Manuela
Entro na boca no desespero assim que o garoto gritou lá em casa dizendo que o Bernardo tava me chamando. Já saí de chinelo mesmo, com o coração batendo mais rápido que sirene de ambulância. Ele odeia que eu desça pra cá, então se mandou me buscar... é porque o negócio desandou bonito.
No caminho ate aqui a cena era de terror. O clima no morro tá terrível. Muita gente presa e luto em cada esquina.
— Oi… — falo empurrando a porta. RD e Wallace tão plantados ali, com uma cara péssima.
O Bernardo tá sentado atrás da mesa, tronco meio jogado pra trás, os olhos vermelhos e um olhar que poucas vezes eu vi.
— Que foi que aconteceu pra tu mandar o Micael lá em casa? — pergunto chegando perto, o corpo bambo só de olhar a cara deles.
Ele passa a mão no rosto, puxa o ar fundo e me encara. E eu já sei.
Tem merda grande vindo.
Olho pros outros, um por um, e ninguém fala nada. Só silêncio e cara de velório.
— Cadê o Iago? — pergunto voltando a olhar o Bernardo.
Ninguém responde.
— Tô perguntando, c*****o! Cadê o meu filho?!
O Bernardo abaixa a cabeça e o RD desvia o olhar, nervoso.
— O Iago foi preso, Manu. — diz, serio.
Na hora eu sinto meu corpo todo gelar, como se eu tivesse acabado de entrar em um congelador.
Seguro na beira da mesa pra não cair pois a minha visão escurece na hora.
— O quê? — minha voz sai falhando. — Meu filho?
A mão vai pro peito, como se pudesse reanimar meu coração que parece que vai parar a qualquer momento.
— Meu Deus... meu filho... — repito, sem acreditar que isso tá acontecendo novamente.
Bernardo levanta rápido, me segura pela cintura antes que eu desabe e a porta se fecha. Os meninos nos deixam sozinhos e eu me agarro no Bernardo, chorando igual criança.
— O Iago... o Iago... — soluço. — Eu pedi tanto pra Deus, Bernardo... pedi tanto pra Ele não deixar isso acontecer...
Ele me segura firme, a mão grande nas minhas costas, o corpo rígido. Ele não chora, mas eu sinto que ele tá igual a mim, quebrado por dentro.
— Me diz o que aconteceu. — peço entre soluços, tentando secar as lágrimas com as costas das mãos. — Me fala como foi.
Ele respira fundo e me solta devagar, tipo quem precisa de coragem pra falar.
— Ele tava num beco. A polícia entrou. O Renan tava com ele.
— O Renan? E cadê o Renan? Foi preso também?
Bernardo desvia o olhar e fica quieto.
— Tô perguntando, Bernardo! Cadê o Renan? — falo, a voz quase gritando, botando a mão no braço dele.
Ele aperta o maxilar, respira, demora um pouco pra responder. Mas fala.
— O Renan não tá preso, Manu.
Meu coração se aperta e então eu faço a pergunta que nem precisava ser feita. Tava escrito na cara dele.
— Então cadê ele?
Ele abaixa a cabeça.
— O Renan foi baleado e morreu.
Na hora, me jogo na cadeira, as mãos tapando o rosto, o choro vindo com tudo.
— Não... não... meu Deus do céu, não...
Bernardo se abaixa na minha frente, me puxa pro peito dele, e eu desabo de vez.
— O Renan não, Bernardo... o Iago preso... e o Renan morto... — falo entre soluços, o corpo tremendo inteiro.
Ele me segura forte, a mão na minha cabeça, calado.
A gente só fica ali, grudado, como se um conseguisse segurar o outro em pé.
— Eu não vou aguentar, Bernardo... — falo com a voz quebrada. — Eu não vou aguentar ver meu filho preso, passando por tudo de novo...
Ele encosta o rosto no meu cabelo, me segura pelas bochechas e me olha sério, firme.
— Vai aguentar, Manu. — diz baixo. — Nós vai tirar o Iago de lá. Confia, c*****o.
Nem sei se ele acreditava ou só falou pra tentar me acalmar, mas naquele momento era o que eu precisava ouvir.
Ficamos ali, só o som do meu choro e o barulho dele respirando pesado.
