1. A Carona (Parte II)...

2053 Words
A porta se fechou atrás de mim com um estalo definitivo. Foi um som seco, o tipo de ruído que normalmente se perderia na cacofonia do cotidiano, mas que naquela noite soou como o baque de um martelo de juiz. Sentença proferida. Soltei um suspiro trêmulo que eu nem sabia que estava segurando no peito desde que entrei naquele carro. A sala estava imersa na penumbra, pintada pela luz azulada e intermitente da TV sem som. Minha mãe dormia no sofá, encolhida sob uma manta fina, com aquela expressão de exaustão crônica que parecia ter se fundido às suas feições. Meu pai não estava. A estática habitual. Nada novo sob o teto da família. Subi as escadas pisando nas pontas dos pés, mas cada degrau rangia, ecoando dentro de mim. Meu corpo parecia ainda vibrar com a memória do movimento do carro, a sensação fantasma do cinto de segurança e a presença de Theo, pesada e inegável, ao meu lado. No refúgio do meu quarto, deixei a mochila escorregar dos ombros até o chão. Arremessei o uniforme sobre a cadeira e desabei na beira da cama. O colchão afundou, mas não tanto quanto minha mente, que girava sob o peso de uma confusão que eu me recusava a nomear. Meus olhos buscaram a janela. A chuva continuava — fina, metódica, riscando o vidro como se tentasse desenhar o que tinha acontecido na última meia hora. Fechei os olhos, e a cena voltou em alta definição. Theo, parado no estacionamento sob a garoa. A postura relaxada, quase arrogante em sua calmaria. A frase dele reverberando nas paredes do meu crânio: ​"Você não precisa ter medo de mim." Por que ele disse aquilo? Por que soou tão seguro, como se tivesse acesso a um manual de instruções sobre quem eu era? E por que ele falava comigo com aquela familiaridade assustadora, como se já tivesse me decifrado muito antes de trocarmos a primeira palavra? ​Levantei-me num sobressalto, impulsionada por uma energia nervosa. Comecei a arrumar o quarto sem necessidade alguma, apenas para dar às minhas mãos algo para fazer que não fosse tremer. Estiquei os lençóis. Reorganizei livros por cor. Ajustei a cortina milimetricamente. ​Mas nenhuma ordem externa conseguia organizar o caos interno. A impressão de que algo havia começado — sem meu consentimento, sem minha assinatura — era inevitável. ​Peguei o celular, um reflexo moderno de ansiedade. Duas notificações irrelevantes de grupos da escola. Nenhuma mensagem dele. Não que eu esperasse. Theo Navarro não tinha o perfil de quem manda emojis de "boa noite" depois de uma carona forçada pelo diretor. ​Ainda assim, uma parte de mim — pequena, traidora e inconveniente — notou o vazio na tela. ​Joguei-me de costas na cama e encarei as sombras no teto. Podia ouvir meu próprio coração: lento, pesado, batendo num ritmo de irritação. Eu estava com raiva de mim mesma por pensar nele. ​Não era crush. Não era curiosidade adolescente. Era outra coisa. Uma inquietação nova, uma espécie de alerta primitivo que eu ainda não sabia traduzir. ​E eu odiava isso. ​Minha mente racional tentava repetir o mantra: ele é só um garoto. Um garoto bonito demais para passar despercebido. Intenso demais para ser confortável. E cercado de boatos demais para ser seguro. ​Eu passei a vida evitando gente assim. Gente que fala com o corpo, que diz volumes com o silêncio, que te olha como se estivesse procurando a peça que falta no quebra-cabeça deles. ​Eu não queria ser estudada. Eu não queria ser vista. ​Mas naqueles minutos, dentro daquele carro blindado contra o mundo, eu senti que tinha sido enxergada. De um jeito cru que me desarmou. ​Soltei o ar devagar, cobrindo o rosto com as mãos, tentando dissipar a sensação de que minha vida tinha dobrado uma esquina perigosa sem que eu percebesse. ​Quando finalmente me levantei para fechar as cortinas e encerrar o dia, o celular vibrou contra o edredom. Meu coração disparou — um