BERNARDO
O dia começou como qualquer outro.
Sol forte, café amargo e o barulho dos helicópteros passando ao longe, lembrando que o Rio nunca dorme — só troca de turno entre o caos e o silêncio.
Eu cheguei cedo ao quartel. O cheiro de óleo, ferro e pólvora era parte de mim, quase um perfume familiar. Estava revisando meu rifle de precisão, o mesmo que me acompanhava há anos, quando o sargento entrou na sala.
— Lobo, o major quer o relatório do treino de ontem.
— Já vai — respondi, sem levantar a cabeça.
Tudo estava no lugar. Cada peça, cada parafuso, cada plano. A vida parecia seguir o ritmo previsível que eu tanto valorizava.
Do lado de fora, o som dos tiros de teste se misturava às ordens gritadas. A rotina de um quartel é feita disso: controle, comando, disciplina. E eu era bom nisso. O melhor atirador do estado, prestes a representar o país numa competição nacional.
Mas o destino não avisa quando vai cruzar a mira com a sua vida.
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Joana me mandou uma mensagem pouco depois do almoço.
📲 Joana: Amor, vou buscar o Miguel agora. Tá um calor infernal.
Respondi rápido:
📲 Eu: Cuidado no trânsito. Te amo.
Ela mandou um emoji de coração.
E pronto.
A última conversa normal da nossa vida.
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Era 14h12 quando o telefone vibrou em cima da bancada metálica.
Joana.
Sorri, achando que fosse mais uma ligação boba — talvez Miguel pedindo pra passar no McDonald’s, talvez ela reclamando do engarrafamento.
Mas quando atendi, o som que veio do outro lado não era o que eu esperava.
— Bernardo... — a voz dela saiu trêmula.
— Oi, amor, tudo bem?
— Eu... eu acho que entrei num lugar errado... — o som do motor ao fundo, o choro de Miguel. — O GPS me mandou cortar caminho, mas...
— Joana, calma. Onde você tá?
— Eu não sei, as ruas estão ficando muito estreitas, meu Deus! Tem uns caras armados ali na esquina, acho que é o morro...
Meu coração travou.
— Sai daí agora. Dá meia-volta, Joana.
— Eu tô tentando, mas tem um carro vindo... ai, meu Deus...
O som do impacto foi seco, metálico. Um grito. Miguel chorou alto.
— Joana?! Joana, fala comigo!
— Eu bati... eu bati num carro! — ela soluçava. — Eles tão vindo, Bernardo, eles tão vindo...
Eu levantei num pulo. Os olhares na sala se voltaram pra mim, mas eu só conseguia ouvir a respiração ofegante dela.
— Abre o viva-voz, Lobo, o que tá acontecendo? — o sargento perguntou, mas eu não respondi.
O som do vidro quebrando ecoou no telefone. Vozes masculinas, agressivas, roucas.
— Sai do carro, mulher! Sai logo!
— Por favor, eu... meu filho...
— Sai, p***a!
Miguel chorava, histérico.
— Mamãe, eu tô com medo!
Meu peito parecia que ia explodir.
— Joana! Entrega logo o celular pra eles!
Ela me ouvia e tentava falar.
— Bernardo... eles tão apontando...
O som de um tapa. O choro mais alto. Um deles gritou algo como “tá achando que é quem?”.
E então veio a frase que me quebrou:
— Eu estou grávida, por favor, deixem a gente ir! Estou grávida e com uma criança, apenas errei o caminho.
Silêncio.
Por um instante, silêncio.
Eu gelei. Grávida?
Meu cérebro tentou processar, mas a realidade atropelava qualquer pensamento.
Do outro lado, um dos homens murmurou:
— Grávida? Tô pouco me fudendo minha senhora.
Outro respondeu:
— Calma, vê se tem grana, vê o que tem no carro.
Joana soluçava.
— Por favor... tem um filho pequeno... eu só quero ir embora... pode pegar tudo...
O som de passos, de portas batendo, de Miguel chamando por mim:
— Papai! Papai, me ajuda!
Eu berrava dentro da sala, a ligação viva no viva-voz agora.
