A ligação

1252 Words
BERNARDO O dia começou como qualquer outro. Sol forte, café amargo e o barulho dos helicópteros passando ao longe, lembrando que o Rio nunca dorme — só troca de turno entre o caos e o silêncio. Eu cheguei cedo ao quartel. O cheiro de óleo, ferro e pólvora era parte de mim, quase um perfume familiar. Estava revisando meu rifle de precisão, o mesmo que me acompanhava há anos, quando o sargento entrou na sala. — Lobo, o major quer o relatório do treino de ontem. — Já vai — respondi, sem levantar a cabeça. Tudo estava no lugar. Cada peça, cada parafuso, cada plano. A vida parecia seguir o ritmo previsível que eu tanto valorizava. Do lado de fora, o som dos tiros de teste se misturava às ordens gritadas. A rotina de um quartel é feita disso: controle, comando, disciplina. E eu era bom nisso. O melhor atirador do estado, prestes a representar o país numa competição nacional. Mas o destino não avisa quando vai cruzar a mira com a sua vida. --- Joana me mandou uma mensagem pouco depois do almoço. 📲 Joana: Amor, vou buscar o Miguel agora. Tá um calor infernal. Respondi rápido: 📲 Eu: Cuidado no trânsito. Te amo. Ela mandou um emoji de coração. E pronto. A última conversa normal da nossa vida. --- Era 14h12 quando o telefone vibrou em cima da bancada metálica. Joana. Sorri, achando que fosse mais uma ligação boba — talvez Miguel pedindo pra passar no McDonald’s, talvez ela reclamando do engarrafamento. Mas quando atendi, o som que veio do outro lado não era o que eu esperava. — Bernardo... — a voz dela saiu trêmula. — Oi, amor, tudo bem? — Eu... eu acho que entrei num lugar errado... — o som do motor ao fundo, o choro de Miguel. — O GPS me mandou cortar caminho, mas... — Joana, calma. Onde você tá? — Eu não sei, as ruas estão ficando muito estreitas, meu Deus! Tem uns caras armados ali na esquina, acho que é o morro... Meu coração travou. — Sai daí agora. Dá meia-volta, Joana. — Eu tô tentando, mas tem um carro vindo... ai, meu Deus... O som do impacto foi seco, metálico. Um grito. Miguel chorou alto. — Joana?! Joana, fala comigo! — Eu bati... eu bati num carro! — ela soluçava. — Eles tão vindo, Bernardo, eles tão vindo... Eu levantei num pulo. Os olhares na sala se voltaram pra mim, mas eu só conseguia ouvir a respiração ofegante dela. — Abre o viva-voz, Lobo, o que tá acontecendo? — o sargento perguntou, mas eu não respondi. O som do vidro quebrando ecoou no telefone. Vozes masculinas, agressivas, roucas. — Sai do carro, mulher! Sai logo! — Por favor, eu... meu filho... — Sai, p***a! Miguel chorava, histérico. — Mamãe, eu tô com medo! Meu peito parecia que ia explodir. — Joana! Entrega logo o celular pra eles! Ela me ouvia e tentava falar. — Bernardo... eles tão apontando... O som de um tapa. O choro mais alto. Um deles gritou algo como “tá achando que é quem?”. E então veio a frase que me quebrou: — Eu estou grávida, por favor, deixem a gente ir! Estou grávida e com uma criança, apenas errei o caminho. Silêncio. Por um instante, silêncio. Eu gelei. Grávida? Meu cérebro tentou processar, mas a realidade atropelava qualquer pensamento. Do outro lado, um dos homens murmurou: — Grávida? Tô pouco me fudendo minha senhora. Outro respondeu: — Calma, vê se tem grana, vê o que tem no carro. Joana soluçava. — Por favor... tem um filho pequeno... eu só quero ir embora... pode pegar tudo... O som de passos, de portas batendo, de Miguel chamando por mim: — Papai! Papai, me ajuda! Eu berrava dentro da sala, a ligação viva no viva-voz