Eu agarrada na camisa dele com força, ele me segurando igual âncora.
Dois pais fodidos, chorando pelo filho preso e sentindo a história se repetir na nossa cara.
(...)
Entro na delegacia tremendo da cabeça aos pés. Nem sei como consegui chegar até aqui, juro pra tu. Minhas pernas parecem de borracha, e minha cabeça gira igual quando a gente levanta rápido demais e o mundo roda.
Um sentimento r**m, um aperto… parece que tem uma mão me espremendo por dentro.
Me apoio no balcão, tentando disfarçar o desespero, e a policial me olha assustada.
— A senhora tá bem? — pergunta, olhando pra mim tipo quem já sabe que eu tô longe disso.
— Eu... quero saber do meu filho. — falo com a voz tremida. — O nome dele é Iago. Ele foi preso agora há pouco.
Ela digita lá, o barulho das teclas me irritando, cada tec tec parece um martelo batendo no meu peito.
— Iago... Iago o quê?
— Iago Ferreira da Silva. — solto rápido, antes que a voz me falhe de vez.
Ela continua digitando, demora. E cada segundo parece uma eternidade me esfolando viva.
— Ele tá sendo ouvido, senhora. — diz por fim. — Não pode ver ele agora.
— E eu posso falar com ele? — pergunto me inclinando no balcão. — Eu sou a mãe dele, moça.
— Eu entendo, mas tem que aguardar. — responde naquele tom ensaiado de quem tenta ser educada mas não entende a dor dos outros. — O advogado tá com ele lá dentro.
Respiro fundo, o ar entra mas não quer sair. Seguro firme na borda do balcão, o coração disparado, a boca seca igual deserto.
— Eu quero falar com o advogado. — digo, já no limite.
— Posso chamar, mas tem que esperar ele sair.
Assinto e fico ali esperando, perdida no meio do barulho de telefone e de gente andando pra lá e pra cá.
Nem sei quanto tempo passa. Até que vejo o Dr. Flávio vindo pelo corredor. Terno escuro, gravata clara, cara de cansado.
Corro até ele.
— Flávio! — falo ofegante, com a voz embargada. — Me diz, pelo amor de Deus, o que tá acontecendo com o meu filho. Eu quero ver o Iago!
Ele suspira, ajeita a pasta e me encara com um olhar de quem traz notícia r**m.
— Manuela… — começa. — O Iago tá sendo acusado de sequestro, cárcere privado, tortura e... estupro. — vai soltando devagar, como se cada palavra fosse uma pedrada. — E ainda tão te tentando ligar ele ao tráfico e à chefia do morro.
Sinto meu corpo amolecer na hora. Se ele não me segura, eu ia pro chão.
— Isso é mentira. — falo quase sem voz. — Meu filho pode ter feito um monte de merda, mas isso... isso não. Ele nunca faria um troço desses de estupro.
— Ele n**a também n**a isso. — o advogado continua. — Mas a promotoria tá vindo com força. A menina que fez a denuncia é filha de um promotor.
Nego balançando a cabeça, as lágrimas descendo.
— Meu Deus... — murmuro.
— Eu vou tentar tirar ele mais eu aviso que não vai ser fácil. — fala serio. — Ele vai fazer o corpo de delito e amanhã cedo é audiência de custódia.
— Eu não posso nem ver ele? — pergunto num fio de voz.
— Vou tentar falar com o delegado. — promete. — Mas é difícil liberarem visita agora.
— Por favor... — imploro, unindo as mãos em súplica. — Eu só quero ver meu filho. Um minuto, só um minuto.
Ele faz um sinal com a cabeça e sai.
Fico ali sentada, sem chão, sem força. Uma mulher passa e me oferece um copo d’água. Seguro, agradeço com um meio sorriso, mas não bebo. Nada desce.
O tempo passa, o relógio na parede me tortura. Até que o Flávio volta, andando rápido, o paletó balançando, e a cara dele já me entrega tudo.
— Consegui. — fala. — Mas é rápido. Dois minutos, no máximo.
Me levanto num pulo, as pernas ainda bambas e o coração martelando.
— Obrigada... obrigada. — balbucio.
