Ecos do passado

1546 Words
LOBO A noite anterior havia sido um suplício de uma nova espécie. Tito e Soraia voltaram do baile tarde, muito tarde. Os faróis do carro cortaram a escuridão da sala onde eu fazia minha vigília, e o motor rouco anunciou sua chegada antes mesmo de eu ouvir as portas batendo. Ele desceu primeiro, com aquele andar cambaleante de quem bebeu além da conta. Depois, ele praticamente arrastou Soraia para fora do carro. Ela estava... diferente. O vestido justo estava levemente desalinhado, o cabelo solto e bagunçado. E ela ria. Uma risada baixa, um pouco arrastada, mas era uma risada. Uma risada que eu nunca tinha ouvido sair dela. O álcool havia afrouxado as amarras do medo, pelo menos por algumas horas. Ele a puxou para dentro, e eu me mantive na sombra, o soldado invisível. Mas meus sentidos estavam aguçados como os de um predador. Ele a levou direto para o quarto, e a porta se fechou com um baque. E então começou. Desta vez, os sons que vinham de cima eram diferentes. Radicalmente diferentes. Não eram os gemidos curtos e abafados de dor, os tapas nítidos contra a carne, as ordens grosseiras. Desta vez, eram gemidos longos, guturais, de prazer. A voz de Soraia, embebedada e solta, subia e descia em um ritmo que era inconfundivelmente de entrega. Eu ouvia o som abafado da cabeceira da cama batendo contra a parede em um ritmo constante, acelerado. — Sim... assim... — ouvi ela dizer, sua voz embargada, seguida por um gemido mais agudo. Fiquei paralisado no escuro da sala, meu corpo tenso como um fio de aço. Uma parte de mim, sentiu uma pontada de nojo. O que estava acontecendo? Como ela podia se entregar àquele monstro? Mas outra parte, a parte mais primitiva, o homem que havia sido negado por semanas, que havia tocado naquela pele macia apenas para curar, que sentiu a atração proibida queimar entre eles... essa parte reagiu com uma intensidade que me envergonhou. Um calor familiar e condenável começou a se espalhar pela minha virilha. A respiração dela, ofegante e carregada de um prazer que soava genuíno, ecoava na minha mente, alimentando uma fogueira que eu julgava ter controle total. Ela gemeu de novo, um som longo e vibrante que parecia rasgar a noite. — Tito... Meu punho se cerrou com tanta força que as unhas cavaram minha palma. Era o nome dele na boca dela, no auge do que soava como prazer. A raiva e o desejo se misturaram em um coquetel tóxico e perverso. Eu odiava ele. Odiava cada som que saía daquele quarto. Mas meu corpo, traiçoeiro, respondia ao som da voz dela, ao som evidente de seu prazer, por mais distorcido que o contexto fosse. Os sons continuaram. Por horas. Rítmicos, intensos, cheios de uma energia animal que invadiam a casa toda. Eu não consegui me mover. Fiquei ali, sentado na escuridão, ouvindo, meu próprio corpo um campo de batalha de emoções conflitantes. Era uma tortura. Uma agonia erótica e avassaladora. A imagem dela, com o vestido colado ao corpo, o olhar embriagado e solto, se fundia com os sons que ela emitia, criando uma fantasia proibida e repulsiva que, no entanto, me excitava profundamente. Quando o dia finalmente começou a clarear o céu, os gemidos haviam cessado, substituídos por um silêncio pesado. A exaustão, física e emocional, finalmente me venceu, e caí em um sono agitado e superficial na cadeira, a imagem de Soraia e o eco de seus gemidos ainda queimando na minha mente. Foi nesse estado de esgotamento e confusão que a convocação veio. O rádio ao meu lado gritou, a voz áspera do Jacaré cortando o resquício de paz que eu havia encontrado. — Lobo, o chefe quer você no QG. Agora. A mensagem era um balde de água gelada. A névoa de desejo e culpa se dissipou instantaneamente, substituída pelo alerta aguçado do soldado. O cara fodeu a noite toda e já está no QG? Seria uma armadilha? Tito tinha percebido algo? A forma como eu olhei para Soraia? A tensão entre nós? Ao me levantar, meu corpo doía, mas a mente estava focada. Ao me despedir de Soraia com um aceno neutro, nossos olhos se encontraram por uma fração de segundo. Ela estava na cozinha, preparando café. Seu rosto estava pálido, os olhos cercados por olheiras escuras, mas havia um resquício de algo neles... um ânimo, uma recordação da noite? Ela desviou o olhar rapidamente, corando. Como se ela soubesse exatamente o que estava pensando. O meu filho, Miguel, me encarou sério da mesa, seu pequeno rosto uma máscara. Balancei a cabeça