agora. — Fiquem calmos! Por favor, não machuquem eles! Eu sou do... E parei. Porque percebi que dizer que sou do exército podia matar os três. — Joana, não fala mais nada, me escuta... Mas ela já não respondia mais. O barulho aumentava. Correria, gritos. Um dos homens gritou: — Corre! Corre, p***a, a polícia tá subindo! Tiros. Múltiplos. Gritos. Miguel chorando, Joana gritando meu nome. Depois, um som metálico — o celular caindo, talvez no chão. E o silêncio. --- — Joana? — minha voz falhou. — Joana! Nada. Só o chiado da ligação e meu próprio coração batendo dentro do ouvido. Olhei pro telefone, esperando ouvir de novo a voz dela. Mas o som cessou. A tela apagou. Ligação encerrada. 14h19. Sete minutos. Sete minutos que levaram tudo. --- A partir dali, lembro de flashes. O som da cadeira caindo quando eu levantei. O major gritando meu nome. Eu correndo, largando o telefone, pegando as chaves da moto. O vento cortando o rosto. A sirene distante. A base da PM já estava mobilizada. Eu gritei com quem apareceu na frente: — Uma mulher e uma criança foram levadas! Placa do carro: LPI-0927ES! Mas ninguém sabia nada ainda. No rádio, falavam de um tiroteio na entrada da comunidade. Meu estômago virou. Era ali. O morro que todo mundo evitava até mencionar. --- Cheguei antes do BOPE. Os becos eram labirintos, o cheiro de pólvora e fumaça me sufocava. Os moradores olhavam com medo, cochichavam. Uma viatura passou em disparada. Um soldado me reconheceu. — Lobo, não sobe! Tá tendo confronto! Mas eu subi mesmo assim. Cego. O primeiro que me segurou foi o sargento Alves. — Lobo, para! Eles acharam o carro. — Onde? — Lá no alto... queimado. O chão sumiu dos meus pés. — E eles? Silêncio. O olhar de Alves bastou. — Ainda não sabemos. O mundo girou. O fogo que vinha de dentro queimava mais do que o do carro. Aquela imagem me persegue até hoje — o reflexo das chamas nos capacetes, o cheiro de gasolina, o estalo dos vidros explodindo. E nenhum sinal deles. Nenhum. --- De volta à base, fiquei em pé, imóvel, o telefone na mão. Liguei pra ela umas vinte vezes. Caixa postal. Mandei mensagem. Nada. Miguel. Joana. O nome deles virou um eco dentro de mim. No relatório da polícia, escreveram: “Veículo encontrado em chamas, sem ocupantes. Área de alto risco. Suspeita de sequestro.” Mas pra mim, não era um relatório. Era uma sentença. --- Fiquei ali, sentado, olhando o celular, revendo a última mensagem: 📲 Eu: Cuidado no trânsito. Te amo. Meu dedo tremia. As lágrimas vieram sem permissão. Um soldado me olhou, assustado. — Lobo, o senhor quer que a gente monte uma busca? Mas eu não respondi. Porque naquele momento, dentro de mim, algo maior que o desespero começou a nascer. Algo que não tinha farda, nem comando, nem piedade. Algo selvagem. E no meio daquele vazio, só um pensamento martelava: Se a polícia não encontra... Eu vou encontrar. Nem que eu precise virar parte do inferno pra isso. --- Naquela noite, o Rio parecia mais escuro do que nunca. Do meu apartamento, eu via as luzes piscando ao longe — o morro brilhando como um monstro respirando fogo. Eu jurei pra mim mesmo: Eles vão me devolver o que tiraram. Ou vão pagar caro por cada lágrima que derramei. E foi ali, entre o som distante das sirenes e o silêncio do celular morto, que nasceu o nome que me acompanharia dali pra frente. Lobo. O homem que perdeu tudo — e agora caçava no escuro. ADICIONE NA BIBLIOTECA COMENTE VOTE NO BILHETE LUNAR INSTA: @crisfer_autora
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