Capítulo 33

2475 Words
Maria Clara Quando abri os olhos, a cama estava vazia. O cheiro dele ainda preso no travesseiro, mas o Iago não estava no quarto. Por segundos fiquei mirando o teto, tentando entender se a noite passada tinha sido real ou algum delírio meu. Aquilo no quarto vermelho tinha sido um erro. Eu não devia ter aceitado entrar ali, não depois de tudo que eu tinha visto. Chamei o nome dele alto, mas a casa respondeu em silêncio. Apertei o lençol contra o corpo e caminhei pelo quarto vazio. Passei pela sala, pela cozinha, até na área da piscina e nada. Era a chance de sair daqui. Corri de volta pro quarto, vesti o vestido, penteei o cabelo e calcei as sandálias. Lavei o rosto na pia, escovei os dentes e fiquei me encarando no espelho. Quase não me reconheci. Olheiras enormes, boca inchada, o rosto todo marcado. Parecia que eu tinha levado uma surra. Sem contar o pescoço. Saí pelo portão e fui andando pelas ruas do morro que pareciam mais um labirinto infinito. Quanto mais eu andava, mais me sentia perdida. Parei em frente a um rapaz que lavava a moto na esquina e perguntei com um sorriso no rosto. — Oi, tudo bem? Sabe como eu posso fazer pra sair daqui? Ele me olhou de cima a baixo, meio desconfiado. — Descer, né? — apontou a rua íngreme. — Vai reto até o bar do Seu Naldo, depois pega à direita. Lá embaixo tu pergunta de novo. — Tá… obrigada. — mantive o sorriso. Continuei andando. A cada duvida, a mesma pergunta. Os olhares eram curiosos, às vezes maliciosos, mas ninguém mexeu comigo. Passei pelo bar e vi o letreiro em vermelho forte, “Bar do Naldo”. Virei à direita, como tinham me indicado. A rua se abriu, mais gente passando, vozes e barulho de carro. Fui pedindo informações até que enfim, consegui sair do morro. […] O Uber parou em frente a minha casa. Vim o caminho inteiro ensaiando desculpas na cabeça, mas nenhuma fazia sentido. Como eu ia explicar todas essas marcas? Não tinha como. Eu não tinha explicação. Quando empurrei a porta, gelei. Todos estavam reunidos na sala de casa. Meu pai. Minha mãe. Tio Ricardo. Minha tia. A Luana, chorando. E o Humberto, fardado, de braços cruzados. A conversa que rolava parou no instante que me viram. — Meu Deus do céu! — minha mãe falou alto e se levantou do sofá, com a mão na boca. — Minha filha… o que foi que aconteceu com você? — veio correndo e me abraçou forte. — Tá tudo bem mãe.. — Clara! — a voz da Luana veio aflita, rasgada pelo choro que escorria no rosto dela sem parar. — Eu falei pra eles, eu não sabia o que fazer, eu achei que aquele cara tinha te matado! — soluçava sem conseguir se controlar. — Me perdoa por ter te feito ir lá comigo… tudo isso foi culpa minha. Meu coração se encolheu vendo ela assim. Luana, parecia uma criança assustada, se culpando pelo que eu mesma tinha escolhido. — Não foi tua culpa… tá tudo bem… — murmurei, tentando acalmar ela. — Me fala, filha… o que fizeram contigo! — minha mãe me virava de um lado pro outro, os olhos arregalados, desesperados. — Você tá toda machucada… O olhar dela me feria mais que as próprias marcas. Cada vez que ela passava a mão em mim, parecia que cutucava a culpa que eu estava sentindo. Eles achavam que eu tinha sido sequestrada e torturada pelos traficantes… e eu preferi deixar que continuassem acreditando nisso. Porque, no começo, eu realmente fui levada à força. Mas depois… fui eu que escolhi ficar lá a noite toda. Baixei o olhar, os dedos se apertando um no outro, porque encarar eles era como sentir cada lembrança da noite passada esfregar no meu rosto o sofrimento que causei aqui dentro de casa. O peso da preocupação deles doía no meu peito — eu nunca tinha feito nada que pudesse arrancar esse tipo de sentimento dos meus pais. Mas como eu ia contar a verdade? Como dizer que não estava lá contra a minha vontade? Que eu tinha acabado de descer do morro após passar a noite com um traficante. Seria como