Névoa de Cinzas

1879 Words
Madeleine Thomas Querido diário, A estrada de volta ao castelo foi um borrão de asfalto rachado e silêncios que pesavam como chumbo. Meu quadril ainda lateja do tombo i****a no hotel e Christian... ah, Christian... Ele me viu nua, vulnerável como uma mortal qualquer, e em vez de rir ou virar as costas, me ajudou. Os seus dedos frios na minha pele, o jeito que ele desviou o olhar não por nojo, mas por... respeito? Não sei. Só sei que agora, toda vez que fecho os olhos, sinto o eco daquele toque. Como se ele tivesse marcado algo em mim que eu nem sabia que existia. Amanhã é a reunião com o governador. Maxwell jura que vai ser civilizado. Eu sinto o fedor de armadilha no ar, como sangue velho enrustindo. Se isso for o inferno que eu pedi, que venha logo. O ronco do motor morreu no pátio como um último suspiro. A lua, gorda e prateada no céu de 2085, banhava as torres do castelo De Lorn em uma luz fria, transformando pedra em osso polido. Desci do carro mancando, o ar noturno úmido grudando na minha pele como um véu de teias. Maxwell já estava de pé, ombros retos como uma lâmina, farejando o vento. Christian saiu do banco da frente num fluido predatório, os olhos azuis varrendo as sombras como se esperasse emboscada. Mas a emboscada já estava lá. Dois sedãs pretos, placas governamentais reluzindo sob os faróis fantasmas, bloqueavam o arco da entrada. O cheiro chegou primeiro: humano. Quente, salgado e vivo um banquete pulsando nas veias de meia dúzia de corpos. A minha garganta se apertou, uma fome antiga e voraz se enroscando nas minhas entranhas como serpentes. Eu congelei, unhas cravando nas palmas das mãos. — Fiquem atrás — murmurou Maxwell, voz baixa como o roçar de presas na carne. Ele avançou, e nós o seguimos, sombras entre sombras. O salão principal nos engoliu com o seu eco vazio. Velas tremeluziam nos candelabros, lançando danças erráticas nas tapeçarias desbotadas cenas de caçadas antigas, vampiros dilacerando presas sob luas sangrentas. E no centro, como um lobo em pele de cordeiro, estava ele. Alistair Cromwell, governador de Fitch River e algoz dos nossos. Alto, esguio, com cabelos grisalhos cortados num corte militar que gritava autoridade humana. O seu terno cinza-escuro parecia tecido de nuvens de tempestade, e os olhos – ah, aqueles olhos cinza-ardósia – cortavam o ar como estilhaços de gelo. Atrás dele, dois lacaios armados com pistolas de prata, e pior: quatro caçadores de elite, armaduras leves cravejadas de ligas que fediam a queimado mesmo a distância. Prata. O veneno dos nossos. Maxwell parou a um braço de distância, o ar entre eles crepitando de ódio não dito. — Governador Cromwell — disse ele, tom sereno como a superfície de um lago n***o. — a sua visita não foi anunciada. Nem bem-vinda. Cromwell inclinou a cabeça, um sorriso fino esticando os lábios como uma cicatriz. Ele não estendeu a mão; em vez disso, acendeu um charuto com um isqueiro de ouro, o fósforo chiando como carne na grelha. O fumo azulado subiu em espirais, misturando-se ao cheiro da sua vitalidade – sangue rico, coração firme, arrogância que pulsava como um tambor de guerra. — Maxwell Dubois. O patriarca eterno. — os seus olhos deslizaram para mim, demorando-se como um toque indesejado. — E você... Madeleine Thomas, não é? A viúva fresca. Os meus pêsames pelo seu marido. E pelo... rebento que nunca respirou o ar deste mundo podre. As palavras caíram como ácido. Meu filho. Não um nome, não uma memória – uma arma, afiada e envenenada. Eu vi flashes: o carro capotando em chamas, o grito abafado no meu ventre, o vazio que