O Morro e a Fé

1206 Words
Sienna Acordo com o sol já alto batendo na janela como se tivesse raiva de mim. Meu corpo dói todo, parece que passei a noite sendo arrastada por um trator. Aí eu lembro: não foi trator, foi o Coroa. Literalmente. Ele bate na porta às sete em ponto. Nem “bom dia”, nem “licença”. Só: — Desce em dez minutos, Barbie. Roupa leve. Vai suar. Eu desço em nove. Vestido branco comportado, porém mais curto que o que eu cheguei aqui, tênis branco que já tá sujo, cabelo preso num coque bagunçado. Ele me espera na porta da cozinha, de regata preta colada no peito, bermuda cargo, tênis Nike novo em folha e óculos escuros que escondem aqueles olhos azuis assassinos. Tá com uma pistola prateada enfiada na cintura como se fosse carteira. — Pronta? — pergunta, voz rouca de quem dormiu pouco ou não dormiu nada. — Não — respondo sincera. Ele dá um sorrisinho de canto. — Ótimo. Vamos. O portão automático abre e a gente desce a pé. Pé. PÉ! Eu achando que ia de carro blindado, mas não. Ele quer que eu sinta o morro na pele. Primeiro lance de escada já tô morrendo. Ele desce tranquilo, passo largo, como se tivesse nascido com mola no pé. Eu atrás, tropeçando, mão na parede suja, coração na boca. Em cada curva tem alguém olhando. Mulher na janela, moleque no portão, cara de arma na cintura. Todo mundo para pra ver a loira australiana andando do lado do rei. — Olha a novinha do Coroa! — Ê, gringa, quer um açaí? — Vai virar crente o chefe, é? Eu fico vermelha que nem tomate. Coroa nem se mexe, só levanta a mão num cumprimento rápido e o povo cala a boca na hora. Respeito é outra coisa aqui. Ele vai falando enquanto anda, como guia turístico do inferno. — Aqui é a boca um. Ali a boca dois. Lá embaixo, ladeira três, é dos alemão. Se tu passar da linha imaginária, tu vira peneira. Entendeu? Eu engulo seco. — Entendi. — Aqui é onde Deus não entra, Barbie — ele fala, parando no meio de uma viela, apontando pras casas empilhadas, fios pendurados, cachorro latindo. — Aqui é tudo meu. Eu levanto o queixo, mesmo com a perna tremendo. — Deus tá em todo lugar. Até mesmo aqui, Coroa. Ele tira o óculos devagar, me encara. Dá uma risada baixa, quase carinhosa. — Vamos ver quanto tempo tu aguenta falar isso, anjinha. A gente continua. Passa por um campinho de terra onde uns moleques jogam bola descalços. Um deles chuta a bola na nossa direção. Coroa pega com o pé, dá um corte seco e devolve de letra. Os meninos gritam “é o cara!” e batem palma. Eu fico b***a. Bem que meu pai falou que todos aqui sabem jogar futebol muito bem. Depois ele me leva pra uma portinha azul, placa escrita à mão: “Creche Anjinhos do Morro”. — Entra — ele manda. Dentro tem umas quarenta crianças de zero a seis anos, brinquedo quebrado, parede colorida, cheiro de leite e talco. As tias (duas mulheres de uns quarenta anos) vêm correndo cumprimentar o Coroa com beijinho no rosto. Ele entrega um envelope grosso pra uma delas. Dinheiro, óbvio. — Pra comprar material pra reforma e pra mais o que precisar — ele fala baixo. Eu fico parada na porta, boca aberta. Ele mantém creche? O traficante mantém creche? Uma menininha de uns três anos, trancinha com laço rosa, vem correndo e agarra a perna dele. — Tio Coroa! Trouxe minhas balas hoje? Ele pega ela no colo, tira um pacotinho de bala do bolso e entrega. — Só uma por dia, tá ouvindo, princesa? Ela ri, beija a bochecha dele é colocada no chão e sai correndo. Eu tô em choque. Ele percebe. — O que foi? Tá surpresa que o dono do morro gosta de criança? — Um pouco — confesso. Ele dá de ombros. — Criança não escolhe onde nasce. Eu escolho ajudar. As crianças me cercam na hora. — Tia loira! Canta pra gente! Eu me sento no chão sem pensar duas vezes. Pego o violãozinho de plástico que tem lá e começo “Jesus Loves Me” em inglês. Depois tento traduzir: — Jesus me ama… ele sabe que eu sou… fraca… quer dizer, pequena… As crianças riem do meu português. Eu rio junto. Aí começo “Meu Bom Pastor”, versão brasileira que aprendi no YouTube. Voz tremendo no começo, mas depois sai firme. E aí acontece uma coisa que eu nunca vou esquecer. O morro inteiro parece parar. As tias param de varrer, os caras armados que fizeram nossa escolta até ali, param pra prestar atenção, até os cachorros param de latir. Todo mundo ali me escuta. Quarenta vozinhas começam a cantar junto, minha voz no meio, desafinada, mas cheia de tudo que eu tenho. Quando acaba, silêncio. Depois palmas. Até os caras armados batem palma. Coroa tá encostado na porta, braços cruzados, olhando pra mim como se eu fosse um bicho estranho que caiu do espaço. Uma das tias vem falar comigo, olhos marejados. — Faz tempo que ninguém canta assim aqui, minha filha. Deus te abençoe. Eu abraço ela. Sinto vontade de chorar também. Quando saímos, o clima mudou. As crianças queriam que eu ficasse mais. — Fica mais, tia! — Volta amanhã! Coroa anda do meu lado, quieto. Nem debocha mais. A gente sobe de volta devagar. Eu tô destruída de cansaço, suor escorrendo pela pele que tá queimando, mas o coração… o coração tá leve. Chegando na casa, ele abre o portão, me deixa passar primeiro. Fecha. Silêncio. Só o barulho da piscina ao lado. Ele vai até a mesa da varanda, pega um cigarro, acende. Traga fundo. Olha pro mar lá embaixo no horizonte, depois pra mim. — Tu acredita mesmo nesse Deus, né? — pergunta, voz baixa, quase triste. — Acredito — respondo sem pestanejar. Ele solta a fumaça devagar, chega mais perto. Tão perto que eu sinto o calor do corpo dele. — Então reza pra Ele te tirar de mim, Barbie. Reza muito. Eu levanto o olhar e encontro o dele. Sinto medo, sim. Mas tem outra coisa também. Coragem que eu nem sei de onde vem. — Talvez Ele tenha me trazido pra te tirar do inferno — digo, voz firme apesar de tudo. Ele congela. Por um segundo acho que vai rir, que vai mandar eu calar a boca. Mas ele só me encara. Muito tempo. Aí dá uma risada seca, sem humor, coloca a pistola em cima da mesa com um baque pesado. — Boa sorte, anjinha. Ele vira as costas, entra na casa, deixa a porta aberta. Eu fico lá fora, olhando pro morro que agora parece menos escuro. Dentro do peito, eu sei: a guerra começou. E eu não sei se vou salvar ele… ou se ele vai me destruir. Mas pela primeira vez desde que pisei no Brasil, eu sinto que tô exatamente onde Deus quer que eu esteja. Mesmo que seja do lado do próprio, capeta de bermuda e tatuagem. ADICIONE NA BIBLIOTECA COMENTE VOTE NO BILHETE LUNAR INSTA: @crisfer_autora
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD