SARA
Tem gente que chega na sua vida como uma nuvem escura, daqueles temporais que você sente no ar antes mesmo de ver o raio cair. O ar fica pesado, elétrico, e você sabe, no fundo da alma, que vai dar problema. Foi exatamente isso que rolou quando o Fábio pisou aqui em casa.
Um arrepio começou na nuca, desceu pelas costas como dedos gelados, e embrulhou meu estômago inteiro. Eu não precisava de palavras pra saber: ele era perigo puro.
Era uma tarde comum, daquelas preguiçosas de meio de semana. Eu tava no meu quarto, deitada na cama com os fones de ouvido cravados nas orelhas, ouvindo uma playlist velha que me fazia esquecer o mundo lá fora. O som alto, pulsando no meu peito, era meu escudo contra o silêncio estranho que tinha tomado conta da casa nos últimos dias.
Mas aí veio o barulho. A porta da frente batendo com força, como se alguém quisesse anunciar a chegada. Tirei um fone devagar, escutando as vozes. Primeiro a da Pri, animada demais pra ser normal, como se estivesse tentando compensar algo. Depois, uma outra voz — grossa, rouca, arrastada, cheia de uma confiança que me deu calafrio imediato.
Meu coração acelerou. Levantei devagar, pés descalços no piso frio do quarto, e fui até o corredor. Fiquei ali, espiando pela fresta da porta entreaberta, como se eu fosse uma intrusa na minha própria casa. E lá estava ele. Fábio. Irmão mais velho da Priscila, uns bons anos a mais que ela, moreno queimado de sol, com uma barba por fazer que dava um ar de quem não se importava com nada. O sorriso dele... ah, aquele sorriso não me enganou nem por um segundo. Era largo, cheio de dentes brancos, mas tinha algo debochado, provocador. Como se ele já chegasse achando que o lugar era dele, que as regras não se aplicavam.
No pescoço, uma tatuagem velha, torta, meio apagada. Um nome que eu não consegui ler direito — talvez de uma mulher, ou de uma gangue, sei lá — e um símbolo estranho do lado, tipo uma caveira ou algo assim. Aquilo ali era um aviso em neon piscando: PERIGO. Fique longe. Mas ele tava ali, bem no meio da sala, com uma mochila surrada no ombro, como se tivesse acabado de sair de uma viagem longa e não pretendesse ir embora tão cedo.
A Pri tava ao lado dele, puxando o braço dele com um entusiasmo forçado.
— Vem, Fábio, senta aí. Essa é a Sarinha, minha enteada. Sarinha, esse é meu irmão. Ele vai ficar uns dias aqui, até se ajeitar.
Sarinha. Ela me chamou de Sarinha de novo, com aquele tom de quem fala com uma criança.
Odeio isso.
Me faz sentir pequena, indefesa.
Fábio virou pra mim, e foi aí que o olhar dele me acertou em cheio. Ele me escaneou inteira, sem pudor, sem vergonha nenhuma. Dos pés descalços até o topo da cabeça, devagar, como se eu fosse um quadro na parede que ele tava avaliando. Parou no meu rosto, e o canto da boca dele se curvou num sorriso torto.
Seus olhos eram escuros, fundos, como poços sem fundo. Eu senti a pele queimar, não de vergonha, mas de raiva misturada com nojo. Era como se ele tivesse me despido ali mesmo, no meio da sala, com os olhos.
— Prazer, guria — ele disse, a voz baixa, arrastada. — Já ouvi falar muito de ti. A Pri disse que você é uma gracinha.
Gracinha. A palavra saiu da boca dele como algo sujo, pegajoso. Fingi um sorriso daqueles falsos, que m*l chegam aos olhos, e murmurei um “oi” rápido antes de virar as costas e voltar pro quarto. Meu coração tava martelando no peito, e eu fechei a porta com mais força do que precisava. Encostei na madeira, respirando fundo, tentando me convencer de que era só impressão minha. Mas não era. Eu sabia.
