Quando acordei no dia seguinte, já tratei de ajeitar tudo o que tinha que ser feito para o almoço que papai queria. Ele me ajudou no começo da manhã mas logo disse que tinha coisas para resolver, normalmente eu não perguntava o que ele tinha que fazer, mas isso não me impedia de ficar com certa curiosidade. A menos de um mês, o reverendo anda bastante pela cidade, pelo menos ele diz que está andando pela cidade, não que eu duvide, mas eu não vejo. Queria que papai conversasse comigo para me contar o que acontece por ai, como ele me faz contar o que acontece comigo, não seria r**m se a confiança fosse reciproca.
Consegui terminar a maior parte das coisas antes do meio dia e decidi tomar um banho, apenas para lavar o cabelo que provavelmente estava com o famoso cheiro de cozinha. Logo depois, desci as escadas vendo que papai ainda não tinha chegado, logo seria 12h e ele ainda não tinha aparecido, eu não queria ter que receber a família Meyer sozinha.
A campainha tocou enquanto eu lavava algumas louças, e eu rapidamente olhei pela janela para ver o carro de meu pai estava na calçada.
Péssima escolha.
Havia um carro estacionado perto de minha casa, mas não era de meu pai, e também não era do reverendo Meyer. Era de Aaron. Meu coração disparou, eu estava pronta para enfartar, não queria que meu pai chegasse e me pegasse conversando com aquele rapaz. Sequei as mãos rapidamente e me dirigi até a porta da frente visivelmente assustada.
– O que você pensa que está fazendo aqui? – Exclamei assim que abri a porta. Coitado do rapaz, m*l dei tempo dele falar alguma coisa e já parecia que eu o estava expulsando.
Tecnicamente, eu queria mesmo.
– Bom dia pra você também. – Soltei o ar de meus pulmões enquanto ele sorria vendo minha reação. – Minha família vem almoçar aqui hoje, eu acho que ainda sou um dos Meyer.
– Eu não duvido disso. – Fechei os olhos por um momento e quando os abri encontrei os olhos verdes de Aaron em minha frente. – Você sabe que não foi convidado não é mesmo?
Ele deu de ombros se fazendo de cínico e eu queria estar com a frigideira agora pronta para acertar sua cara bem em cheio. Mas infelizmente não daria tempo de fazer isso, o carro de meu pai virou a esquina e meu coração parou, eu ia morrer.
Estava implorando para que Deus tivesse piedade da minha alma naquele momento. Tudo parecia acontecer em câmera lenta como se eu estivesse em um filme; papai estacionando logo atrás do carro de Aaron, e saindo do carro, sua expressão já não era das melhores assim que nos viu na porta de casa conversando, sem dúvidas, eu ia escutar alguma coisa bem r**m depois. Pelo menos nos filmes os finais são felizes, e eu nunca sei o que esperar do final quando meu pai está envolvido.
Olhei para o chão visivelmente envergonhada por estar fazendo "algo errado" assim que meu pai se aproximou de nós. Aaron continuava ali com sua expressão irônica, parecia querer desafiar meu pai.
Péssima escolha.
– Eu posso te ajudar em alguma coisa, rapaz? – O reverendo Kevin ignorou totalmente a minha presença ali, e eu me senti imponente de fazer com que Aaron respondesse algo que não fizesse meu pai voar em seu pescoço.
– Soube que tinha um almoço para minha família, resolvi aparecer, tentar me aproximar mais de todo mundo. – Meu estomago embrulhou de nervosismo. Aaron respondia tudo com tanto sarcasmo que eu sentia que aquele almoço acabaria em um fiasco.
– Eu pensei que só o reverendo, sua mãe e sua irmã viriam. – Meus olhos se arregalaram pela inocência que meu pai falou cada palavra. Nem parecia que ele tinha convidado os outros de proposito, apenas para que o rapaz não viesse até nós. Papai sabia disfarçar bem as coisas, mas isso beirava cinismo.
Encarei Aaron tentando adivinhar o que ele responderia, um sorriso irônico de quem estava prestes a falar algo realmente r**m apareceu em seu rosto e eu senti uma leve dor de cabeça só de pensar no que sairia dos seus lábios.
Era melhor intervir.
– Eu o convidei. – Minha voz saiu de uma vez, quase um chute. Ambos se viraram para mim percebendo que eu ainda estava ali e eu percebi que papai agora podia pular no meu pescoço. Tive que respirar algumas vezes até conseguir falar novamente. – Eu precisava de ajuda com a porcelana que estava em cima do armário, e como Aaron estava passando eu resolvi chamar por ele. Já que é a família dele que vai almoçar aqui, não vi nenhum problema em pedir uma mãozinha.
