar assim porque penso que, se chegar ser parado numa blitz, consigo me sair da situação mais rápido.
Como não sou de falar muito com as pessoas do morro, eu só abaixei a cabeça e segui meu caminho. Sempre fui mais fechada na minha, porque acho que amizade demais acaba dando intriga e fofoca, e eu corro de problema.
Chegando na boate, assim que desci do carro, o segurança do senhor Jorge já abriu a porta pra eu entrar, porque ele me conhece. As meninas já estavam encerrando o plantão noturno, já que a boate só funciona à noite.
Ainda tinha dois clientes no bar, e como eu sempre fui muito cismada, nunca trato de negócios na frente de todo mundo. Sempre achei melhor acharem que eu tô ali pra ver alguém do que pra trazer droga.
— Você deve ser a Manu, certo? — uma moça loira se aproximou de mim.
Balancei a cabeça confirmando, sem dizer muito.
— O senhor Jorge teve um problema e pediu pra eu receber a encomenda que você traria e te entregar o dinheiro. Você me acompanha até o escritório?
Na hora já fiquei com o pé atrás. Olhei em volta, achando tudo muito suspeito.
— Acho melhor eu voltar outra hora, quando ele tiver aqui pra poder entregar a encomenda.
— Não precisa se preocupar, eu sou enteada dele e agora vou ajudá-lo a comandar as coisas por aqui. — falou como se estivesse sendo obrigada a estar ali. Eu fiquei avaliando, pensando se deixava ou não a carga. — Eu te dou a minha palavra que você pode confiar em mim. Até porque, nas próximas vezes que você vier, vai ser comigo também que você vai tratar.
Suspirei fundo. Parte de mim dizia pra ir embora, mas outra lembrava que atrasar mais entrega podia dar r**m.
— Tá bom. — falei, seca.
Fomos subindo as escadas até o escritório. Assim que ela fechou a porta, me olhou de cima a baixo e apontou pra cadeira.
— Que leva uma mulher tão linda igual a você a fazer esse tipo de coisa? Você não tem medo de ser pega pela polícia?
Aquela pergunta só aumentou minha desconfiança.
— Olha só… pensando bem, eu volto outro dia pra fazer a entrega. — falei já pronta pra sair.
— Mulher, eu tô falando que você pode tratar comigo. Eu nem queria estar nesse lugar porque eu odeio isso tudo. Então, por favor, não dificulte ainda mais o meu dia. — ela parecia desesperada.
Respirei fundo. Vai ser o que Deus quiser.
Comecei a tirar a droga da bolsa, ela pegou e colocou na gaveta, igual o Jorge fazia. Pegou uns bolos de dinheiro e me entregou. Joguei tudo dentro da bolsa sem contar na hora não gosto de dar muita bandeira.
Me preparei pra sair, quando ela mais uma vez me fez pergunta:
— Mas sério… você não tem medo? Não acha arriscado demais?
Olhei bem nos olhos dela antes de responder:
— Medo eu tenho de passar fome e necessidade. Quando você cresce tendo que aprender a se virar, medo vira coisa relativa.
Ela ficou quieta, só engoliu seco. Saí dali sem olhar pra trás, já chamando meu Uber.
No caminho de volta, fiquei pensando nessa loira. Tinha algo nela que achei muito estranho, mas não sei dizer o que é. Não sei se era o jeito forçado de querer se aproximar ou a curiosidade exagerada sobre minha vida. No corre, a gente aprende rápido: quanto menos gente sabe de você, melhor.
Dentro do carro, fiquei encarando a rua pela janela. Vi gente comum indo e vindo, trabalhadores, mães levando filhos na escola. Às vezes me bate aquela dúvida: “E se eu tivesse escolhido outro caminho?”. Mas logo lembro que as contas não se pagam sozinhas.
Chegando no morro, desci antes da barreira e segui a pé. Sempre faço isso pra não chamar atenção. Passei pelos meninos do corre, que só cumprimentaram com a cabeça. Eu respondi do mesmo jeito.
Quando cheguei em casa, Dadinho já tava apagado no quarto. Deixei o dinheiro escondido no canto de sempre e fui tomar um banho demorado. A água escorrendo parecia levar um pouco da tensão da manhã.