Prólogo
Itália | Cattedrale di Palermo
Alessandro - 13 anos
O bebê que sobreviveu. Era como o padre Giancarlo costumava dizer sobre mim. Eu era um segredo, daqueles bem guardados. Daqueles que nem Deus faria o padre Giancarlo revelar, porque havia algo que Giancarlo temia mais do que Deus: a máfia siciliana, a Cosa Nostra.
Como todo garoto cheio de curiosidade, eu escapei diversas vezes de Giancarlo, apenas para perambular pelas ruas da Itália. Isso era o ápice da liberdade que eu podia desfrutar na época.
Cresci escondido, em um quarto apertado no subterrâneo da catedral. Giancarlo me ensinou o básico do que se deve aprender na escola, e, por ter muito tempo livre, comecei a estudar sozinho e desenvolvi diversas habilidades que deixavam Giancarlo bastante orgulhoso.
Quando não estava com o peito estufado de orgulho, Giancarlo estava ralhando comigo por ficar assistindo escondido às reuniões e acertos de conta da Cosa Nostra.
A violência me incomodava no começo, mas depois de um tempo já não era relevante; era, no mínimo, previsível. Por outro lado, as frases sussurradas quando se acreditava que a única testemunha estava morta me prendiam a atenção.
Eu tinha entre nove e dez anos quando comecei a registrar tudo o que acontecia, tanto nas reuniões do andar de cima da catedral quanto nas intermináveis sessões de tortura no subterrâneo.
A Cosa Nostra era intrigante, um emaranhado de segredos que poderia destruir algumas famílias poderosas da máfia. Mas, assim como no xadrez, era um jogo de estratégia, e revelar os segredos alheios poderia custar caro.
Nessa noite, a máfia siciliana estava em polvorosa. E foi então que Giancarlo recebeu a ilustre visita de Don Salvatore. O capo de tutti i capi. Algo importante havia acontecido e, pelo olhar que Giancarlo me lançou antes de receber o homem, ou ele queria me fuzilar para que eu virasse cinza e desaparecesse, ou então, o mais óbvio, era um recado claro de que essa era uma conversa proibida para as minhas orelhas rebeldes.
— Padre, dê-me sua bênção! — A voz de Don Salvatore, apesar de mansa, evocava uma ordem explícita.
— O que faz aqui? — Giancarlo queria demonstrar firmeza, mas sua voz tremia em um desconforto crescente. — Poderia ter mandado Eduardo em seu lugar.
Don Salvatore pareceu realmente ofendido, o que fez um calafrio percorrer minha espinha e um ma.l-estar tomar conta do meu corpo, como se a simples presença de Don Salvatore fosse um m.au agouro.
Apesar das tentativas do padre Giancarlo de me convencer a não ser enganado por superstições diabólicas, eu sempre falava em sorte quando ele me contava a forma como milagrosamente sobrevivi quando bebê. E sempre citava o quão azarado eu era por ser obrigado a viver escondido como um rato.
Como hoje. Eu sabia que algo estava terrivelmente errado, e tive certeza pouco tempo depois.
— Eu vim me confessar! — Don Salvatore falou antes de entregar uma maleta para Giancarlo, que a segurou como se fosse uma bomba prestes a explodir.
Don Salvatore deve ter percebido, pois fez questão de abrir a maleta para mostrar o dinheiro.
— Eu conheço os seus pecados. — Giancarlo respondeu, enquanto buscava um lugar para colocar a mala cheia de dinheiro.
— Não! Você não conhece... — Don Salvatore rebateu.
O homem de meia-idade tinha a aparência conservada e uma postura firme. Lembrava os guerreiros dos filmes que eu assistia. Don Salvatore não era um homem que devia ser desafiado, apesar do seu semblante oscilar levemente entre tristeza e raiva.
— Salvatore, diga de uma vez. O que te traz aqui? — Giancarlo continuava tentando controlar a situação inutilmente.
— Já disse! Eu vim me confessar...
Don Salvatore se ajoelhou, retirou duas armas da cinta e depositou no chão ao seu lado.