enfiar uma faca no peito do meu pai com as minhas próprias mãos. Então eu me calei, segurando as palavras antes que saíssem. — Para, mãe… — tentei segurar a mão dela, sem força nenhuma, a voz baixa, implorando pra ela não olhar tanto assim pra mim. Eu não aguentava o reflexo de tanta dor nos olhos dela. As marcas pelo meu corpo eram horríveis. Vergões espalhados, mordidas nas pernas, o pescoço todo manchado. O cabelo solto não escondia nada… eu estava toda marcada, cada pedaço do meu corpo contando uma história que eu não tinha coragem de falar. Tio Ricardo deu um passo à frente. — Foram os traficantes que fizeram isso contigo, Clara? Minha boca secou de um jeito estranho… eu até tentei, mas não saiu palavra nenhuma. Minha mãe chorava agarrada em mim. A Luana me olhava assustada. O tio me encarava. E meu pai… meu pai só me olhava de uma forma estranha. Humberto do mesmo jeito. Confirmei com um aceno fraco. Meu pai se levantou devagar do sofá, os olhos cravados nos meus, tão firmes que me atravessaram sem precisar de nenhuma palavra. No semblante dele estava estampada uma decepção muda que doía mais do que um grito. Apertei os dedos no vestido, encolhendo os ombros sem perceber. Será que ele sabia? Será que ele adivinhava que eu estava com o Iago? Esperei que ele dissesse alguma coisa, qualquer coisa. Mas ele só respirou fundo, virou as costas e saiu. Senti o chão sumir debaixo dos meus pés. Meus joelhos quase cederam e a vontade era correr atrás dele, segurar o seu braço, pedir perdão… mas fiquei ali, quieta, a boca tremendo, olhando para ele se afastando. O Humberto foi atrás dele e minha mãe me puxou devagar para o sofá. Os braços dela, quentes e molhados de choro, se fecharam em volta de mim. Eu deixei o corpo cair no estofado, mole, sem força nenhuma. O rosto dela colado no meu, soluçando, pedindo respostas que eu não tinha e nem conseguiria dar agora. A única coisa que eu conseguia pensar era no olhar do meu pai, parado em mim antes de sair. — Onde te levaram, minha filha? Quem fez isso contigo? — Eu… não lembro direito… foi confuso e estava de noite. A Luana me olhou, mas não disse nada. O policial, que eu nem tinha reparado direito até então, começou a soltar uma sequência de perguntas: como eram, onde me levaram, se pediram dinheiro. Eu respondia o que vinha na cabeça, sem pensar muito. — Não sei onde fica o lugar e não lembro do rosto de ninguém. — repetia, de novo e de novo, me agarrando a essa versão. A cada resposta, meu coração batia mais forte, como se pudesse denunciar o que minha boca escondia. Eu nunca entregaria o Iago. Nunca. Quando enfim pararam as perguntas, olhei pra minha mãe. — Posso subir? — pedi baixinho. —Quero um banho, descansar. Ela ia insistir, mas tio Ricardo assentiu. Então me levantei e subi, degrau por degrau. Assim que a porta do meu quarto bateu, o barulho ecoou dentro de mim. Encostei as costas na parede fria, escorregando devagar até o chão, e deixei o corpo desabar. As mãos foram parar no rosto, abafando o choro que veio. O ar parecia preso dentro do peito, cada suspiro falhado arranhando a garganta. Enquanto a minha família estava aqui desesperados por mim… eu estava transando com o Iago. Nem ligando pra nada. Vergonha. Raiva de mim mesma. Passei os dedos no canto dos olhos, mas as lágrimas não paravam. Apoiei a testa nos joelhos dobrados, tentando me encolher até desaparecer. “Fui inconsequente… egoísta… que filha eu virei?” A mentira doia mais do que as marcas que ainda queimavam na minha pele. Um peso silencioso, latejando dentro do peito, maior que qualquer hematoma. A maçaneta girou e eu tentei limpar o rosto rápido. Era o Humberto. Ele entrou calado, fechou a porta atrás de si e se agachou na minha frente. — Vim ver como você está. — disse firme. Respirei fundo. — Foi ele que fez isso contigo? — perguntou direto. Fiquei muda. Era como se a vergonha tivesse grudado na minha pele