Terra.

2001 Words
Capítulo-I. Terra " Vieste, de alguma forma Vieste, sem pouso celeste e cravou-se em mim. Vieste feito pássaro noturno, totalmente sem rumo e sobrevoou em minha volta. Não caiu no meu peito, caiu em meu ninho e ali está fazendo morada." Cícero Já se passaram alguns dias desde que Marrynna entrou na minha casa — e, sinceramente, acho que ela nunca havia pisado descalça na terra antes. No primeiro dia, dei algumas orientações simples, mostrei onde estavam as coisas e como funcionava a rotina do rancho. Pareceu entender. Ou eu que pensei que as mulheres sabiam alguma coisa sobre limpeza de casa e organização. No entanto a ruiva mostrou que eu estava totalmente enganado. Saí para o trabalho e, ao voltar para casa, me deparei com um cenário digno de um furacão. Sempre fui uma pessoa organizada e metódica, mas encontrei uma verdadeira zona de guerra. No chão da sala, havia mais terra do que no quintal; no quarto, roupas espalhadas por todo lado; a coberta que a mulher usou estava jogada perto do sofá, um travesseiro caído no chão, e na cozinha, a louça parecia querer escalar as paredes, com comida destampada em cima do fogão e uma garrafa de água vazia. Senti um nervoso crescente e retirei o boné, colocando as mãos na cintura. — Ah, oi, você chegou! Precisa arrumar aquele chuveiro, porque tomar banho gelado não dá! — disse Marryna, saindo do banheiro. Olhei para a ruiva que estava apenas de vestido e com uma toalha no cabelo. — Eu só tomo banho frio, ajuda a despertar — respondi. A mulher retirava a toalha do cabelo enquanto caminhava despreocupada pela bagunça. — Como você consegue viver em uma casa do tamanho de um ovo? - jogou a toalha em cima de uma cadeira e fez menção com as mãos para a nossa volta. Oi?? Ah, não, eu não ouvi isso! — Você acha pequena? — Acho e simples demais — ela olhou ao redor outra vez— com três passos chego na sala, com sete no banheiro, cinco no quarto e com oito atravesso a sala. Isso não é pequeno, é micro. Estreitei o olhar para a ruiva, imaginando que se ela fez essa bagunça em um espaço tão diminuto, o que não faria em uma casa maior! Estou morrendo de fome. O que vamos comer? Essa coisa amarela me desagrada - apontou para a panela de mingau de milho verde. _ Isso se chama mingau de milho verde, e eu adoro! Com canela, então, fica uma maravilha. _ Que gosto peculiar você tem, hein! - fez uma careta. _ Eu não costumo jantar, mas você pode preparar algo. A mulher virou-se para mim com os olhos arregalados. _ Eu? Cozinhar? Suspirei, exausto, desejando um banho relaxante e um mergulho profundo no sono. E ainda tinha que terminar um trabalho da faculdade. _ Marrynna, eu sei que fui eu quem te trouxe para minha casa. Você me contou sobre sua situação complicada, mas, se não percebeu, a casa está uma verdadeira bagunça. _ O que está sugerindo? - ergueu uma sobrancelha. Olhei sério para a mulher. _ Que mantenha tudo em ordem e limpo. Vamos dividir as tarefas. _ Tarefas? Como assim tarefas? _ Tarefas, ruiva. A casa não se limpa sozinha, muito menos a roupa e a louça. Você vai cuidar das suas roupas e eu das minhas, toda a louça que você sujar deverá lavar, enxugar e guardar. Para começar, toalha depois que se usa, deve ser estendida, o varal é lá fora. - apontei para a porta da cozinha. A mulher fez uma cara de quem não estava acreditando nas palavras que saia da minha boca. Achei que tinha ficado tudo bem esclarecido, fui para o meu quarto, juntei as roupas que ela tinha espalhado sobre a minha cama e coloquei em cima de uma cadeira onde eu tenho o costume de colocar o ventilador. Abri meu pequeno guarda-roupa e peguei uma camisa e um shorts fino, segui para o banheiro e travei na porta ao ver o piso molhado, tapetes fora do