Dois Batimentos

905 Palavras
Karen caminhava lentamente pelo corredor do hospital, segurando um envelope branco com força entre os dedos. O ar-condicionado gelava sua nuca, mas sua pele ardia em ansiedade. Por mais que tentasse se distrair, o turbilhão de pensamentos dentro de sua cabeça era incontrolável. Voltou no tempo por alguns instantes: aos últimos dias, às náuseas inesperadas, à tontura no meio de uma reunião importante, ao teste escondido que fizera em casa sem contar a ninguém — nem mesmo a David. E agora ali estava, diante de uma confirmação oficial. Sentou-se em um banco do saguão e respirou fundo antes de abrir o envelope. A primeira linha do exame saltou diante de seus olhos: Beta HCG: Positivo. Ela não sabia se ria ou chorava. O coração batia tão rápido que parecia querer escapar do peito. Fechou os olhos e encostou a cabeça na parede. Era real. Estava grávida. --- David mexia em esboços e gráficos quando Karen entrou no escritório de casa. Ele levantou os olhos e sorriu ao vê-la. — Você sumiu hoje — disse. — Heitor ligou duas vezes perguntando se você ia na reunião sobre a exportação para a Colômbia. Ela se aproximou devagar, tirou o envelope da bolsa e o entregou a ele. David franziu a testa. — O que é isso? — Lê. Ele abriu e percorreu as linhas com os olhos. Ao chegar à parte central do exame, sua expressão mudou. Primeiro, surpresa. Depois, silêncio. E então... emoção. — Isso é sério? — perguntou, com a voz embargada. Karen assentiu. — Eu ia esperar mais um pouco pra contar, mas... não consegui. David passou as mãos no rosto, como se tentasse organizar o que sentia. — Meu Deus... nós vamos ter um filho? — Sim. Ele deu um passo à frente e a abraçou forte, como se estivesse segurando o universo nos braços. — Você acabou de me dar o maior presente da minha vida, Karen. Ela sorriu contra o peito dele. — Eu também estou assustada, sabia? — A gente vai aprender juntos. Eu prometo estar com você em cada passo. Prometo ser o pai que o nosso filho merece. Prometo cuidar de vocês dois com a minha vida. Karen olhou nos olhos dele. — Três. — O quê? — São dois batimentos, David. Dois corações. O silêncio que seguiu foi tão intenso que quase se podia ouvir o próprio tempo parar. Ele piscou, confuso. — Você tá dizendo que são... — Gêmeos. David levou a mão à boca, rindo e chorando ao mesmo tempo. — Isso é inacreditável. — Pois acredite — disse ela, tocando o próprio ventre. — Nosso amor cresceu mais do que a gente imaginava. --- Nos dias seguintes, a notícia se espalhou apenas entre os mais próximos. Heitor, ao saber, derramou uma lágrima escondida no banheiro antes de voltar para a sala de reuniões. D. Lourdes, a governanta de Karen desde que ela era adolescente, quase desmaiou de emoção. David, por sua vez, não conseguia parar de sorrir. Levava frutas, vitaminas e flores para Karen todos os dias, fazia questão de aprender receitas saudáveis e lia artigos sobre gravidez enquanto ela dormia ao seu lado. — Está parecendo mais ansioso que eu — brincou ela uma noite. — É que quero ser o melhor pai possível. — Então começa deixando eu comer chocolate em paz — disse ela, rindo, com uma barrinha na mão. — Justo — respondeu ele, entregando um copo de leite com um guardanapo que dizia: “Para os três corações que eu amo”. --- Mas nem tudo era tranquilidade. Uma noite, Karen acordou com uma sensação estranha. Foi até o escritório e ligou o computador para rever contratos pendentes. Ao acessar o servidor da empresa, notou algo incomum: uma pasta com arquivos criptografados, recém-criada, mas sem assinatura digital válida. Chamou Heitor pela manhã, e juntos rastrearam a origem. — Alguém tentou acessar nossos dados de produção e fornecedores — disse ele. — Mas não conseguiram copiar nada. Só que isso mostra que estão tentando de novo. Karen fechou os olhos por um instante. Aquela sensação de ameaça voltava a se aproximar como uma sombra fria. — Tem ideia de quem possa ser? — Ainda não. Mas quem for, está mais ousado do que antes. Ela olhou pela janela, com os braços cruzados. — Agora não estamos mais sozinhos, Heitor. Eles não vão tocar na minha família. --- Em meio à descoberta da gravidez e às ameaças veladas, David também enfrentava seus próprios desafios. O novo empreendimento que estava abrindo, chamado “Valente Orgânicos”, começava a ganhar vida. Com foco em produtos sustentáveis, comércio justo e transparência, ele montou uma pequena sede em São Paulo e chamou antigos colegas de confiança para começar a estruturação. Karen foi visitar o espaço pela primeira vez em um sábado de manhã. — É pequeno, mas cheio de potencial — disse ele, enquanto mostrava cada cômodo com orgulho. — Tem cheiro de recomeço — respondeu ela, passando a mão por uma bancada ainda empoeirada. — E esse recomeço só é possível porque você acreditou em mim. Ela se aproximou e segurou o rosto dele. — Eu acredito em quem enfrenta os próprios fantasmas. Você os enfrentou... e venceu. — Ainda estou vencendo. A cada dia. A cada escolha. Karen sorriu. — Que bom. Porque agora somos quatro. David a puxou para um abraço, sentindo o mundo girar mais devagar ao redor deles.
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