Alícia
O telefone tocou já era noite.
Peguei o celular na segunda chamada e reconheci a voz dele na hora.
— A gente precisa conversar. — falou sério. — Agora. Vem pra cá.
Fiquei muda por alguns segundos, tentando entender se era zoeira. O tom dele tava diferente, pesado.
— Aconteceu alguma coisa? — perguntei, sentindo o coração disparar.
— Só vem, Alícia. — e desligou.
Fiquei parada olhando pra tela apagando, com o coração batendo rápido.
Desde o dia que eu apanhei igual cachorro de rua do meu pai eu não vi mais ele.
E agora ele liga assim, a noite e do nada.
Pelo jeito dele eu já percebi que tinha alguma coisa no ar e comecei a me arrumar.
Vesti uma calça, uma blusa ciganinha, passei um perfume, maquiagem e soltei o cabelo.
Peguei a chave, entrei no carro e fui. Mesmo com o pé machucado e de botinha, dei um jeito.
No caminho, o silêncio do carro parecia me sufocar. A cabeça girava, um turbilhão de pensamentos tentando desvendar o motivo daquela ligação.
Quando parei na frente do prédio dele, fiquei alguns minutos dentro do carro, retocando o batom.
Depois respirei fundo, desliguei o carro e subi.
Peguei a chave reserva que ele tinha me dado e abri a porta.
— Humberto? — chamei, baixinho, espiando pela sala. — Tô aqui.
Nada de respostas.
A sala tava em silêncio, a casa toda na verdade.
Dei alguns passos adentrando no corredor e do nada senti um braço me puxando com força por trás.
Levei um susto e dei um grito alto.
A mão dele agarrou meu pescoço e me encostou na parede.
— Humberto! — gritei, tentando tirar as mãos dele. — Me solta!
O rosto dele veio perto do meu, o olhar cheio de raiva, ódio e o ar quente batia no meu rosto.
— Então é isso, né? — falou firme, entre os dentes. — Tu é filha de traficante.
Meu corpo congelou na hora e senti as mãos suando, o ar sumindo.
Como ele descobriu isso?
Será que a desgraçada da Nathalia me caguetou pra ele?
— O quê...? — gaguejei. — do que você tá falando, lindo?
— Do teu teatrinho. — ele respondeu, apertando mais o meu pescoço. — Tua família toda é do crime e tu teve coragem de se envolver comigo fingindo ser outra pessoa.
— Não é isso, me escuta, por favor... eu posso explicar— falei chorando, tentando alcançar o braço dele.
— Explicar o quê, Alícia? — ele levantou a arma, mirando pra mim. — Que tu é uma filha da p**a que mentiu pra mim desde o primeiro dia que nós fudeu? Que esse tempo todo tu tava jogando pros dois lados?
As lágrimas começaram a cair, quentes, escorrendo até o queixo.
— Eu não menti! — gritei, desesperada pelo medo de perder ele. — Eu te amo, Humberto! Eu te amo de verdade, p***a!
Ele deu uma risada, debochado e manteve o olhar frio.
— Tu não ama ninguém. Tu é igual a tua família. Podre e nojenta.
— Não fala assim... — balancei a cabeça, chorando mais. — Eu te amo, acredita em mim. Eu odeio eles, odeio tudo aquilo!
— Acabou, Alícia. — disse curto e grosso, sem emoção nenhuma. — Eu não quero mais nada contigo.
Baixou a arma e soltou o meu pescoço.
Levei a mão à garganta, respirando com dificuldade e tossindo muito.
— E sabe o que mais? — ele falou, dando um passo pra trás. — Eu vou te entregar pra polícia.
— Não... não — falei alto, desesperada. — Não faz isso comigo, pelo amor de Deus. Eu nunca joguei dos dois lados, nunca. Sempre fui fiel a você.
— Então prova. — disse, me encarando. — Prova que tu tá do meu lado.
— Eu provo! — falei sem vacilar. — Faço o que você quiser.
— Tu sabe que teu irmão tá preso, né? — perguntou.
