O restante da manhã se desenrolou em um torpor estranho, como se eu estivesse assistindo à minha própria vida através de um vidro embaçado.
Ao meu redor, as pessoas se moviam, falavam, riam e digitavam freneticamente, mas o som chegava até mim abafado, distante. Meu corpo obedecia à rotina, mas minha mente permanecia ancorada naquele corredor, congelada no instante exato em que Theo segurou o celular e engoliu o caos em silêncio.
Só que o silêncio de Theo Navarro nunca era vazio.
Era um prelúdio.
E a escola inteira, acostumada aos sinais de tempestade, percebeu isso rápido demais.
O segundo intervalo estava prestes a começar quando um som distinto veio da quadra coberta. Não era a cacofonia habitual de jogos ou gritos de torcida. Era algo mais contido, uma vibração de baixa frequência, feita de vozes tensas e passos estancados.
Maria me puxou pelo braço, os olhos alertas.
"Vem. Acho que é sobre o que rolou mais cedo."
Meu instinto foi recuar. Eu m*l tinha forças para me manter vertical, quem dirá enfrentar mais um capítulo daquele drama. Mas meus pés, traidores, seguiram o som.
Quando nos aproximamos das grades da quadra, o cenário já estava montado.
Theo estava lá.
Parado no centro, a postura é enganosamente relaxada, mas com o foco de um predador. Ele não estava gritando. Ele estava conversando com três garotos do terceiro ano — os mesmos que haviam postado o vídeo do estacionamento com aquela legenda sórdida.
Não era uma briga física. Ainda não.
Mas o ar ao redor deles estava tão denso que parecia inflamável.
Fiquei oculta atrás de uma pilastra de concreto, observando, sentindo o coração bater na garganta.
"Ele tá maluco?" Maria sussurrou, incrédula. "Esses idiotas vivem procurando confusão."
Mas Theo não parecia nem remotamente intimidado.
"Vou falar uma vez só" a voz dele chegou até mim, não pelo volume, mas pela clareza cortante. "Apaguem o que postaram."
Os garotos riram. Uma risada f**a, carregada de deboche e falsa bravura.
"Que isso, Navarro? Ficou sensível agora?" um deles provocou, estufando o peito.
"O vídeo nem mostra nada demais", outro completou, com um sorriso malicioso. "Só você e a princesinha entrando no carro."
O apelido irônico fez meu rosto queimar. Senti a vergonha escalar pelo pescoço, quente e sufocante. Eu queria gritar, correr, desaparecer da face da terra.
Mas Theo nem piscou. Ele cruzou os braços, os bíceps tensionando sob o tecido da camisa.
"Apaguem."
"E se a gente não quiser?" o terceiro desafiou, dando um passo agressivo à frente.
Theo inclinou a cabeça levemente para o lado. A expressão dele era de uma calma terrível.
"Eu não estou pedindo", ele disse.
Houve um silêncio breve — o tipo de vácuo que antecede o impacto de uma colisão.
Os meninos trocaram olhares rápidos. Um deles recuperou a arrogância e sorriu.
"Relaxa, cara. Não fizemos nada demais." Ele esticou a mão para dar um tapinha condescendente no ombro de Theo. "A garota até parece ter gostado da aten..."
A frase morreu na garganta dele.
Theo interceptou a mão do garoto no ar.
Não foi um movimento brusco. Não houve um estalo de ossos ou um empurrão violento. Ele apenas segurou o pulso dele. E travou.
O garoto tentou puxar o braço de volta, mas não conseguiu. Theo sustentou o olhar dele, invadindo o espaço pessoal com uma autoridade assustadora.
"As pessoas costumam confundir silêncio com fraqueza" Theo disse, a voz baixando uma oitava, tornando-se perigosamente suave. "Eu não tenho dificuldade com nenhum dos dois. Mas eu tenho um problema sério com covardia."
O grupo congelou. O sorriso do garoto desapareceu, substituído por uma palidez súbita.
Theo soltou o pulso dele devagar, como se o contato o enojasse, mas não desviou os olhos.
"Apaguem. Agora." Ele fez uma pausa, varrendo os outros dois com o olhar. "E parem de falar dela."
Estava tudo dito.
Sem gritos. Sem o espetáculo de uma briga de bar.