espasmo i****a — antes de eu perceber que não era ele. Era Maria. ​"Lívia, amanhã preciso te contar uma coisa sobre o Theo." ​Franzi o cenho, o brilho da tela ferindo meus olhos no escuro. ​Outra mensagem chegou logo em seguida, piscando como um sinal de alerta: ​"É sério. Você não vai gostar." ​Meu estômago deu um nó apertado. ​Fiquei parada ali, estátua no meio do quarto, ouvindo apenas o som monótono da chuva lá fora. A sensação estranha — a certeza de que o dia tinha começado com a rotina de sempre, mas terminado em um mundo diferente — voltou com força total. ​Alguma coisa estava fora do lugar. As peças no tabuleiro tinham se movido enquanto eu não olhava. ​Mas eu sabia — com a mesma certeza visceral com que sabia meu próprio nome — que o ponto de ruptura tinha sido aquela carona. ​Theo. A frase dele. O jeito como o olhar dele parecia atravessar minhas defesas. ​E o destino, com seu senso de humor c***l, parecia disposto a não me deixar esquecer. ​A mensagem de Maria ficou aberta na tela do celular como uma ferida exposta. Reli as palavras até que perdessem o sentido, mas o peso delas permaneceu. A ansiedade grudou na minha pele como a umidade daquela noite, me acompanhando até o sono inquieto. ​Dormi m*l. Acordei pior. O céu ainda estava num tom de azul-marinho quando me arrastei para fora da cama. ​Desci as escadas em silêncio. Na cozinha, minha mãe preparava o café, o cheiro forte e reconfortante flutuando no ar frio. Ela sorriu ao me ver, uma surpresa genuína em seu rosto. ​"Acordou cedo hoje." ​"Não consegui dormir." ​"Ansiedade?" ​"Cansaço", menti. ​Ela assentiu, com aquele olhar de quem reconhece batalhas internas, mas sabe que não pode lutar por elas. ​Saí de casa com minutos de sobra. O ar da manhã era gélido, e a rua, ainda molhada, refletia a luz amarelada dos postes como espelhos distorcidos. A caminhada até a escola foi rápida, mecânica, mas minha mente era um turbilhão. ​Preciso te contar uma coisa sobre o Theo. Você não vai gostar. ​Maria não era dada a dramas. Ela não diria isso sem um motivo sólido. ​Quando cheguei, o portão estava semiaberto, a escola ainda acordando. Pouca gente. Um grupo de meninos conversava baixo perto da quadra. Duas garotas riam de algo que não parecia ter graça nenhuma. ​Sentei no banco sob a árvore grande, meu refúgio habitual, e esperei. Meu coração batia com uma força desproporcional para uma manhã de terça-feira. ​Aos poucos, o formigueiro começou. E então vi Maria. Ela atravessava o pátio com passos rápidos, a expressão tensa de quem carrega más notícias. ​"Graças a Deus te achei", disse ela, sentando-se ao meu lado sem cerimônia. ​"Fala logo." ​Ela respirou fundo, preparando o terreno. ​"Lembra da carona de ontem?" ​Senti meus ombros ficarem rígidos. ​"O que tem?" ​"Todo mundo viu você entrando no carro dele, Lívia." ​Pisquei, a confusão nublando meu raciocínio. ​"E daí?" ​Ela mordeu o lábio, desviando o olhar por um segundo. ​"Lívia... estão falando que você está... envolvida com ele." ​O chão pareceu ceder alguns centímetros sob meus pés. ​"Mas isso não faz o menor sentido." ​"Eu sei", ela concordou depressa, a voz urgente. "Só que você conhece a escola. É um ecossistema tóxico. As pessoas adoram inventar histórias para preencher o vazio das próprias vidas." ​Soltei um suspiro longo, carregado de irritação. ​"Isso vai morrer rápido. É fofoca de corredor. Não tem motivo pra render." ​Maria me olhou de um jeito diferente. Havia pena ali. E medo. ​"Só que tem uma coisa pior." ​O sangue gelou nas minhas veias. ​"Fala." ​"Theo... ele não tem uma boa reputação. Você sabe." ​Eu sabia. Ou achava que sabia. Eram sussurros. Lendas urbanas do ensino médio. O garoto problema, o misterioso, o intocável. Eu nunca dei atenção porque nunca fez parte do meu mundo. Até ontem. ​"Estão dizendo que você é só... mais uma." ​Minha garganta fechou. O ar ficou