quase imperceptivelmente, um sinal para que ficasse calmo, e saí, a memória dos gemidos da noite ainda ecoando como um zumbido enlouquecedor no fundo do meu crânio. O QG era um caos organizado, um contraste brutal com a tensão s****l da noite anterior. O cheiro de maconha e suor impregnava o ar. Homens com fuzis passeavam. Tito estava no centro, e eu pude ver, com um misto de nojo e uma pontada irracional de ciúmes, a mesma energia dominante que ele havia exercido no quarto agora direcionada para seus homens. Seu olhar passou por mim quando entrei, um reconhecimento rápido e desdenhoso antes de voltar para os subordinados. Foi então que o radinho cuspiu a mensagem: — Polícia. A energia mudou. Tito praguejou, seu rosto uma máscara de fúria. — Jacaré! Reúne os homens! Vamos receber os visitantes! — ele berrou, pegando seu fuzil. — Lobo, fica. Cuida do lugar. Eles saíram como um enxame. Em segundos, o QG ficou quase vazio. E a porta do escritório de Tito estava escancarada. Meu coração acelerou. A chance. A janela de tempo minúscula e perigosíssima. Deslizei para dentro do escritório e fechei a porta. O lugar era uma extensão do homem: brutal. Uma mesa enorme, uma cadeira de couro alto, troféus de violência. Comecei a vasculhar. Gavetas. Documentos. Nada. Nada dela. A frustração crescia. O tempo se esgotando. A memória dos gemidos de Soraia, agora misturada à urgência desesperada de encontrar Joana, criava uma pressão insuportável dentro do meu peito. Foi quando vi. Pequeno, discreto, jogado em um canto de uma gaveta. Um relógio de pulso feminino. Meu coração parou. Peguei o relógio com uma mão que tremia incontrolavelmente. Era ele. O mesmo que eu tinha dado a Joana em nosso primeiro aniversário de casamento. Prateado, discreto, com as iniciais "J&B." – Joana & Bernardo – cravejadas em pequenos cristais. Seu amuleto da sorte. Agora estava aqui. Nas mãos do homem que a arrancou de mim. A prova tangível. Ela esteve aqui. Esteve nas garras dele. Uma onda de emoções me atingiu. Alívio. Fúria. Uma dor aguda. — Ela esteve aqui. — sussurrei, a voz um ruído áspero. — Joana... Foi quando a porta se abriu atrás de mim. — Que p***a tu tá fazendo aqui, Lobo? Jacaré. Eu congelei. Minhas costas para ele. Minha mão fechada em torno do relógio. A arma dele, à mão. Encurralado. O instinto de sobrevivência entrou em ação. A mente se esvaziou, se tornando gelada e calculista. Movimento lento. Fechei a gaveta com o quadril, deslizei o relógio para o bolso. — Jacaré — disse, voz estável. Virei, mãos visíveis. — Tava procurando um carregador. O chefe pediu um antes de sair. Disse que tava na gaveta. A polícia chegou e ele esqueceu. Ele não pareceu convencido. Seu olhar era uma furadeira. — Carregador? O chefe tem um monte. Por que ele ia te mandar buscar um? — Porque o dele quebrou, e o pessoal tava tudo ocupado — improvisei, encolhendo os ombros. — Ele me viu, me chamou, falou pra eu pegar. A porta tava aberta. Impasse. O som dos tiros ao longe. O peso do relógio no meu bolso, uma acusação. Ele deu um passo para dentro. — E achou? — Não — respondi. — Tá uma bagunça. Ele deve ter levado um de outro lugar. Jacaré parou a poucos metros. Seus olhos me mediam. — É estranho, Lobo. Você... é muito quieto. Muito na sua. O perigo subiu. Ele estava desconfiado de mim. Da minha pessoa. — Cuido do que é meu trabalho cuidar, Jacaré — disse, voz firme, um fio de desafio. — A dona Soraia e o menino são minha responsabilidade. Cuido deles. E sou quieto porque gosto de ouvir mais do que falar. Na minha vida, falar demais já me colocou em roubada. Ele me encarou. O som de uma rajada de fuzil mais próxima. — Tá bom — ele finalmente disse, o ceticismo ainda nos olhos. — Mas sai daí. O escritório do chefe é lugar proibido. Acenei com a cabeça. — Beleza. Saí, passando por ele. Sentia suas costas nas minhas. Cada passo, uma eternidade. A bala não veio. Quando saí do QG, a luz do dia pareceu ofuscante. A respiração saiu em um suspiro trêmulo. Estava vivo. Minha mão encontrou o contorno do relógio no bolso. Podia ser a confirmação dolorosa de que Joana estava viva. Mas a missão havia entrado em um novo patamar de perigo. Jacaré estava desconfiado. E eu tinha em minhas mãos um segredo mortal, um outro tipo de perigo, Soraia, continuava a ecoar na minha mente, uma distração perigosa e proibida em uma missão que já estava à beira do precipício.
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