BERNARDO
É curioso como o tempo parece correr diferente quando a gente ama. Tem dia que passa como um piscar de olhos, e tem dia que parece se arrastar só pra me obrigar a olhar pra ela mais uma vez antes de sair. Cinco anos de nós — e ainda assim, toda vez que Joana sorria, eu sentia o mesmo arrepio da primeira vez.
Eu me lembro como se fosse agora.
Era uma manhã abafada, o tipo de calor carioca que parece abraçar e sufocar ao mesmo tempo. Eu tinha acabado de voltar de um exercício de campo, fardado, cansado, fedendo a poeira e pólvora, e entrei num café pra comprar um pão de queijo e um café preto. Ela estava lá, atrás do balcão, mexendo no celular e mascando chiclete com um jeito distraído que me desmontou.
— Um café duplo, sem açúcar. — pedi.
Ela levantou os olhos e sorriu — aquele sorriso que não era de propaganda, era de vida.
— Sem açúcar? Homem amargo desse jeito deve ser perigoso.
Ri.
— Talvez.
Naquele momento, eu não sabia, mas o perigo não era eu. Era ela. Perigo de me deixar vulnerável, de me fazer imaginar uma vida fora do quartel, de me fazer pensar em coisas como futuro, casa, filhos.
Joana era leve. Eu, um soldado pesado de rotina e disciplina. Ela bagunçou tudo — e eu gostei da bagunça.
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Nos primeiros meses, a gente vivia entre o riso e o fogo. Eu acordava cedo pra correr, e ela acordava junto só pra dizer que eu era maluco. À noite, quando eu voltava, ela já estava deitada no sofá, esperando o “soldado” dela.
Os vizinhos devem ter decorado a música dos nossos gemidos. Joana era intensa, livre. Quando ela me puxava pelo colarinho e dizia “manda ver, Lobo”, eu esquecia o mundo. Ela gostava de provocar, mordia o lábio, olhava nos meus olhos com aquele desafio silencioso — e eu nunca soube dizer não.
A gente não tinha muito dinheiro, mas tinha o suficiente pra rir, t*****r e sonhar. Eu levava flores do campo que achava nos treinos, e ela fazia questão de colocá-las num copo velho de vidro na mesa da cozinha.
— Tá vendo? — dizia. — Amor também floresce no improviso.
Foi com ela que eu aprendi isso — que felicidade não precisa de luxo. Precisa de verdade.
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Nos casamos num sábado de céu limpo, numa capelinha escondida em Niterói. Ela usava um vestido simples, rendado, com flores no cabelo e um brilho nos olhos que me desmontou. Eu nunca fui de chorar, mas quando vi Joana vindo em minha direção, tropeçando no próprio salto e rindo, eu quase perdi o ar.
— Você parece nervoso, Lobo. — ela sussurrou quando chegou perto.
— Não. Só assustado por estar diante da mulher mais linda do mundo.
— E ela é sua agora. — ela respondeu, e piscou.
A cerimônia foi rápida, íntima, mas cada palavra parecia um tiro certeiro no peito. Quando o padre disse “pode beijar a noiva”, ela me puxou pelo uniforme e me beijou com força, como se dissesse: agora você é meu campo de batalha favorito.
Naquela noite, no nosso pequeno apartamento, ela usava só a camisa branca do meu uniforme.
— Pra dar sorte. — disse.
Aquele foi o tipo de sorte que nenhum soldado esquece.
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Miguel chegou logo, pouco tempo depois, pequeno, esperto e cheio de energia.
Eu me lembro de quando ouvi o primeiro choro dele — um grito fino, mas poderoso. Chorei. Eu, o homem que já viu bala traçante, sangue e desespero, chorei igual criança.
Joana segurava o bebê, suada, cansada, linda.
— Olha o Lobo júnior. — brincou, e eu jurei ali que protegeria os dois com a própria vida.
Ser pai mudou tudo. Eu passei a medir o tempo não mais em missões, mas em sorrisos. Cada vez que Miguel dizia “papai”, eu esquecia o resto do mundo.
Ele adorava brincar de soldado — colocava meu boné torto na cabeça e gritava “sentido!” antes de desabar de rir.
Joana dizia que ele puxou meu olhar, mas o gênio era todo dela. E era verdade. Miguel era inquieto, curioso, cheio de perguntas.
— Papai, por que você tem que ir trabalhar tão cedo?
— Porque o Brasil precisa do seu pai, campeão.
— Mas eu também preciso…
Essas palavras ainda ecoam em mim.
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A vida que eu construí com Joana era sólida. Simples, mas sólida.
Tínhamos rotina: café da manhã juntos, eu levava Miguel pra escola quando conseguia, e ela fazia questão de me mandar foto de tudo — o menino no parquinho, no recreio, no dever de casa. Às vezes, eu chegava tarde, e ela me esperava no sofá, enrolada no cobertor, pronta pra discutir um filme ou começar uma briga boba só pra fazer as pazes depois.
Era o nosso jeito.
O amor de verdade não é feito só de flores. É feito de paciência, de risadas no meio da raiva, de planos simples — e de promessas que a gente acredita que nunca vai precisar testar.
Joana sonhava em abrir uma pequena loja de doces. Eu prometi ajudar quando viesse a promoção no exército. Ela dizia que eu vivia mais pro país do que pra casa, e eu sempre respondia:
— Tudo que eu faço é pra gente. Pra você. Pro Miguel.
E ela sorria, como se entendesse.
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Naquela semana, completávamos cinco anos de casados.
Cinco anos de nós.
Planejei algo simples, mas simbólico: um jantar em casa, só nós três. Fiz questão de sair mais cedo do quartel, comprei vinho, um buquê de margaridas — as flores que ela mais gostava — e até tentei aprender a fazer o tal bolo de cenoura que ela adorava. Miguel ajudou, jogando mais farinha no chão do que na tigela.
— Você é um desastre, campeão. — eu disse, rindo.
— Mas a mamãe vai amar!
E ela amou. Quando chegou e viu a mesa, os olhos dela brilharam.
— Lobo, você cozinhou? Tá se superando.
— Fiz o possível pra agradar minha rainha.
— E conseguiu.
Aquele jantar foi leve, cheio de risadas e planos. Falamos sobre Miguel, sobre o futuro, sobre uma possível viagem pra Paraty quando eu tirasse férias.
— E se vier outro bebê? — ela brincou, rindo.
— Outro soldadinho ou uma princesinha? — perguntei, beijando sua mão.
— Tanto faz. Desde que seja com você.
Aquela noite terminou como muitas outras: com nós dois entrelaçados, suados, o corpo dela encaixado no meu, o cheiro do cabelo misturado ao som da respiração ofegante.
Joana sempre foi meu porto seguro, mas também meu fogo.
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Agora, olhando pra trás, percebo o quanto eu acreditava na mentira mais bonita do mundo: a de que nada poderia destruir o que a gente construiu.
Mas a vida, às vezes, é como um campo minado — a gente acha que conhece o terreno até dar o passo errado.
Naquela manhã, eu acordei cedo. Beijei Joana na testa, abracei Miguel e saí pro quartel achando que era só mais um dia comum.
E era.
Até deixar de ser.
Eu não sabia que em poucas horas o destino ia mirar em mim — e atirar.
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