veio depois. O meu corpo se moveu antes da mente, um passo à frente, presas roçando os lábios num rosnado involuntário. Christian foi mais rápido. A sua mão envolveu o meu antebraço – fria como mármore, mas queimando como ferro em brasa. Ele me puxou de volta, o corpo dele um escudo vivo contra o mundo. Senti o calor residual da minha própria pele mortal contra a dele, um contraste que me fez tremer. Não de medo. De algo mais perigoso. — Fique — sussurrou ele, só para mim, o hálito gélido roçando a minha orelha. Era um comando, mas havia uma súplica ali, enterrada como uma presa no pescoço. Cromwell observou a cena com deleite felino, exalando fumaça devagar. — Que tocante. O clã protetor, adotando almas perdidas como cachorrinhos famintos. — Ele deu um passo à frente, o charuto brilhando como um olho vermelho na penumbra. — Vim entregar uma cortesia pessoal. O embargo ao sangue sintético? Permanente. A partir do próximo ciclo lunar, nem uma gota escorrerá dos tubos do governo. Vocês vão mendigar em bancos clandestinos... ou caçar nas ruas. E se eu flagrar uma presa a menos na minha jurisdição, libero esses cães. — Ele gesticulou para os caçadores, que se agitaram como lobos no cio, as armaduras sussurrando promessas de dor. — Eles estão sedentos. Prata pura nas veias de vocês faz um som tão... satisfatório. O salão pareceu encolher. Kenny, encostado na parede, rangeu os dentes – um som de ossos se partindo ao longe. Nicolas ajustou os óculos com dedos brancos de tensão, os olhos castanhos faiscando cálculos frios. Até Nidia, a pequena sombra na escadaria, encolheu-se, os seus cachos escuros tremendo como folhas em vendaval. Eu não podia ficar calada. Não quando ele profanava o que restava de mim. — E os Pactos da Queda? — a minha voz ecoou, rouca, mas firme, carregada do veneno que agora corria nas minhas veias. — Vocês ergueram cidades sobre as nossas costas. Precisam da nossa sombra tanto quanto da sua luz falsa. Quebrar isso é assinar a sua própria ruína. Cromwell virou-se para mim devagar, como se eu fosse uma curiosidade numa vitrine. Os seus olhos me dissecaram – não com ódio, mas com pena calculada, o tipo que precede o golpe. — Pactos? — Ele riu, um som seco como folhas mortas sob botas. — São pergaminhos mofados, garota. Eu os queimo toda manhã no meu lar. — Ele avançou outro passo, e Christian se interpôs como uma muralha, o ombro colado ao meu, músculos tensos roçando a minha pele. O cheiro dele, couro, fumaça de batalha e algo selvagem, inominável, me ancorou. — Aproxime-se dela — murmurou Christian, voz baixa como o roçar de garras na seda —, e eu lhe mostro como pergaminhos sangram. O governador parou, o sorriso se alargando em algo predatório. Ele tragou o charuto, exalando uma nuvem que dançou entre nós como um véu de fantasmas. — Ah, Christian De La Croix. O guardião quebrado. Dizem que você também dançou essa valsa sombria... uma esposa carbonizada em chamas de motor, um filho que nunca chorou. Que... simetria fascinante com a nossa Madeleine aqui. Acasos de estrada, não? Ou talvez mãos mais firmes no volante. O ar se partiu. Christian endureceu como ferro forjado, um tremor sutil percorrendo o seu corpo – não fraqueza, mas fúria contida, um vulcão sob gelo. Eu soube na hora: ele carregava o mesmo abismo que eu. Perdas ecoando em vazios idênticos. A minha mão encontrou o braço dele por instinto, dedos cravando na manga do casaco, sentindo os tendões saltarem como cordas de arco. Ele não se afastou. Em vez disso, sua mão livre roçou a minha, um toque fugidio que enviou faíscas geladas pela minha espinha – prazer e dor