A força dele residia justamente no controle absoluto que ele tinha sobre a própria violência. Ele era um vulcão que escolhia não entrar em erupção, e isso era muito mais aterrorizante do que a lava.
O primeiro garoto puxou o celular do bolso, as mãos trêmulas. Depois o segundo. E, por fim, o líder.
Os vídeos sumiram. Os comentários foram deletados. A humilhação digital foi apagada, pixel por pixel.
Theo esperou até o último segundo. Só então ele relaxou a postura.
E saiu andando.
Ele não olhou para trás. Não procurou pela plateia. Não buscou meus olhos para receber um agradecimento silencioso.
Ele não fez aquilo para posar de herói. Não fez para alimentar o ego.
Ele fez porque quis.
E essa constatação foi mais desconcertante do que qualquer outra coisa que eu tivesse sentido naquele dia.
Maria me olhou, os olhos arregalados, a boca entreaberta.
"Eu... eu nunca vi ele assim."
Eu também não.
Theo contornou a lateral da quadra e desapareceu no corredor vazio, deixando para trás três garotos humilhados e uma escola inteira que, agora, tinha duas lendas para contar: a versão suja que inventaram, e a versão implacável que ele acabara de impor.
Mas, pela primeira vez, senti que existia uma terceira versão. A minha.
Aquela que ninguém perguntou. Aquela que ninguém conhecia.
Uma versão que começava a crescer dentro de mim como uma raiz teimosa em solo árido.
Theo não era o vilão que diziam.
Mas também não era seguro.
Ele era um enigma que se aproximava de mim por todos os lados, cercando minhas defesas.
E, mesmo com medo, eu não conseguia negar a verdade pulsante no meu peito:
Eu queria entender.
Eu precisava entender.
O resto do intervalo passou como um borrão febril.
Os boatos não cessaram, apenas mutaram. O tom agressivo deu lugar a uma curiosidade cautelosa. As pessoas falavam mais baixo, olhavam com mais receio. Era como se todos tentassem decifrar por que Theo Navarro, o intocável, havia se importado tanto.
A verdade é que nem eu sabia a resposta.
Quando voltei para a sala de aula, o efeito cascata já era visível.
"Ele fez os caras apagarem tudo."
"Ele brigou por ela?"
"Será que estão juntos mesmo?"
"Ou ele só protege as meninas que... você sabe."
"Faz tempo que não vejo o Navarro desse jeito."
Cada sussurro me acertava como um soco amortecido.
Eu queria encolher, voltar a ser invisível, ser apenas mais um rosto na multidão. Mas essa opção tinha sido revogada. Agora eu era uma história. E histórias, quando caem na boca do povo, deixam de pertencer aos seus donos.
Maria me observava com cautela, como se temesse que eu fosse me estilhaçar ali mesmo.
"Não deixa isso entrar, Livi" ela murmurou, segurando minha mão. "Eles só querem entretenimento."
"É difícil" confessei, a voz fraca.
Ela não insistiu. Sabia que não havia consolo fácil.
Sentei na minha carteira, tentando organizar o material com dedos que não paravam de tremer. Um arrepio frio percorreu minha espinha, e não era por causa do ar-condicionado.
Um movimento na porta capturou a atenção de todos.
Theo entrou.
A sala mergulhou em um silêncio imediato — pesado, carregado de expectativa e de interpretações erradas.
Ele não olhou para mim.
Passou direto, caminhando até sua carteira no fundo, movendo-se com aquela letargia calculada de quem sabe que é o centro das atenções, mas não se importa.
Mas eu sabia.
Eu sentia na pele que ele tinha mapeado minha posição na sala antes mesmo de cruzar o batente.
O professor entrou logo em seguida, e a atenção da turma se dispersou. Ou fingiu se dispersar.
Durante a aula, forcei meus olhos a focarem no caderno. Tentei anotar, tentei raciocinar, tentei parecer normal.
Mas era inútil. A presença dele, algumas fileiras atrás, parecia alterar a gravidade da sala.
Em um momento de distração, virei a cabeça.
Theo estava olhando para a janela.
Mas ele não via a paisagem lá fora. O olhar dele estava perdido, focado em algo interno, escuro e complexo. Ele estava pensando. E o que quer que fosse, pesava sobre ele.