escasso. ​"Mais uma o quê?" ​Ela hesitou, como se a palavra fosse física e doesse para sair. ​"Mais uma que entrou no radar dele. Mais uma para a lista." ​As palavras me atingiram como pedras. Uma mistura corrosiva de incredulidade e raiva subiu pela minha coluna, aquecendo meu rosto. ​"Isso é ridículo", consegui cuspir as palavras. ​"Eu sei", ela repetiu, segurando minha mão. "Mas as pessoas acreditam. E, sinceramente... eu não quero ver você no meio desse tiroteio." ​Fiquei em silêncio. Aquele tipo de silêncio que se expande por dentro, empurrando todo o resto para as bordas. Eu me sentia exposta. Vulnerável. ​Maria apertou meu braço. ​"Lívia... você não precisa lidar com isso sozinha. Eu só queria te preparar." ​Assenti, mecanicamente, sabendo que nenhuma preparação no mundo poderia aliviar a pressão que começava a esmagar meu peito. ​O sinal tocou, estridente, e caminhamos para a sala como se estivéssemos indo para o abate. A cada passo pelo corredor, eu sentia os olhares. Eram físicos, pesados, atravessando minhas costas. Sussurros se arrastavam pelas paredes, baixos demais para serem ouvidos com clareza, mas nítidos o suficiente para eu saber que meu nome estava neles. ​Sentei na minha carteira de sempre, no fundo, tentando ficar invisível, tentando ignorar o peso crescente daquela atmosfera sufocante. ​E então, a energia da sala mudou. Ele entrou. ​Theo passou pela porta com o mesmo andar fluido e tranquilo de sempre. A jaqueta escura, o cabelo levemente bagunçado, a mochila pendurada em um ombro com descaso. Parecia imune ao mundo. ​Mas os olhares mudaram. O cochicho aumentou, uma onda de estática que percorreu as fileiras. Ele fingiu não ouvir, mas eu, que estava olhando minuciosamente cada movimento dele, vi a tensão discreta no maxilar. O único sinal de que ele sabia. ​Por um instante, pensei que ele passaria direto, ignorando minha existência para nos poupar. Mas quando chegou ao lado da minha mesa, ele parou. ​A sala inteira caiu num silêncio absoluto. Um vácuo. Todos esperando o próximo ato do show. ​Theo se inclinou ligeiramente sobre minha mesa. Apoiou uma mão na madeira, invadindo meu espaço pessoal, a voz baixa, rouca, destinada apenas aos meus ouvidos. ​"Estão falando de você por minha causa." ​Não era uma pergunta. Era uma constatação amarga. ​Engoli a seco, sentindo o rosto queimar sob a atenção da turma. ​"Eu sei." ​Ele me olhou nos olhos. E por um segundo, o resto da sala desapareceu. Havia algo inquieto naquele olhar escuro. Algo como culpa, sim, mas havia algo mais profundo, mais antigo. ​"Não liga para eles", disse ele, o tom firme, quase uma ordem. ​"Não tem como não ligar, Theo." ​Ele assentiu devagar, os olhos presos nos meus, como se absorvesse o impacto das minhas palavras. ​"Prometo que isso vai passar." ​"Você promete muito para alguém que m*l me conhece", murmurei, a defesa automática surgindo nos meus lábios. ​Theo respirou fundo, e seu olhar se tornou intenso, quase tangível. Ele se aproximou um centímetro a mais. ​"Eu te conheço mais do que você acha, Lívia." ​A frase caiu entre nós como uma granada sem pino. Um impacto silencioso, uma vibração elétrica que arrepiou os pelos da minha nuca. ​Antes que eu pudesse processar, antes que eu pudesse perguntar como ou por quê, o professor entrou na sala batendo a porta, quebrando o feitiço. O mundo voltou ao normal — ou ao teatro do normal. ​Theo se endireitou e seguiu para a própria carteira, sem olhar para trás. ​Mas eu olhei. Eu não conseguia tirar os olhos das costas dele. ​E foi naquele gesto, naquele momento de confusão e adrenalina, que eu percebi: A carona de ontem não tinha sido um acidente de percurso. Tinha sido uma mudança de eixo. Uma porta havia sido aberta para um lugar escuro e desconhecido, e eu, querendo ou não, já estava sendo puxada para dentro.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD