LOBO
Porra.
Foi tudo tão rápido que nem deu pra processar.
Um segundo tava tudo naquele silêncio pesado de sempre, o Tito chegando alterado, a Soraia se encolhendo, o Miguel com aquela cara de susto que já tava virando normal.
No outro, o mundo veio abaixo.
O Tito puxou o cabelo da Soraia, aquele jeito nojento dele, e o grito dela cortou o ar. O Miguel, meu filho, aquele menino corajoso que tá segurando o choro faz semanas, não aguentou. E quando ele correu e se escondeu atrás de mim, eu senti o coração dar um pulo. De orgulho, de medo, de um negócio que não dá nem pra explicar.
Aí veio a parte que quase me fez cagar tudo. O Tito, puto da vida, veio pra cima, e o Miguel soltou o grito. Aquele grito que tava guardado no fundo da alma dele desde o dia que arrancaram ele da mãe.
— Eu não sou seu filho! Eu tenho pai e mãe! — ele gritou, visivelmente irritado, exausto de tudo aquilo. — EU QUERO A MINHA MÃE!
Mano, o sangue gelou na veia.
Na minha cabeça, só passou um filme: o Tito sacando a arma, eu tendo que reagir na hora, um tiroteio dentro de casa, a Soraia e o Miguel no meio do fogo cruzado. Tudo indo pro ralo por causa de uma frase, num momento de desespero.
Mas o instinto é f**a.
Anos de treinamento, de aprender a manter a cabeça fria quando tudo tá pegando fogo, falou mais alto. Antes que o Tito pudesse fazer qualquer merda, eu me abaixei e agarrei o Miguel pelos ombros, firme.
— Cala a boca, Evandro! — gritei, fingindo uma raiva que não tava sentindo. Minha voz saiu áspera, de verdade, porque o susto foi real. — O senhor Tito é seu pai! Respeito!
O Miguel me olhou, os olhos cheios de lágrima e confusão. Ele não tava entendendo por que eu tava brigando com ele. Mas eu não podia explicar. Sussurrei rápido, baixinho, só pra ele ouvir.
— Calma, campeão. Tá tudo bem. Eu tô aqui. Segura a onda.
Ele engoliu seco e baixou a cabeça, o corpinho ainda tremendo.
Aí me virei pro Tito, que tava parado com a cara vermelha de ódio, os punhos cerrados. A Soraia no chão, parada, olhando a cena sem acreditar.
— Desculpa, chefe — falei, mantendo a voz firme, controlada. — O menino tá muito assustado. Ele tem tido uns pesadelos, tá confundindo as coisas. Às vezes chora de noite chamando pela... pela mãe. A Soraia sabe.
Joguei o nome dela pra dar um ar de verdade. Ela, esperta, entrou na jogada na hora, ainda sentada no chão.
— É verdade, Tito. Ele tem sonhado muito. Fica agitado. — A voz dela saiu trêmula, mas convincente.
O Tito ficou me encarando.
A desconfiança tava estampada na cara dele. Ele não é burro. Sabe que tem alguma coisa errada. Mas a minha atuação foi firme. Não tremi, não gaguejei. E a explicação fazia um certo sentido, uma criança traumatizada.
Ele cuspiu no chão, perto dos meus pés.
— Então ensina o moleque a não confundir, p***a! — ele rosnou, olhando pro Miguel com um ódio que deu medo. — E você — virou pra Soraia — levanta desse chão e para de choramingar, vagabunda.
Ele deu mais uma olhada pra todos nós, com aquele jeito de quem tá avaliando a presa, e saiu da cozinha batendo a porta. A gente ouviu o carro dele ligar e sair em disparada.
O silêncio que ficou foi quase pior que o barulho. A Soraia se levantou devagar, limpando o rosto. O Miguel ainda tava agarrado em mim, e eu senti o suspiro de alívio que ele deu.
— Obrigada — a Soraia sussurrou, os olhos ainda vermelhos.
Eu só balancei a cabeça, sem conseguir falar. A adrenalina tava baixando, e a mão que eu tinha na costa do Miguel tava tremendo. Quase. Tínhamos chegado perto demais do abismo.
— Ele... ele vai voltar? — o Miguel perguntou, a voz pequena.
— Não agora — respondi, soltando ele. — Mas você tem que ter cuidado, campeão. Muito cuidado. Não pode gritar aquilo de novo, entendeu?
Ele olhou pra mim, sério, e acenou. Ele entendeu. É uma lição de sobrevivência que nenhuma criança deveria ter que aprender.
Mais tarde, trancado no meu quarto, a culpa veio com tudo. Eu quase expus meu próprio filho ao perigo máximo. Por um triz a fachada não veio abaixo. A gente tá vivendo num castelo de cartas, e o vento tá ficando cada vez mais forte.
Fiquei olhando pro teto, sufocado. O cheiro da casa, o som do morro lá fora, a lembrança do grito do Miguel... tudo me encheu de um nojo, de uma urgência doida.
Não dá mais pra esperar.
Não dá mais pra ficar só observando, coletando informação. O Tito tá ficando mais paranóico, o Miguel não vai aguentar segurar a barra pra sempre, e a Soraia... a Soraia é uma variável que tá me deixando emocionalmente bagunçado.
Preciso achar a Joana.
Agora.
Se ela ainda tá viva, tá em algum lugar desse morro. E se não tá... bem, aí eu tiro o Tito do jogo e levo o que sobrou da minha família pra longe daqui.
O plano tem que ser rápido e limpo.
Arriscado pra c*****o, mas não tem escolha. É isso ou a gente vai ser pego com a boca na botija, e aí não vai ter atuação que salve.
A calma do sniper ainda tá aqui, mas agora é uma calma diferente. Não é mais a paciência de esperar a presa. É a frieza de quem sabe que o tempo acabou e a única saída é atirar.