entrelaçados, como o primeiro gole de sangue proibido. Maxwell cortou o silêncio como uma lâmina. — Sua mensagem ecoa alto neste castelo, Cromwell. Ecoa e apodrece. Deixe a minha casa. O governador deu de ombros, teatral, e esmagou o charuto no tapete persa – uma mancha n***a florescendo como uma ferida aberta. Ele se virou para a porta, mas parou, olhando-me por cima do ombro com olhos que prometiam tempestades. — Trinta noites, Madeleine. Depois, a caça reverte. E lembre-se: estradas queimam fácil. Cuidado para não perder mais do que já perdeu... ou quem ainda resta para queimar. A porta se fechou com um estrondo que vibrou nas pedras antigas. Os motores rugiram lá fora, sumindo na névoa da montanha. E eu... eu desabei. Joelhos dobrando como galhos secos, o mundo se dissolvendo num vórtice de chamas fantasmas e silêncios partidos. Meu filho – um fantasma que Cromwell invocara para me dilacerar de novo. Christian foi ao chão comigo, ajoelhando-se num borrão de movimento, mãos nos meus ombros como âncoras em mar revolto. Os seus olhos azuis, hipnóticos e selvagens, prenderam os meus. — Madeleine — disse ele, voz rouca, urgente. — Olhe para mim. Ele mente com as presas dos homens. Não o deixe cavar o túmulo que você já enterrou. Eu ofeguei, lágrimas quentes traçando caminhos salgados pela minha pele fria. Elas caíam como chuva ácida, queimando onde tocavam. — Ele... ele cuspiu no nome do meu bebê... — eu sussurrei, a voz se partindo como vidro sob o tacão. — Como se a dor fosse dele para usar. Christian me puxou para si então, sem hesitação, sem a muralha de sarcasmo que sempre erguera. O seu peito era uma fortaleza de osso e músculo, frio, mas pulsante com uma vida eterna que ecoava a minha. Eu enterrei o rosto ali, inalando o cheiro dele – terra úmida após a chuva, ferro de sangue antigo, e algo mais doce, proibido, como mel envenenado. Os seus braços me envolveram, firmes, mas gentis, uma prisão que eu não queria romper. Senti o seu queixo roçar o topo da minha cabeça, um gesto quase terno, e o mundo se estreitou para nós dois: predador e presa, iguais no abismo. — Ele quer te quebrar — murmurou contra o meu cabelo, a voz vibrando como um rosnado baixo. — Mas você é feita de cinzas agora, Madeleine. Cinzas que renascem em chamas. E eu... eu não vou deixar que ele toque em você de novo. O clã nos cercava em silêncio – Kenny com punhos cerrados, Nicolas com olhos calculistas, Liana com a mão na boca. Mas naquele instante, nada importava além do batimento fantasma no peito de Christian, ecoando o meu próprio coração teimoso, ainda vivo apesar de tudo. Eu me afastei devagar, encontrando os seus olhos. Havia algo ali agora – não só guarda, mas faísca. Uma promessa não dita, afiada como presas. — Por quê? — perguntei, voz trêmula mas firme. — Por que você se importa? Ele hesitou, o polegar roçando o meu queixo num toque que me fez prender a respiração, elétrico, como o primeiro sorvo de sangue alheio. — Porque eu sei como é queimar sozinho — disse ele, simplesmente. — E porque, talvez... você não precise mais. Levantei-me com sua ajuda, o salão se erguendo ao nosso redor como um túmulo vivo. Cromwell havia plantado sementes de guerra, mas ali, no abraço relutante de Christian, eu senti as minhas brotarem: não de ódio cego, mas de algo mais perigoso. Vingança com dentes. Aliança com garras. E, no fundo do peito, um calor que não era fome se instalou. Querido diário, Ele me chamou de cinzas que renascem. Se isso for verdade, que eu queime primeiro o mundo dele. Amanhã, treinamos. E caçamos.
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