SARA
Eu nunca pensei que abrir a alma doesse tanto.
É como se eu tivesse arrancado o coração do peito e entregado pras pessoas que eu achava que iam me proteger, só pra verem pisar em cima. Quando o pai e a Pri voltaram de Cancún, eu tava um caco. Esses dias sozinha com o Fábio na casa me quebraram de um jeito que eu não sabia explicar.
Era como se a Sara que eu era — a guria que ria com a Bia e a Micaela, que escrevia poesias no caderno — tivesse virado pó. Só sobrou medo, vergonha e um vazio que engolia tudo.
Mas eu achei que, quando eles voltassem, eu ia conseguir falar. Que eles iam me ouvir. Que iam me salvar. Como eu fui burra.
Eles chegaram num dia de manhã. Eu tava no quarto, claro, com a porta trancada e a cadeira encostada na maçaneta, como virou rotina. Ouvi o barulho do táxi na rua, as vozes deles na sala, a Pri rindo alto, contando pro Fábio sobre as praias, os drinks, o hotel chique.
O meu pai tava mais quieto, mas dava pra ouvir ele rindo também, aquele riso rouco que ele solta quando tá feliz. Eu sentei na cama, segurando o caderno contra o peito, o coração batendo tão forte que parecia que ia explodir.
Minha mão tremia, e o nó na garganta tava tão apertado que eu m*l conseguia respirar. Mas eu sabia: era agora ou nunca. Eu precisava contar.
Precisava botar pra fora o que aconteceu, mesmo que doesse, mesmo que me quebrasse mais.
Desci as escadas devagar, cada degrau rangendo como se a casa quisesse me avisar pra desistir. A sala tava cheia de luz, com o sol entrando pela janela, mas pra mim era como se tudo fosse cinza. O Fábio tava no sofá, esparramado como sempre, com uma cerveja na mão, o cheiro de cigarro grudado não só nele mas na nossa casa toda. Ele me olhou de canto, com aquele sorriso torto que fazia minha pele arrepiar de medo. A Pri tava tirando as coisas da mala, e o pai tava sentado na mesa, mexendo no celular. Quando me viram, a Pri sorriu, daquele jeito dela que parece colado na cara.
— Sarinha! Que saudade, guria! — Ela veio me abraçar, mas eu me encolhi, sem querer. O apelido me irritou, e o toque dela parecia queimar. — Tá tudo bem? Tu tá com uma cara...
Eu não respondi. Olhei pro meu pai, que levantou os olhos do celular, meio confuso.
— Tá tudo bem, Sara? — ele perguntou, com aquele tom de quem não tá realmente esperando uma resposta.
Eu engoli em seco, sentindo o peso de tudo que eu carregava. O caderno tava na minha mão, as páginas cheias de frases tortas, gritos que eu não conseguia soltar. As palavras tavam ali, queimando, pedindo pra sair.
— Pai... Pri... preciso falar com vocês. — Minha voz saiu tremida, tão baixa que m*l dava pra ouvir. Eles se entreolharam, e o Fábio, no canto da sala, deu uma risadinha seca, como se soubesse o que vinha.
Meu estômago embrulhou, mas eu continuei.
— É sério. Preciso... preciso contar uma coisa.
A Pri franziu a testa, ainda com uma bolsa de praia na mão. O pai largou o celular, coçou a nuca e disse:
— Fala, guria. O que foi?
Eu sentei na cadeira, as pernas moles, o caderno apertado contra o peito como se fosse um escudo. Minha boca tava seca, o coração martelando, e as lágrimas já tavam querendo pular dos olhos. Mas eu respirei fundo e deixei sair.
— Enquanto vocês tavam fora... o Fábio... ele... — Minha voz falhou, e eu senti o rosto queimar.
O Fábio tava olhando pra mim, com aquele olhar que parecia atravessar minha pele, e eu quase desisti. Mas continuei, porque era minha última chance.
— Ele entrou no meu quarto. Na segunda noite. Eu... eu tranquei a porta, mas ele entrou. E... eu não sei como explicar, mas ele... ele fez coisas. Coisas erradas. Eu tô com medo. Tô quebrada.
As palavras saíram confusas, misturadas com soluços. Eu chorei, chorei de verdade, com as mãos tremendo, o corpo inteiro tremendo, como se tudo que eu segurava aqueles dias tivesse explodido. Eu abri o caderno, mostrei as páginas, as frases que escrevi naquelas noites de terror.
“Ele entrou. Tô suja.”
“ Não saí do quarto. Ele tava na cozinha.”
Minha voz tava rouca, e eu m*l conseguia respirar, mas eu precisava que eles vissem. Que acreditassem.
A Pri ficou parada, a bolsa ainda na mão, o rosto dela endurecendo. O pai me olhou, confuso, como se eu tivesse falado em outra língua. E o Fábio... ele só riu. Uma risada baixa, debochada, que fez meu sangue gelar. A Pri largou a bolsa na mesa, cruzou os braços e falou, com uma voz que eu nunca tinha ouvido antes:
— Sara, o que tu tá dizendo? Tu tá falando sério? Que o Fábio... meu irmão... fez algo com você? Tu tá inventando isso, né?
Inventando. Aquela palavra me acertou como uma facada. Eu abri a boca, mas nada saiu.
Meus olhos tavam cheios de lágrimas, e eu olhei pro pai, esperando que ele dissesse alguma coisa, que me defendesse, que acreditasse em mim. Mas ele só coçou a nuca de novo, olhando da Pri pra mim, como se não soubesse onde pisar.
— Pri, eu não tô inventando! — Minha voz saiu alta, desesperada. — Eu juro! Ele entrou no quarto, ele... ele me olhou, ele... me tocou. — Eu não conseguia dizer mais.
As palavras travavam, e a vergonha me engolia. Eu mostrei o caderno de novo, como se as páginas fossem provar tudo.
— Tá tudo aqui! Eu escrevi tudo! Eu não tô mentindo!
A Pri balançou a cabeça, os olhos brilhando de raiva.
— Sara, isso é coisa de adolescente mimada. Tu tá com ciúmes, é isso? Porque eu e teu pai estamos felizes, porque o Fábio tá aqui ajudando? Tu acha que pode inventar uma coisa dessas, uma acusação tão séria, só pra chamar atenção?
Cada palavra era um soco.
Mimada. Ciúmes. Atenção.
Eu senti o chão sumir, o ar faltar. Olhei pro pai, implorando com os olhos pra ele dizer algo, qualquer coisa. Mas ele suspirou, passou a mão no rosto e falou, baixo:
— Sara, isso é grave. Muito grave. Tu tem certeza do que tá falando?
— Pai, eu juro! — Eu tava gritando agora, as lágrimas escorrendo, o caderno caindo no chão. — Eu não tô inventando! Ele entrou no quarto, ele... ele me fez sentir suja, errada! Por favor, acredita em mim!
Mas ele não acreditou. Ele olhou pra Pri, que tava com os braços cruzados, o rosto duro, e depois pra mim, com uma expressão que misturava confusão e decepção.
— Sara, sobe pro teu quarto. Tu tá de castigo. Não sai de lá até a gente resolver isso. Inventar uma coisa dessas... é inaceitável.
Castigo.
A palavra me cortou ao meio. Eu fiquei parada, olhando pra ele, pro homem que um dia me carregava no colo, que ria comigo enquanto comíamos sorvete.
Ele tava escolhendo a Pri.
Escolhendo o Fábio.
Escolhendo não me ouvir.
O Fábio, no canto, deu outra risadinha, e eu senti o nojo subir pela garganta. Subi as escadas correndo, com o caderno na mão, as lágrimas borrando tudo. Tranquei a porta do quarto, encostei a cadeira na maçaneta e desabei na cama.
Eu tava quebrada. Era como se o último fio de esperança que eu tinha — a ideia de que o pai e a Pri iam me salvar — tivesse sido arrancado. Eu abri o caderno, com as mãos tremendo, e escrevi:
“Eles voltaram. Contei tudo. Não acreditaram. Me mandaram pro quarto. Tô sozinha.”
As palavras saíam tortas, molhadas pelas lágrimas que pingavam na página. Eu queria a minha mãe. Queria ela ali, me abraçando, dizendo que eu não tava louca, que eu não tava errada. Mas ela não vinha. Só o silêncio, o peso da casa, e o eco da risada do Fábio na minha cabeça.
Eu não comia desde o dia anterior. O estômago roncava, mas o vazio dentro de mim era maior.
A vergonha me comia viva — vergonha por ter falado, por ter acreditado que iam me ouvir, por ter achado que eu valia alguma coisa. A culpa era pior ainda. Culpa por não ter gritado mais alto, por não ter trancado a porta direito, por não ser forte o suficiente.
Eu me sentia suja, como se o que aconteceu naquela noite tivesse grudado em mim, como se eu nunca mais fosse limpa.
A casa, que um dia foi meu lar, agora era uma jaula. As paredes pareciam rir de mim, o chão rangia como se zombasse. Eu ouvia os passos do Fábio no corredor, a voz dele falando com a Pri na sala, e cada som era um lembrete de que eu tava sozinha.
Ninguém acreditou em mim.
Ninguém me salvou.
Eu era um peso, uma guria mimada que inventava coisas, como a Pri disse.
Deitei na cama, abraçando o caderno, e fechei os olhos. Tentei imaginar minha mãe, o cheiro de lavanda dela, a voz macia dizendo “tá tudo bem, Sarinha”. Mas o sonho não vinha. Só o escuro, o medo, e uma vozinha bem pequena, lá no fundo, que ainda teimava em falar. Ela dizia que eu não podia desistir. Que, mesmo sozinha, eu precisava lutar. Mas como? Como eu lutava contra uma casa inteira que não me via? Como eu gritava quando ninguém ouvia?
Escrevi no caderno, com a caneta tremendo:
“Eles não acreditam. Mas eu sei o que aconteceu. E eu não vou deixar ele vencer.”
Fechei o caderno e abracei ele contra o peito, como se fosse a única coisa que ainda me segurava. Eu tava quebrada, mas não morta. Ainda não. E, de alguma forma, eu ia encontrar um jeito de sair dessa jaula. Mesmo que doesse. Mesmo que fosse sozinha.