Por mais que eu quisesse que tudo aquilo saísse de forma firme pelos meus lábios, eu tinha certeza absoluta que em algum momento minha voz falhou. Eu não sabia mentir, eu não gostava de mentir. Se meu pai não fosse contra a presença de Aaron ali não teríamos esse problema.
– Bom, já que é um convidado de minha filha, quem sou eu para lhe impedir? – Um sorriso falso tomou conta do rosto de meu pai – Se todos são bem-vindos na casa de Deus, a minha casa é igual a igreja. Fique à vontade Aaron.
Me afastei da porta deixando que os dois entrassem e quase sufoquei quando papai passou por mim, ele parecia furioso e eu apenas respirei fundo tentando ignorar aquilo. Eu queria que os dois se aproximassem, fazer papai parar de ter tanta represaria contra o garoto, o rapaz só não era da igreja, o que tinha de errado nisso? Aaron também não ajudava muito mas não me custava muito tentar.
– Papai, porque o senhor e Aaron não colocam a mesa? – Dei a ideia brilhante logo depois de fechar a porta. Aquilo saiu pela minha boca antes da hora pela expressão que eles fizeram. – Eu vou até meu quarto me vestir, antes que os outros convidados cheguem e vocês podem fazer isso juntos, não é mesmo?
Quando Deus fizer o juízo final, papai vai lembrar de dizer que eu mereço o inferno só pelo que eu propus. Observei enquanto ele fazia uma careta mostrando suas rugas, pronto para recusar de alguma maneira.
– Vai ser um prazer. – Aaron falou antes que papai, e eu apenas agradeci mentalmente por dessa vez ele não ter usado seu veneno mais conhecido como sarcasmo.
Agora papai parecia assustado, talvez não esperasse que o rapaz fosse um pouquinho legal.
Sussurrei um ok, muito aliviada por eles concordarem em algo, e passei no meio dos dois subindo as escadas até meu quarto. Bati a porta do quarto como se estivesse fugindo de alguma coisa e me encostei na mesma escorregando até estar sentada no chão. Esse almoço ia ser um desastre eu podia sentir. Respirei fundo por alguns minutos e me convenci que precisava levantar e me trocar para finalmente descer, antes que papai e Aaron entrassem em conflito. Peguei o primeiro vestido que vi dentro do guarda-roupa e me enfurnei dentro do banheiro de meu quarto com vestido em mãos. Prendi o cabelo em um r**o de cavalo alto deixando meu rosto bem visível e sorri para o espelho depois de passar um pouco de brilho nos lábios. Papai não gostava quando eu passava maquiagem nenhuma, mas eu teimei um pouco.
Coloquei o vestido o ajeitando em meu corpo, e quando tentei fecha o zíper ouvi batidas na porta do banheiro.
– Papai? – Perguntei e tornei a ouvir batidas novamente, mas meu pai não respondeu, será que não podia falar? Soltei um suspiro e girei a tranca da porta com vergonha abrindo apenas um pouco, eu estava com o vestido no corpo mas apenas saber que o zíper estava aberto já me deixava com as bochechas vermelhas. Minha maior surpresa foi ver um par de olhos verdes assim que olhei pela fresta da porta que eu tinha aberto. – Aaron, como sabia que esse era meu quarto? – Minha voz saiu a mais estranha possível, eu não queria que meu pai ouvisse a gente, e mesmo sabendo que ele estava no andar de baixo isso não facilitava as coisas.
Tentei fechar a porta na cara dele, mas Aaron sorriu com o movimento e empurrou a porta sendo mais forte que eu, assim a porta se abriu totalmente, eu sabia que não podia medir forças contra ele. Dei um passo para trás com certo medo, eu não sabia o que ele podia fazer comigo ali dentro, principalmente sabendo que eu não chamaria meu pai por medo também. Desde de que aquele homem me encontrou na rua no outro dia, eu não tinha cabeça para ficar sozinha com nenhum cara.
– Com dificuldades para fechar o zíper, Pietra? – Ele perguntou, calmo e sereno como se não soubesse que a minha expressão assustada significava que meu pai poderia pegar nós dois ali e pensar besteira.
Meu pai iria pensar que Aaron queria me usar.
– Não, nenhuma. – Respondi o mais firme e forte que eu pude, tudo o que eu mais queria no momento era que ele fosse embora dali, eu precisava que ele saísse. – Pode sair daqui, agora.
Empurrei Aaron que já estava parcialmente dentro do banheiro, para o lado de fora, e dessa vez ele não reclamou, apenas deu risada e foi. Fechei a porta encostando minha testa na mesma, respirando fundo como se tivesse corrido uma maratona, mas a sensação não deixava de ser essa. Desde que o Meyer apareceu, eu precisava pensar dez vezes antes de fazer alguma coisa que o envolvesse. Ele ia me levar a loucura.