— Fiquem calmos! Por favor, não machuquem eles! Eu sou do...
E parei.
Porque percebi que dizer que sou do exército podia matar os três.
— Joana, não fala mais nada, me escuta...
Mas ela já não respondia mais.
O barulho aumentava. Correria, gritos. Um dos homens gritou:
— Corre! Corre, p***a, a polícia tá subindo!
Tiros. Múltiplos.
Gritos.
Miguel chorando, Joana gritando meu nome.
Depois, um som metálico — o celular caindo, talvez no chão.
E o silêncio.
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— Joana? — minha voz falhou. — Joana!
Nada.
Só o chiado da ligação e meu próprio coração batendo dentro do ouvido.
Olhei pro telefone, esperando ouvir de novo a voz dela. Mas o som cessou.
A tela apagou.
Ligação encerrada.
14h19.
Sete minutos.
Sete minutos que levaram tudo.
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A partir dali, lembro de flashes.
O som da cadeira caindo quando eu levantei.
O major gritando meu nome.
Eu correndo, largando o telefone, pegando as chaves da moto.
O vento cortando o rosto.
A sirene distante.
A base da PM já estava mobilizada. Eu gritei com quem apareceu na frente:
— Uma mulher e uma criança foram levadas! Placa do carro: LPI-0927ES!
Mas ninguém sabia nada ainda.
No rádio, falavam de um tiroteio na entrada da comunidade.
Meu estômago virou.
Era ali.
O morro que todo mundo evitava até mencionar.
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Cheguei antes do BOPE.
Os becos eram labirintos, o cheiro de pólvora e fumaça me sufocava. Os moradores olhavam com medo, cochichavam.
Uma viatura passou em disparada. Um soldado me reconheceu.
— Lobo, não sobe! Tá tendo confronto!
Mas eu subi mesmo assim.
Cego.
O primeiro que me segurou foi o sargento Alves.
— Lobo, para! Eles acharam o carro.
— Onde?
— Lá no alto... queimado.
O chão sumiu dos meus pés.
— E eles?
Silêncio.
O olhar de Alves bastou.
— Ainda não sabemos.
O mundo girou.
O fogo que vinha de dentro queimava mais do que o do carro.
Aquela imagem me persegue até hoje — o reflexo das chamas nos capacetes, o cheiro de gasolina, o estalo dos vidros explodindo.
E nenhum sinal deles. Nenhum.
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De volta à base, fiquei em pé, imóvel, o telefone na mão.
Liguei pra ela umas vinte vezes.
Caixa postal.
Mandei mensagem.
Nada.
Miguel. Joana.
O nome deles virou um eco dentro de mim.
No relatório da polícia, escreveram:
“Veículo encontrado em chamas, sem ocupantes. Área de alto risco. Suspeita de sequestro.”
Mas pra mim, não era um relatório. Era uma sentença.
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Fiquei ali, sentado, olhando o celular, revendo a última mensagem:
📲 Eu: Cuidado no trânsito. Te amo.
Meu dedo tremia.
As lágrimas vieram sem permissão.
Um soldado me olhou, assustado.
— Lobo, o senhor quer que a gente monte uma busca?
Mas eu não respondi.
Porque naquele momento, dentro de mim, algo maior que o desespero começou a nascer.
Algo que não tinha farda, nem comando, nem piedade.
Algo selvagem.
E no meio daquele vazio, só um pensamento martelava:
Se a polícia não encontra...
Eu vou encontrar.
Nem que eu precise virar parte do inferno pra isso.
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Naquela noite, o Rio parecia mais escuro do que nunca.
Do meu apartamento, eu via as luzes piscando ao longe — o morro brilhando como um monstro respirando fogo.
Eu jurei pra mim mesmo:
Eles vão me devolver o que tiraram.
Ou vão pagar caro por cada lágrima que derramei.
E foi ali, entre o som distante das sirenes e o silêncio do celular morto, que nasceu o nome que me acompanharia dali pra frente.
Lobo.
O homem que perdeu tudo — e agora caçava no escuro.
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