lugar, creme dental sem a tampa, balcão molhado e ralo cheio de fios de cabelos. Travei o meu maxilar. Minha nuca deu várias pontadas. Entrei fechei a porta e retirei a roupa murmurando enraivecido. Sempre ouvi de amigos próximos eles falarem das suas esposas que não eram mulheres limpas e organizadas e do arrependimento deles em terem casado com elas. Agora eu estou aqui passando por algo similar, sendo que nem casado eu sou. Antes de me banhar, organizei o banheiro, recolhi os fios da tampa do ralo e só depois me permitir relaxar debaixo da água fria. No dia seguinte, um sábado livre de obrigações e aulas, acordei em meio àquela confusão e decidi que era hora de ensinar à mulher um pouco sobre como cuidar da casa que a acolheu. Acreditei que seria uma tarefa tranquila, mas, após o café da manhã, quando pedi que ela varresse o chão da varanda, sua reação foi como se eu tivesse solicitado que ela saísse em busca de um jacaré. — Eu? Varrer? Não tem ninguém pago para isso, não? Suspirei fundo. — Aqui não tem empregado. Sempre cuidei de tudo sozinho, no entanto agora que vive dividido o mesmo espaço que eu, cada um vai fazer o que precisa. Ela não respondeu. Cruzou os braços e ficou me olhando como se eu fosse um bicho estranho. Entreguei a vassoura para Marrynna e indiquei a pequena varanda. Fiquei observando a mulher batalhar com a vassoura; ao invés de varrer, ela parecia esfregar a piaçava no chão. Falava um monte de coisas em um idioma estranho, típico de estrangeiros. Decidi ir para a cozinha e liguei meu pequeno rádio que fica em cima da geladeira, colocando uma moda sertaneja das antigas. Olhei para a pia e pensei: — Agora somos só eu e você, esponja, sabão e água. — Comecei a enfrentar a pilha de louça suja. A mulher parecia ter usado todos os copos da casa; contei doze no total, e as colheres não paravam de aparecer, como se tivessem brotado do chão. — Pronto, terminei! Meu braço quase caiu! — reclamou, sentando-se à mesa. Eu duvidava que tudo estivesse realmente limpo, mas preferi ficar em silêncio. — Pega o pano de prato e enxuga a louça. — Vou acabar com as minhas unhas! — Vamos, Marrynna, ou hoje não tem almoço. Ela soltou um suspiro. — Onde está o pano? — Na segunda gaveta do balcão. Relutante, ela começou a enxugar a louça. Juntos, guardamos tudo, enquanto eu explicava mais uma vez onde cada coisa ficava. No domingo, tentou fritar um ovo. Jogou o óleo na frigideira com tanta força, presumo eu, que quase incendiou a cozinha. Quando ouvi o seu grito despertei assustado corri para saber o que estava acontecendo, quando cheguei, ela estava com a cara fechada, um dedo queimado debaixo da água corrente a frigideira no chão. _ O que aconteceu aqui Seus olhos ficaram enormes ao olhar para a linha abaixo da minha cintura. Acompanhei o seu olhar e levei a mão para tentar minimizar a barraca armada. _ Ereção matinal. - dei de ombros. Me retirando em direção ao banheiro. Minutos depois retornei e encontrei a mulher sentando na beirada da cadeira, soprando o dedo. — Isso aqui é vida de penitência — murmurou. Quase ri, mas me segurei. — Vida simples, Dona. Só isso. Quem nasce em berço de ouro costuma achar que viver com menos é um castigo. Mas aqui tem paz. E, às vezes, paz vale mais que luxo. Ela me olhou de lado, como se eu estivesse falando a maior asneira do mundo. No mesmo domingo, tentei envolvê-la nas tarefas com as galinhas, horta, cuidados com os gansos, com os peixes, menos com o gado e com os porcos. Pensei que ela pudesse gostar, sei lá... tirar os ovos do ninho, dar ração, coisas simples. Mas deu dois passos para dentro do galinheiro e saiu correndo como se tivesse visto um fantasma. — Uma galinha voou na minha cara! Aquilo tem asas, sabia? — Pois é, galinha