Assenti, confirmando.
— Sei... mas não falo mais com ele. — minha voz saiu trêmula. — Ele me entregou pro meu pai, disse que eu tava ficando com um cara que era polícia, e então meu pai me espancou.
Ele deu uma gargalhada curta, c***l.
— Mentira. Tu é boa nisso, né?
— Não é mentira! — gritei. — Se tu quiser, eu te provo!
Corri até a bolsa e peguei o celular tremendo.
Os dedos m*l obedeciam.
Abri a galeria, selecionei o vídeo e entreguei pra ele com a mão trêmula.
No vídeo, dava pra ver meu pai me batendo, me empurrando na parede.
Eu gritava, ele me xingava.
A cena era rápida, mas dizia tudo.
O olhar do Humberto mudou por um segundo.
Ele piscou devagar, como se tentasse entender o que via.
— Quando foi isso? — perguntou.
— Há uns dias. — respondi, a voz embargada. — Por isso sumi, fiquei machucada... quase sem andar. — puxei a calça e mostrei a botinha. — Tô usando isso até hoje.
Ele respirou fundo, o maxilar tenso, e ficou me olhando calado.
— Tá bom. — disse, devolvendo o meu celular. — Então prova que tá comigo.
— Como? — perguntei, engolindo em seco.
— Tu vai depor contra teu irmão. — falou sério. — Vai dizer que ele tem envolvimento com o tráfico e vai confirmar que ele levou uma menina pro morro sequestrada.
Assenti sem pensar muito.
Era minha chance de ferrar o Iago e eu ia aproveitar. Afinal por mim, ele podia apodrecer atrás das grades que eu não estaria nem aí.
Ele pegou o telefone.
— Doutor, quem está falando é o Subtenente Humberto. — falou firme. — Consegui uma testemunha nova. A irmã do traficante preso hoje lá no morro onde o Terror domina. Ela vai confirmar tudo o que eu e o Eduardo já tínhamos passado pro senhor. — fez uma pausa. — A Maria Clara tá sobre efeito de remédio e não sabe nem o que tá falando. — ficou um tempo calado e sorriu. — Que bom que o senhor percebeu que ela não estava bem. Amanhã cedo levo a testemunha aí e ela depõe.
— Obrigado — ele encerrou a ligação e desligou.
Fiquei parada, olhando pra ele, o coração quase saindo do peito.
— Eu tô com medo... — falei baixinho. — Se meu pai descobrir que eu entreguei o Iago, ele me mata.
— O depoimento vai ser sigiloso. — respondeu, guardando o celular no bolso. — Tu não vai ser identificada. — ele falou e já foi se virando de costas pra mim.
— Vamos ficar juntos então? Já que a gente se resolveu?
— Não. Essa noite tu dorme aí no sofá e amanhã nos vamos na delegacia. Outra coisa nem tenta fugir.
Ele trancou a porta da sala e virou as costas indo pro quarto.
A madeira estalou quando ele fechou a porta.
Sentei no sofá e passei a mão no rosto desacreditada que eu consegui me safar dessa.
Me levanto e começo a dançar comemorando.
Iago
Dia de visita.
Bagulho lotado.
Barulho pra c*****o, n**o rindo, falando alto, mulher chorando, pivete correndo no pátio.
É o único dia que essa p***a de cadeia parece menos pior.
Porque todos os outros dias são insuportáveis.
Tem horas que eu nem acredito que já tem sessenta dias que eu tô aqui dentro, mano.
Sessenta noites dormindo num colchão que fede, ouvindo n**o roncar, gritar, surtar.
Sessenta dias comendo lavagem e tentando segurar a mente pra não enlouquecer.
Fico pensando nesses bagulho até que vejo minha mãe vindo lá longe, segurando uma sacola cheia de marmita. O peito até doeu vendo ela andando entre um monte de gente. Com o olhar varrendo o pátio até me achar.
Tava magra, mas firme.
Roupa simples, padrão de visita, porque aqui não entra de qualquer jeito.
Mesmo assim, chamava atenção pra c*****o.