Fechei o zíper do vestido orando mentalmente para que tudo se acalmasse, e aquele almoço terminasse logo. Abri a porta do banheiro vendo Aaron sentado em minha cama, ele não tinha que ter saído do meu quarto quando eu o expulsei do banheiro?
– Eu pensei ter peido que você saísse daqui. – Minha voz ainda estava estranha, eu não queria que meu pai nos pegasse ali, de verdade. Aaron apenas me olhava e sorria.
– Eu não sou muito de fazer favores. – Seu sorriso de lado me fez perder os olhos em seu rosto, eu nunca sabia exatamente o que ele estava pensando. – Meus pais já devem estar chegando.
– Então por que você não desce? – Reconheço que dessa vez eu acabei sendo rude, mas era disso que ele precisava para entender que eu não queria tudo aquilo.
Caminhei fortemente até a porta, pronta para mandar ele para fora e me afastar de toda a tensão que ele carregava. Coloquei a mão na maçaneta da porta pronta para abri-la, mas uma mão forte segurou meu braço antes disso, e Aaron me puxou, me colocando de frente para ele e colando minhas costas contra a porta. Eu engoli o gritinho que quis sair pelos meus lábios e soltei apenas um suspiro forte. Se meu pai me encontrasse nessa situação, mandaria nós dois pro inferno.
– Pietra... – Fechei meus olhos ao ouvir ele sussurrar meu nome assim, tão próximo do meu rosto. – Você já tentou imaginar como seria sua vida fora daqui? – Me encolhi contra a porta, ele tinha hálito de cigarro e ao mesmo tempo de menta, perceber isso só constatava que Aaron estava realmente próximo de mim. – Você teria tudo para experimentar, fora dessa casa. – Suas mãos tocaram minha cintura e eu dei graças a Deus por já estar vestida e já ter fechado o zíper também. – Se você quisesse, eu te mostraria tudo, até o prazer que você pode ter... Comigo. – Ele sussurrou a última palavra com a boca próxima demais da minha e todos os meus sentidos se alertaram. Aaron não estava pensando em me beijar, estava?
– Saia... – Minha voz saiu completamente tremula, mas papai me mataria se nos encontrasse ali, precisava fazer Aaron sair.
– Por que está com tanta pressa? Eu só queria agradecer por ter me deixado entrar na sua casa. – Ele passou o nariz pela minha bochecha e eu tremi. Tinha medo em mim, mas eu também estava gostando daquilo. – Espero que me deixe entrar em você da próxima vez.
Meu corpo se contraiu e Aaron deu risada. Me afastei para o lado mesmo que involuntariamente apenas para que ele saísse, e ele foi. Eu não podia ficar no mesmo lugar que o Meyer de novo, era tentação demais para mim.
[...]
Depois de sentar naquela mesa e o almoço começar, eu não sabia dizer o que era mais estranho. Se era o fato da filha do casal ter cabelos azuis, o fato de Anne não estar usando aliança, ou o fato de Aaron e seu pai não olharem um na cara do outro. Eu estava assustada que meu pai parecia até mesmo, calmo diante de tudo aquilo, sendo que eu nem conseguia parar de pensar. Será que se eu pedisse para pintar o cabelo ele também deixaria?
– Eu tenho que dizer reverendo Scotter, – o reverendo Meyer se pronunciou sorrindo – sua casa é adorável.
– Eu estou feliz que tenha gostado. – Meu pai respondeu com um sorriso nos lábios. Um sorriso falso, eu diria. – Gemma pintou o cabelo enquanto esteve na cidade?
Ele não ia ficar quieto, nunca que meu pai deixaria alguma coisa assim passar sem falar algo.
– Deixamos que ela pintasse ontem após o culto, ela foi para nos acompanhar, mas não gosta, e como não podemos forçar ninguém a seguir os costumes da igreja, eu não vi problema em permitir, ela sabe o que é certo e o que é errado, pode decidir o que quer. – Soltei um suspiro baixo olhando meu prato vazio, meu pai nunca deixaria que eu tomasse conta das minhas decisões.
– Eu entendo. – Papai mentiu, ele não entendia, e não queria entender. Por dentro ele devia estar pensando que aquilo estava contaminando sua casa. – Pietra querida, pode trazer a sobremesa?