A Pri tinha mencionado o irmão dela uma vez ou outra, mas sempre de passagem, como se fosse um parente distante que ela tentava ajudar.
“Ele tá passando por um momento difícil”, ela dizia, com aquele jeito doce dela.
Mas eu ouvi os boatos. Uma vizinha, a Dona Maria, que mora do lado e adora fofocar, me contou num dia que eu tava no portão esperando o ônibus da escola.
“Cuidado com esse aí, menina. O irmão da sua madrasta cumpriu pena, viu? Roubo e agressão. Gente assim não muda fácil.”
Ela cochichou aquilo como se fosse um segredo de estado, mas o olhar dela era sério. Eu fingi que não ligava, mas na hora ficou gravado na minha mente.
E agora ele tava aqui. Uns dias, ela disse. Mas os dias viraram semanas, e o Fábio se espalhou pela casa como uma praga que você não consegue exterminar. Ele botou as roupas dele num canto do armário da lavanderia, jogou os tênis sujos na área de serviço — aqueles mesmos que eu vi no primeiro dia, com cheiro de suor e terra — e se instalou no sofá da sala como se tivesse comprado o móvel. Abria cerveja na segunda-feira à tarde, ria alto assistindo futebol, e o pior: o pai parecia de boa com tudo isso.
Meu pai, que m*l falava comigo ultimamente, agora ria com o Fábio como se fossem velhos amigos. Os dois sentados no sofá, garrafa na mão, comentando o jogo.
— Esse aí é craque, hein? — o meu pai dizia, e o Fábio respondia com uma piada grosseira que fazia o pai gargalhar.
Eu via da cozinha, espiando, e me sentia invisível. Como é que ele tava confortável com um ex-presidiário morando do lado da filha? Como é que ninguém via o risco?
Comecei a mudar tudo na minha rotina. Evitava sair do quarto quando ele tava na sala. Em vez de comer na mesa da cozinha, levava o prato pro meu quarto, trancada, comendo sozinha enquanto olhava pro teto. À noite, trancava a porta — coisa que eu nunca tinha feito antes.
Até no banho eu ficava ligada, escutando qualquer barulho diferente no corredor. O som de passos pesados, a respiração dele do outro lado da parede. Meu corpo inteiro travava só de pensar na sombra dele aparecendo na fresta da porta.
Era exaustivo. Eu tava sempre em alerta, como um animal acuado. E o pior é que ninguém notava. A Pri seguia sorrindo, achando tudo lindo, como se o irmão dela fosse um santo em recuperação. Uma vez, eu tentei falar com ela. Foi na cozinha, enquanto ela lavava a louça. Eu entrei devagar, fingindo pegar um copo d’água.
— Pri... esse teu irmão... ele vai ficar quanto tempo mesmo?
Ela parou, a esponja na mão pingando sabão no chão. Olhou pra mim com aqueles olhos castanhos, cheios de uma paciência que me irritava.
— Ah, Sara, não sei ainda. Ele tá precisando de um lugar pra recomeçar, sabe? A família tem que ajudar. Por quê? Tá incomodada?
Incomodada? Era pouco. Eu queria gritar que ele me olhava de um jeito que me dava nojo, que os comentários dele eram esquisitos, que eu me sentia ameaçada. Mas as palavras travaram na garganta. Em vez disso, só disse:
— É que... a casa tá diferente. Ele é... barulhento.
Ela riu, um riso forçado, e secou as mãos na toalha.
— Ah, menina, ele é assim mesmo. Mas é inofensivo. Você tá exagerando, vai por mim. Dá uma chance pra ele.
Exagerando. Sempre isso. Quando a gente é mulher e sente o perigo no ar, dizem que é drama, paranoia, imaginação fértil. Mas quem sente o medo no osso sou eu. Saí dali com um nó no estômago, sentindo que a Pri tava do lado dele, não do meu.
