O luto não espera

1098 Words
BERNARDO O luto não espera. Ele não bate na porta, não pede licença e nem respeita farda. Ele chega como um invasor, arrombando o peito, destruindo tudo que a gente acreditava que era forte. Faz três semanas desde o dia da ligação. Três semanas desde o som dos tiros, do choro do Miguel, da voz da Joana dizendo que estava grávida. Três semanas desde que o mundo deixou de fazer sentido. E o pior é que ele continua girando. As pessoas ainda riam nos corredores do quartel, os helicópteros ainda levantavam voo, o café ainda queimava na garrafa velha da cantina. Mas pra mim, tudo aquilo morreu junto com a ligação. --- Nas primeiras 48 horas, eu ainda acreditava que iam encontrá-los. Que Joana e Miguel estavam escondidos, assustados, mas vivos. Passei horas na delegacia, na PM, no batalhão, em reuniões com gente que fingia se importar. Mas a cada novo relatório, o mesmo vazio: nada encontrado. O carro, sim — queimado, carbonizado, irreconhecível. Mas nenhum corpo. Nenhum vestígio de fuga, de vida, de morte. Nada. “Eles podem ter sido levados pra dentro da comunidade”, diziam. “É possível que estejam reféns.” “Tem que aguardar o avanço das investigações.” Aguardar. Essa palavra virou um soco. Porque quem espera, sente o tempo virar tortura. --- Eu tentei seguir os protocolos. Sou militar, fui treinado pra isso — agir com cabeça fria, respeitar hierarquia, confiar na estrutura. Mas a verdade é que nenhum protocolo ensina a enterrar esperança. O Comandante me afastou das missões. “Você precisa de tempo, Lobo. Se envolveu demais.” “É a minha família, senhor.” “Justamente por isso.” Obedeci. Mas por dentro, a raiva crescia. Via os noticiários tratando o caso como “mais um desaparecimento no Rio”. Ouvi jornalistas falando do “azar de uma mulher que entrou no lugar errado na hora errada”. Lugar errado? Meu filho estava no banco de trás. Minha esposa grávida. E agora eram só estatísticas de um país anestesiado pela violência. --- Na terceira semana, a polícia recuou de novo. A operação no morro foi cancelada por falta de “condições táticas”. Traduzindo: medo. Eu estava no batalhão quando vi o helicóptero voltar. Os policiais desciam com a expressão cansada, mãos vazias. — Nenhum rastro — um deles disse. — A comunidade fechou o bico. — Eles não vão falar. — É arriscado demais subir de novo. E foi ali que entendi. O sistema não ia salvar minha família. Ninguém ia. --- Naquela noite, sentei no chão do quarto do Miguel. Os brinquedos ainda estavam espalhados. O carrinho azul que ele mais gostava estava debaixo da cama. Peguei o carrinho, segurei forte, e chorei. Chorei como nunca chorei em campo, como nunca chorei diante de morte nenhuma. Porque essa doía de outro jeito. Era uma morte sem corpo, sem fim. Na parede, uma foto da gente sorrindo na praia. Joana com o cabelo solto, Miguel fazendo careta. Fiquei encarando aquilo por horas. Eu sabia que, se ela estivesse viva, estaria lutando pra proteger o nosso filho. E se não estivesse... então alguém ia pagar caro por isso. --- No dia seguinte, fui ao vestiário do quartel antes do amanhecer. O som metálico do meu crachá batendo no armário ecoou como um adeus. Olhei pra farda, pendurada, limpa, alinhada. Quantas vezes aquele tecido me salvou? Quantas vezes eu me agarrei a ele pra lembrar quem eu era? Mas agora, olhar praquela farda era como encarar um espelho rachado. Ela representava uma instituição que me pedia paciência, que me mandava “aguardar”, que me chamava de herói enquanto deixava minha família desaparecer. Abri o armário. Peguei o uniforme, dobrei com cuidado e deixei em cima do banco. Em cima dele, coloquei o crachá. E um bilhete simples: “Não procurem por mim.” Quando saí, o sol começava a nascer. --- A transformação começou no dia seguinte. Primeiro, o cabelo. Cortei rente, quase careca, deixando o rosto mais duro. A barba cresceu, o olhar mudou. No espelho, eu já não via mais o Tenente Bernardo Lobo — via um homem sem farda, sem regras, sem nada a perder. Depois, o corpo. Troquei o uniforme pelas roupas do povo que o Estado ignora: bermuda surrada, chinelo, camisa larga. Comprei um boné velho num camelô e uma corrente de prata enferrujada. Desapareci no meio da multidão. Aos poucos, comecei a montar a nova identidade. Um nome simples, comum nos becos. Um passado inventado. “Trabalhador comum, vindo do interior.” Ninguém desconfia de quem parece invisível. --- Passei dias estudando os acessos da comunidade. Os becos, as vielas, as rotas de fuga, o horário da ronda, o nome dos chefes, dos olheiros, das bocas. Tudo anotado, tudo decorado. Cada passo meu precisava parecer natural. Cada olhar, cada palavra. Eu sabia que se entrasse como policial, morreria em cinco minutos. Mas se entrasse como homem quebrado, ninguém ia se importar. E foi exatamente isso que eu fiz. --- No último dia antes de sumir, voltei à praia onde me casei com Joana. O vento trazia o cheiro do mar misturado ao da saudade. Sentei na areia, deixei o celular no chão e fiquei olhando o horizonte. “Joana”, falei baixo, “onde quer que você esteja, eu vou te achar.” A maré subia, molhava meus pés. “E se alguém tocou em você ou no nosso filho... vai pagar com o sangue.” Peguei o celular, abri a galeria e olhei pela última vez pra foto dos três: eu, ela e Miguel. Depois, joguei o aparelho no mar. O som dele afundando foi o fim do Tenente Bernardo Lobo. --- Quando voltei pra cidade, ninguém mais me reconhecia. O olhar firme deu lugar ao vazio. O passo marcado virou o andar de quem carrega o peso do mundo nas costas. Passei diante do portão do quartel e nem olhei pra trás. O mesmo portão que me viu entrar com orgulho, agora me via sair como um fantasma. A cidade ainda dormia quando subi no ônibus em direção ao morro. No reflexo da janela, vi meu novo rosto — cansado, mas decidido. Dentro de mim, só restava uma certeza: O exército perdeu um soldado. Mas o morro acabou de ganhar um caçador. A partir daquele momento, eu não era mais o 1º Tenente Bernardo Lobo. Era só Lobo. E eu ia caçar até encontrar o que me tiraram — nem que fosse no inferno. ADICIONE NA BIBLIOTECA COMENTE VOTE NO BILHETE LUNAR INSTA: @crisfer_autora
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