Assenti com um sorriso, e me levantei indo até a cozinha. A família que estava nos visitando parecia tão feliz com suas diferenças, e essas diferenças eram gritantes quando comparadas ao regime militar sobre o qual minha casa estava edificada. Eu sempre fui alguém da igreja, uma menina correta que não faz nada de errado, mas meus pensamentos sempre foram impuros, e eu sempre me senti presa nisso. Papai sempre tentou me consertar como se eu estivesse quebrada, mas na verdade, só sou diferente dele. Meu maior medo, é que no dia que eu me libertar, eu esteja frustrada demais para realmente tentar alguma coisa.
– Fique longe da filha do reverendo. – Escutei a voz do senhor Meyer e rapidamente me virei com a bandeja, não queria que eles me vissem. – Aaron, você viu como ela é? É uma boa moça.
A voz vinha do corredor entre a cozinha e a sala de jantar. Me aproximei devagar como quem não sabia de nada e me encostei na parede para ouvir melhor. Aaron respirou fundo, e alto, parecia ter medo do que fosse responder ao seu pai.
– Des, ele está forçando a menina a seguir tudo o que ela não quer. Só estou tentando fazer ela se libertar, você sabe como é. – Sim, invadir o meu quarto foi um ótimo exemplo de como conseguir o objetivo que ele queria. – Ela não é feliz aqui.
– Você não tem nada a ver com isso. – Seu pai parecia irritado. – Vai arranjar problemas, como da última vez.
– Mas não vou te envolver. – Aaron estava falando firme, queria convencer mesmo seu pai do que estava fazendo.
Decidi acabar com a conversa dos dois, só Deus sabe o que aconteceria se meu pai fosse a pessoa a ouvir aquilo no meu lugar.
– Aaron? – Me aproximei o chamando como se tivesse visto ambos ali agora. – Pode me ajudar com a sobremesa?
O reverendo me lançou um sorriso, e um olhar nervoso para o filho antes de sair de volta para a mesa. Aaron me encarou como se soubesse que eu tinha ouvido tudo, e eu decidi ignorar, era melhor.
– Quer que eu leve essa? – Ele perguntou apontando para a bandeja que eu tinha em mãos.
– Tem outra menor, em cima da bancada. Pode pegá-la por favor? – Observei enquanto ele entrava na cozinha e fazia o que eu pedi. – Seu pai parece ser muito legal, ele é bem diferente do meu, não é mesmo?
Aaron apenas deu risada como se soubesse de uma piada interna que eu não sabia, e depois seguiu seu caminho. Aquilo me intrigou, será que o reverendo Meyer também não era tão legal assim? Será que tudo o que ele disse enquanto estávamos a mesa era mentira?
Balancei a cabeça expulsando aqueles pensamentos e voltei para a sala de jantar com a bandeja em mãos a colocando na mesa ouvindo os elogios de meu pai. Pelo menos ele estava sorrindo, o que era algo bom. Mesmo assim, por dentro eu sabia que ele estava se segurando de todas as formas para não expulsar o reverendo Meyer, estava julgando ele pelas coisas que deixava seus filhos fazerem. Papai só sabia julgar as pessoas.
Enquanto comíamos a sobremesa, eles perguntaram sobre minhas aspirações, comentei sobre a faculdade de jornalismo, e sobre como eu gostava de escrever. Já meu pai enfatizou que mesmo assim eu também adorava ficar em casa e na igreja, e ser uma verdadeira dona de casa. O que era mentira, mas eu não quis contraria-lo.
Quando terminamos a sobremesa, o reverendo Meyer, Anne e Gemma comentaram que precisariam voltar ao hotel, pois estariam aprontando as coisas para ir embora. Papai comentou sobre ficarem mais um tempo, mas a família foi simpática e explicou que precisavam voltar.
– Pietra, acompanhe todos até a porta, eu vou me recolher. – Papai disse a mim depois de se despedir dos demais.
Assenti com um sorriso mínimo e caminhei com eles até a porta de casa.
– Foi um prazer receber a todos aqui em casa, espero que voltem um dia, ficarei muito feliz se vierem novamente. – Dei um sorriso amigável enquanto o reverendo Meyer passava pela porta me cumprimentando e logo após sua esposa e sua filha fizeram o mesmo. Apenas Aaron ficou para trás, afinal ele tinha vindo sozinho, e não tinha nem a obrigação de ir para a casa de seus pais.
– Eu ainda não vou embora. Não consegui o que eu queria. – Ele anunciou passando pela porta e parando na varanda a me encarar.
– É mesmo? E eu posso saber o que é? – Perguntei preparada para ouvir uma de suas frases provocativas e sem graça.
– Te fazer perceber que seu pai não vai te levar para o céu, e que ficar debaixo do teto dele, acatando as regras malucas dele, não vai te livrar do inferno.
Aaron se virou antes que eu pudesse responder, me deixando para trás com cara de tacho. Será que ele tinha razão sobre tudo aquilo?