voa. E bica, se duvidar — respondi rindo. A ruiva soltou a vasilha de ração no chão e saiu fechando a cara. Olhei para a moça da cidade totalmente fora da bolha que tinha sido criada. Cuidei das galinhas. Troquei a água e depois fui cuidar do meu cavalo e molhar a horta, aproveitei para colher algumas raízes de aipim. Queria fazer alguns bolinhos com carne seca e queijo coalho. Pelo caminho fui pensando na situação da ruiva, a verdade é que pessoas como Marrynna não estava nada preparada para essa vida simples. Foram criadas para serem servidas e não servir, criadas para darem ordens e não fazer o serviço. Dentro de mundo, há muito tempo, aprendi que somos separados por vários tipos de bolhas. Aprendi que existe uma classificação que divide todos. Ao retornar, trazendo nas costas um saco de ração cheio de aipim, a encontrei lendo um livro que deixei perdido na prateleira há anos — um romance qualquer, meio desgastado. Ela estava tão concentrada que nem percebeu minha chegada. — Gosta de ler?- perguntei. Ela me olhou assustada. Depois baixou os olhos, como se fosse revelasse um segredo. — Gosto. — Ganhei alguns livros, faz bastante tempo de uma professora de português com quem tinha um namorico. Ela foi embora da cidade e deixou uma caixa cheia, nunca os li. _ Sheila o nome dela, não é? Está escrito na folha de guarda. _ Sim, morena bonita olhos verdes feito o meto quando a chuva cai. Simpática e muito simples. _ Gostava dela? Queria... queria casar, ter filhos...com ela?- perguntou pisando em ovos. _ Isso não me ocorreu na época. Nós dávamos bem e gostávamos da presença um do outro. Mas não era um relacionamento formalizado. Éramos amigos e foi acontecendo devagar. - pensei em Sheila, no s*xo gostoso, nos beijos, corpo gritou de vontade, decidi encerrar o assunto- Vou preparar algo com esse aipim. Sai da presença da ruiva. Depois de colocar o aipim para cozinhar no fogão a lenha, sentei no alpendre com minha viola. O céu estava limpo e estrelado, e o vento soprava suavemente. Comecei a dedilhar algumas notas nas cordas, arrancando do instrumento melodias. Eu sempre deixava o violão no suporte, coberto por uma capa de plástico para o proteger da poeira. A música que aprendi com meu avô, foi sendo tocada de maneira preguiçosa, porém com gosto de saudade. Meu avô tinha falecido há cinco anos. Pela visão periférica, acompanhei o momento que Marrynna apareceu na porta, com os cabelos soltos e os olhos curiosos. — Isso é bonito — disse baixinho, ficando de pé perto de mim. — Essa música. É triste. — É doída, saudosa.— concordei. — Mas bonita. Como certas lembranças. Ela não respondeu. Ficamos ali em silêncio. Eu tocando. Ela ouvindo. E, por um instante, o rancho pareceu menos vazio. No fundo, me perguntava se foi realmente a pior besteira do mundo ter trazido essa ruiva para dentro da minha casa — ou se foi, talvez, o começo de algo que ainda não entendia direito. Minha mãe diz que nunca passamos pela vida de alguém sem propósito, que estamos sempre ensinado ou aprendendo e assim, sem sabermos, vamos crescendo como seres humanos. Faz alguns dias que a ruiva está debaixo do mesmo teto que eu e pouca coisa mudou ou quase nenhuma. Marrynna continua bagunceira e não ajuda em casa. Estou pirando. E se antes eu tinha duvida se foi a pior coisa ter levado a mulher para dentro da minha casa, hoje tenho certeza. _ Pensativo, Cícero? - ouço o tio do meu amigo Tomé, perguntar. _ Nada, só repassando algumas matérias na mente, tenho uma prova hoje na faculdade. -minto. _" Cê" é desses rapazes que dá gosto! Sempre esforçado e trabalhador. Volto a olhar para a cerca que preciso concertar, os bois conseguiram levar o arame no peito.
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