Senti um aperto estranho no peito — uma mistura de culpa e inquietação.
Será que ele fez aquilo por mim? Por responsabilidade moral? Por vergonha? Ou por algo que eu ainda não tinha coragem de nomear?
Meu coração disparou.
Como se sentisse o peso do meu olhar, Theo virou o rosto lentamente.
Os olhos dele encontraram os meus.
Foi rápido.
Apenas um segundo.
Mas foi o suficiente para desestabilizar meu eixo.
Ele desviou primeiro.
E isso, mais do que qualquer palavra, me abalou. Pela primeira vez desde que nossos caminhos se cruzaram, Theo pareceu... vulnerável. Inseguro.
E eu não tinha ideia do que fazer com essa informação.
Quando o sinal tocou, anunciando o fim da tortura, o professor m*l teve tempo de encerrar a frase. A turma explodiu em movimento e conversas altas.
Maria guardava os livros quando sussurrou:
"Vai falar com ele?"
"Não."
A resposta saiu automática, defensiva.
Maria me encarou, uma sobrancelha arqueada.
"Por quê?"
Fechei meu caderno com força excessiva.
"Porque eu não sei o que dizer. E porque..."
Parei. A verdade ficou presa na garganta.
Maria completou por mim, suavemente:
"Porque você está com medo."
O olhar dela não carregava julgamento, apenas uma compreensão que doía.
"Não dele" murmurei, embora soubesse que era uma meia-verdade. "De mim."
Ela não respondeu. Não precisava. O silêncio entre nós confirmou tudo.
Saímos da sala juntas, navegando pela correnteza de alunos. Os corredores estavam mais calmos, como se a tempestade tivesse passado, deixando apenas a umidade no ar.
Chegamos ao portão principal. Maria avistou o namorado e se despediu com um aceno rápido, me deixando sozinha por alguns segundos na calçada.
Respirei fundo, sentindo o ar da tarde limpar meus pulmões.
E então, ouvi.
"Lívia."
Virei antes que meu cérebro pudesse me impedir.
Theo estava a alguns passos de distância. Mãos nos bolsos, o uniforme desalinhado, o cabelo caindo sobre a testa. A expressão dele era séria.
Não a seriedade arrogante de antes. Mas uma seriedade crua, quase dolorosa.
"A gente precisa conversar" ele disse.
Precisar.
A palavra teve um peso físico.
Balancei a cabeça, recuando meio passo.
"Agora não."
Ele fez menção de se aproximar, mas parou, respeitando a barreira invisível entre nós.
"Eu não quero que você pense que...", ele começou, depois parou, frustrado. Respirou fundo e recomeçou, olhando nos meus olhos. "Eu não deixo ninguém falar assim de mim. É verdade. Mas hoje... hoje eu fiz isso por você."
Meu coração falhou uma batida, tropeçando no próprio ritmo.
Ele continuou, a voz rouca:
"Você não merece carregar um boato que não é seu."
Engoli seco, sentindo um nó na garganta.
"Nem você" respondi, num sussurro.
Theo sorriu. Um sorriso triste, quebrado, que não chegou aos olhos.
"Talvez eu mereça, sim" ele disse, com uma honestidade brutal. "Mas você não."
A sinceridade dele cortou o ar como uma lâmina.
"Theo..." comecei, sem saber o que viria depois.
Mas ele deu um passo para trás.
Respeito. Distância. Autocontrole.
"Quando você souber o motivo de tudo isso, vai entender" ele disse, a voz baixa, quase um segredo. "E eu... eu só espero que não seja tarde demais."
E antes que eu pudesse perguntar "tarde demais para quê?" ele já tinha virado as costas, desaparecendo entre os alunos que deixavam o pátio, levando consigo as respostas que eu desesperadamente queria — e temia — ouvir.
Fiquei ali, imóvel, sentindo o vento frio bater no meu rosto aquecido.
A escola inteira tinha criado uma ficção sobre nós.
Mas a sensação que me dominava era muito mais real e assustadora:
Theo sabia de algo.
Algo fundamental.
Algo que mudaria as regras do jogo.
E o pior — ou talvez o mais perigoso — é que eu já queria saber qual era essa verdade.
Mesmo sabendo que ela poderia me destruir.