Nem precisava forçar, minha coroa sempre teve esse bagulho de presença.
— Meu Deus... — ela veio direto, largando a sacola e me abraçando. — Tava morrendo de saudade.
— Também tava. — apertei ela forte.
Nem sei explicar o que senti.
O cheiro dela me trouxe a lembrança de tudo de bom que existi fora daqui.
Ela me soltou e passou a mão no meu rosto.
— Tá magro, Iago.
— A comida aqui é r**m pra c*****o. — dei um sorrisinho de lado. — Só como direito quando tu traz os bagulho.
Ela riu, mas tava quase chorando.
Sentou e abriu as marmitas na mesa.
O cheiro bateu forte, cheiroso pra c*****o.
— E o que tu tem feito aqui dentro? — perguntou.
— Trampo. — falei. — Limpo corredor, ajudo no rango... Um parceiro me deu uma Bíblia, fico lendo.
— Tu lendo bíblia, Iago? — ela riu surpresa.
— É... pra não pirar. — dei de ombros.
Ela ficou olhando pra mim um tempo.
Sorrindo.
— Notícias do Flávio? — perguntei, comendo uma coxa de frango.
— Ele tá tentando, mas aquele promotor tá marcando de cima. Não entendo porque esse desgraçado não larga da nossa família. — balanço a cabeça e ela continua — Parece uma coisa... quando tava tudo certo pra tu sair aparece alguém fazendo uma denúncia onde liga você ao tráfico do morro.
Fiquei encarando ela e lambi um dedo.
A comida tava boa demais.
— Tá bom pra c*****o. — soltei, continuando a comer.
— A Maria Clara tá ajudando a gente.
Meu coração deu uma batida mais forte só de ouvir o nome dela.
— Não quero disso. — falei baixo. — Muda o assunto.
Ela me olhou um tempo como se estivesse me lendo.
— A menina daquele dia... era ela, né?
Fiquei calado e ela parece ter entendido já que não falou mais sobre ela.
Depois disso, ficamos trocando ideia sobre o morro, a Any que tá de volta ao morro e a Mel que tá pra chegar.
Foi tão bom que eu até esqueci por uns minutos que tava aqui nesse inferno.
Mas quando o agente gritou que o tempo tinha acabado, ela começou a chorar.
A pior parte da visita era a hora da despedida.
Levantei, beijei a testa dela e olhei nos seus olhos.
— Vai dar certo. Eu vou sair daqui, visão?
Ela botou a mão no meu rosto.
— Eu tenho certeza disso — beijo a sua testa e ela sorri — Confia em Deus, meu filho.
Abracei ela de novo, forte.
Nós despedimos e fiquei olhando até ela sumir no portão. O pátio foi esvaziando devagar e aos poucos o barulho foi sumindo.
Tava indo pro corredor da galeria quando ouvi.
— Aí, tu é o filho do Terror?
Parei.
E fui virando devagar e vendo a imagem de um maluco grandão e careca na minha frente.
— Sou. Por quê?
Ele riu de lado e na hora ganhei a intenção dele.
— Mandaram lembrança pra tu.
Quando olhei aí redor o maluco já tava em cima de mim.
Só senti o ferro entrando e me atravessando.
Meu corpo amoleceu na hora.
— AAAAAH... Filho da p**a! — gritei, tentando segurar na mão do desgraçado.
E senti quando ele girou o ferro dentro de mim e puxou.
Rindo.
O sangue começou a escorrer entre os meus dedos e cambaleei, tonto, tentando segurar na grade.
Mas as minhas mãos e pernas falharam.
Cai de joelho, no chão frio.
O barulho ao redor virou um zunido longe, distante. E mesmo ouvindo vozes gritando, guarda berrando e n**o correndo.
Tudo ficou muito embolado.
A vista foi ficando escura, o corpo pesando.
E a última coisa que me veio na mente foi o rosto dela.
Minha mãe.
E a voz dela:
“Me pedindo pra confia em Deus.”
Então eu confiei e apaguei.