— O que tem lhe tirado a paz, filho? — O padre Giancarlo assumiu o tom complacente comumente usada com seus fiéis pecadores.
— Eu mandei matar Angelina Tomazzine e as crianças! — Eu senti o choque atingir meu peito impiedosamente, e talvez o padre tivesse feito uma reza muito forte para que eu não saísse do meu esconderijo.
Eu estava paralisado diante da revelação, Angelina Tomazzine era a minha mãe, essa era uma das poucas informações que eu tinha sobre ela, e as palavras do padre, era como um golpe seco de chibata no meu corpo "Eu conheço os seus pecados...". Ele sempre soube.
Não me lembro se Giancarlo mandou que ele rezasse dez ave Maria, ou se o valor na maleta já era suficiente para pagar pelos seus pecados, mas lembro de pular em cima do padre assim que Don Salvatore deixou a igreja.
O meu ataque era um conjunto de xingamentos, com lágrimas e questionamentos desconexos, até só sobrarem as lágrimas e as mãos trêmulas do padre me abraçando.
— Você sempre soube... — minha voz soou embargada, presa pelo nó angustiante que se formava na minha garganta.
— Sim.
— Ele tem que morrer! Eu vou matar Don Salvatore! ELE TEM QUE MORRER — Eu gritei, e foi nesse momento que Giancarlo me pegou pela camiseta e me colocou de frente o espelho.
— Olha pra você, garoto. Um pirralho. Não sabe nada sabre o homem que controla com mãos de ferro tudo lá fora. Se Salvatore descobrir que você está vivo, ele te esmaga como um piolho. Como um verme. Olhe para mim, Alessandro! Olhe pra mim!
Giancarlo estava furioso, não por eu ter ouvido a conversa, ou por ter lhe atacado, ele estava furioso com a impotência que sentia diante do meu sofrimento.
— Você precisa sair da Itália! — ele continuou. — Você é um garoto inteligente, vai pra longe de tudo isso, vai estudar e nunca mais vai retornar para a Itália. Quando eu puder, irei te visitar. E quando você crescer o suficiente, vai ter sua própria família e a vida não vai ser mais tão solitária.
— Eu vou ficar — Respondi com raiva e com a confiança que todo adolescente tem — A Cosa Nostra me tirou tudo, não vão me tirar você!
— Você precisa ir embora, Alessandro. A Itália não é um lugar seguro pra você. E eu sou velho de mais pra lutar — Giancarlo riu, como se não tivesse me dando uma sentença horrível, a solidão.
Dois dias depois desse acontecido, ele pegou um pouco do dinheiro da maleta e me entregou, antes de me deixar no aeroporto com destino a Nova York.
— Esse dinheiro te pertence, usarei o restante pra pagar os seus estudos. Você vai ter uma vida muito boa em Nova York, um amigo irá te receber. Só me prometa que não vai voltar!
— Não posso prometer isso, padre. Não quando há tantas perguntas sem respostas... — Apontei para o caderno pequeno em minhas mãos.
— Esqueça isso, Alessandro. Não há nada de bom em reviver o passado. — Giancarlo me encarava com seriedade — E esses meus amigos de Nova York não podem saber dessa sua raiva contra Don Salvatore, na verdade ninguém pode saber.
— Por que? — Perguntei, mesmo temendo a resposta.
— Ninguém daria asilo a um traidor da Cosa Nostra.
— Eu não sou um... minha mãe não... — Eu não conseguia pronunciar a palavra "traidor". E as minhas certezas eram tão frágeis, quanto a minha esperança de vingança.
— Se for pra lutar uma guerra, Alessandro, não lute com a certeza da derrota. Pois, não há honra e nem glória em ser um perdedor.
Eu fui embora da Itália com duas certezas, a primeira é que eu retornaria pra vingar a morte da minha mãe e do meu irmão. E a segunda, era que o padre Giancarlo, que foi como um pai pra mim todo esse tempo, esperava o meu retorno e esperava que eu lutasse. Não como o garoto que o enfrentou na igreja, com mãos trêmulas, e lágrimas nos olhos, mas como um homem, com dedos hábeis, para puxar o gatilho.