— Vem comigo. — ele diz, me guiando pelo corredor que parece não ter fim.
Quando a porta abre, o meu mundo para.
O Iago tá ali, em pé, algemado, com o rosto todo machucado e a roupa suja de sangue. Mesmo arrebentado, ainda tá com a cabeça erguida — igualzinho o pai. Marrento, orgulhoso, mas noto o seu olhar triste.
Quando me vê, ele dá um passo pra frente, mas os guardas seguram ele. Eu não penso duas vezes: corro até ele.
— Iago! — grito, chorando.
Um dos policiais me segura pelos ombros antes que eu me aproxime dele.
— Senhora, não pode encostar no preso.
— Tira a mão dela, p***a! Tá maluco, seu merda? — o Iago grita, se debatendo. — Não encosta nela, seu Zé b****a do c*****o!
O clima esquenta e o Flávio entra no meio, tentando apaziguar.
— O delegado autorizou, é só dois minutos. — fala se dirigindo aos dois policiais.
Os caras se afastam na má vontade, e eu chego mais perto dele.
— Iago... — murmuro, as lágrimas já molhando meu rosto. — Não era pra tu tá aqui, meu filho.
Ele encosta o rosto no meu ombro, os ombros tensos, respirando fundo.
— O Renan morreu. — fala baixo, quase num sussurro.
Sinto o chão sumir de novo por ver a tristeza dele.
— Eu sei, meu amor... — respondo alisando a nuca dele e ele levanta o rosto me encarando — Ele fez isso pra te salvar.
— Ele vacilou feio, não tinha que ter feito esse bagulho. — falou, o olhar cheio de raiva. — Era pra ser eu estirado naquele c*****o lá, não ele.
— Ele largou a vida dele pra tu tá respirando agora, meu filho. Isso não é vacilo, isso é lealdade pura, é amor de verdade. — continuei, encarando ele. — E não é pra tu se afundar nessa culpa,não. É pra tu ser grato. Grato por ter tido alguém que te amou tanto a ponto de meter o peito na bala pra te salvar.
Ele desvia o olhar, os olhos cheios d’água, mas não deixa cair.
— Ele fez o que eu e o seu pai faria por você. Isso é amor.
Ele passa a língua pelos dentes e solta um riso sem humor.
— Amor só fode a gente, mãe. Olha onde eu tô.
— Fode mesmo, mas é quando a gente não sabe lidar com esse sentimento direito. — rebati na hora. — Tu passou a vida inteira se escondendo atrás dessa marra, achando que legal é bancar o durão e fingir que não sente nada por ninguém. Mas legal de verdade, meu filho, é encarar o que a gente sente de peito aberto. Sem medo de se permitir.. de ser feliz de verdade.
Ele respira fundo, o olhar preso no meu.
— Aproveita esse tempo, Iago… — falei baixinho. — Não é pra tu se martelar mais do que já fez a vida toda. É pra pensar, meu filho. Pra se enxergar de verdade. Pra descobrir quem tu é longe daquele morro, sem carregar nas costas o peso de ser filho do Terror, sem essa marra de durão que tu usa pra esconder o que sente. — balancei a cabeça devagar e ele abaixou a cabeça — Tu vive se punindo por coisa que nem é culpa tua. O Renan morreu pra te dar um recomeço, e se tu jogar isso no lixo, vai ser o mesmo que dizer que ele morreu em vão.
Ele balança a cabeça e seus olhos dizem tudo.
Os policiais se aproximam e o Flávio dá o toque.
— Já deu o tempo, Manuela.
Seguro o rosto do Iago com as duas mãos, chorando sem vergonha nenhuma. Beijo a sua testa, as bochechas, tudo que eu consigo tocar.
— Eu te amo, meu filho. — falo soluçando. — E eu vou te tirar daqui, custe o que custar.
Ele me olha, os olhos marejados, mas a voz firme:
— Também te amo, valeu.
Eles puxam ele, e eu fico parada, vendo meu filho sumir por aquela porta, algemado, levando junto com ele o meu coração.
Abraço o próprio corpo, o peito doendo num jeito que não dá pra explicar.
Não existe diferença... ele que tá preso.
Mas a minha dor é igualzinha a vinte anos atrás.