A casa mudou inteira com ele ali. Antes, tinha cheiro de café fresco pela manhã, de bolo assando no forno à tarde. Agora, era um misto de cigarro — ele fumava na varanda, mas o cheiro entrava — cerveja derramada no sofá e algo mais pesado, abafado, como se o ar tivesse ficado viciado. Até o cachorro do vizinho, o Rex, que era manso, latia toda vez que o Fábio passava perto do muro. Como se soubesse.
No colégio, eu tentava esquecer. A Bia e a Micaela eram meu alívio. Elas me faziam rir com bobagens, contavam fofocas da turma, me distraíam. Mas ultimamente, até lá eu levava o peso. Um dia, na hora do recreio, a Bia me cutucou.
— Ei, Sara, você tá estranha. Tá acontecendo alguma coisa em casa?
Eu hesitei. Queria contar tudo: o Fábio, os olhares, o medo. Mas e se elas achassem que eu tava louca? Em vez disso, forcei um sorriso.
— Nada, só cansaço. Provas, né?
Elas riram e mudaram de assunto, mas eu fiquei ali, mastigando o silêncio. À noite, deitada na cama, eu pensava nisso. Por que era tão difícil falar? Por que eu me sentia tão sozinha?
Uma noite dessas, o pior aconteceu. Era de madrugada, a casa escura como breu. Eu desci pra pegar água, pés descalços no piso frio, tentando não fazer barulho. Meu coração já tava acelerado só de sair do quarto. Liguei a luz da cozinha, e quase gritei. Ele tava lá, sentado na cadeira, só de bermuda, o peito nu brilhando sob a luz fraca. Mexendo no celular, como se fosse normalíssimo estar ali às três da manhã.
— Te assustei, guria? — ele disse, levantando o olhar devagar, com aquele sorriso torto.
Fiz que não com a cabeça, mas minhas mãos tremiam tanto que o copo quase escorregou. Peguei a água o mais rápido possível, virando de costas pra ele. Mas aí veio a voz dele, baixa, sussurrada, como um segredo sujo:
— Tá crescendo, hein? Tá virando mulher. Logo vai precisar de alguém pra te ensinar as coisas.
As palavras me congelaram. Meu sangue virou gelo. Virei devagar, encarando ele com toda a raiva que consegui juntar, mas ele só riu. Uma risadinha seca, irritante, e voltou pro celular como se nada tivesse acontecido. Saí correndo pro quarto, travei a porta e encostei a cadeira na maçaneta, só pra garantir. Meu corpo inteiro tremia, e as lágrimas que eu segurei o dia todo finalmente caíram.
Como é que ninguém via? Como é que um homem comenta uma coisa dessas com uma guria de dezesseis anos? Como é que a Pri, que era tão doce, ignorava isso? E o meu pai... ele tava cego?
No dia seguinte, comecei a anotar tudo num caderno velho que eu guardava na gaveta da mesa de cabeceira. As datas, as horas, as coisas que ele falava, os olhares que me seguiam pelo corredor.
“Dia 5: Olhou pra mim na sala, sorriu torto. Disse que eu tava ‘crescendo’.”
“Dia 7: Encontrei ele na cozinha de noite. Comentário nojento.”
Não sei pra quê ainda. Talvez pra provar pra mim mesma que não tô louca. Talvez pra mostrar pra alguém, um dia, se as coisas piorarem.
Enquanto isso, sigo aqui. Invisível. Trancada no meu quarto, ouvindo os risos dele ecoarem pela casa. Esperando que ele vá embora. Ou que, pelo menos, alguém abra os olhos antes que seja tarde demais. Porque eu sinto, no fundo, que isso é só o começo. E se ninguém me escutar, vou ter que gritar sozinha.
Mas como? Como eu faço pra lutar contra algo que ninguém mais vê?