inteira. Não consegui levantar a cabeça, deixei os olhos colados no chão, seguindo um risco no piso só pra não encarar ele. Meus dedos se enroscaram um no outro, sem saber onde parar. — Tu sabe com quem tu tá mexendo, Clara? — ele não parava. — Esse cara é louco. Além de traficante, ele pega as meninas, faz isso que fez contigo. Tu podia ter morrido lá naquela p***a. Cada palavra dele vinha como um tapa na minha cara. Me deu vontade de desaparecer. Eu só ficava pensando no que eu tinha feito e no tamanho do abismo que eu tinha aberto. Levantei o rosto e o encarei nos olhos. — Você sabia que ele era traficante? — Sabia. — falou, sem rodeios. — Eu sabia desde o começo. Meu corpo travou e limpei o canto dos olhos. — E por que não me disse nada? — minha voz saiu baixa, mas foi tudo o que consegui. Ele baixou a cabeça, olhando para um ponto qualquer no chão, os dedos na minha coxa. — Tu não ia acreditar… igual não acreditou quando eu te falei que ele não prestava lá na clínica naquele dia. Olhei para mão dele na minha perna e me calei. Ele tinha razão. Eu não tinha acreditado. De repente, senti os dedos dele no meu queixo, quentes, firmes, me forçando a levantar o rosto devagar até encontrar os seus olhos verdes. — O meu pai também sabe? — saiu num fio de voz, que eu ainda tinha. — Teu pai soube hoje. — respondeu sério, sem desviar o olhar. — Eu precisava contar. Não podia esconder uma informação dessa dele. Meu coração bateu mais rápido. Como eu ia encarar meu pai depois disso. — Agora entendi o porquê daquele olhar… — sussurrei, sentindo a garganta fechar. — Ele não vai me perdoar nunca mais. Cresci vendo meu pai ser ameaçado por essas pessoas, cansei de ver ele enterrando amigos por causa da criminalidade que sempre condenou… e eu fui lá e me deitei com um deles. — Calma! — Humberto tentou me acalmar. — Conversa com ele, fala a verdade. Diz que você se encantou, que quis viver uma aventura, e ele vai entender. Todo mundo aqui já teve a sua idade. Fechei os olhos com força, as lágrimas escorrendo sem freio, molhando minha boca. Foi então que ele soltou a verdade, me encarando nos olhos. — O Iago é filho de um dos chefes de uma das maiores facções aqui do Rio. — as palavras de Humberto caíram como pedras na minha cabeça. — O pai dele passou vinte anos preso, e quem ajudou a botar ele lá foi o teu pai. Enquanto ele estava na cadeia o filho assumiu a favela. O Iago é o chefe do tráfico de uma das maiores favelas aqui do Rio, Clara. Esse homem não é bonzinho. Ele não tem coração, ele mata as pessoas, tortura, destrói famílias, maltrata os moradores. Um arrepio frio desceu pela minha espinha, fazendo meus dedos formigarem. — O Iago? — Sim, ele. — confirmou sem hesitar. Continuou, firme: — Eu não acredito que aquele assalto tenha sido só coincidência, não. Pra mim ele planejou aquilo junto com aquele menor de idade porque queria se aproximar de você. Minha cabeça rodou. — Então tudo foi mentira? — o som saiu fraco da minha garganta. — Sim. — não piscou nem desviou os olhos. As lágrimas voltaram com força, quentes, e eu comecei a bater as mãos no próprio corpo, como se quisesse me castigar. O coração disparado, os pensamentos atropelando uns aos outros. Eu sentia raiva, nojo, ódio de mim mesma. Meu Deus… como eu pude ser tão burra? Como eu pude acreditar em tudo aquilo? Foi fácil demais pra ele me usar. Humberto segurou os meus pulsos e a sua voz entrava no meio peito como um tiro seco. — Tudo que ele te fala é mentira. Homem assim nunca fica só com uma… e no final quase todas acabam m*l. Umas apanham, outras somem, outras acabam presas. Eu olhei pra ele com a visão turva devido as lágrimas, o gosto salgado das lágrimas na boca. Era como se cada palavra dele tivesse aberto um buraco gigante dentro de mim. – Se afasta desse cara ou tu vai jogar a tua vida no lixo e acabar com a reputação do teu pai. – Eu amo meu pai e nunca vou fazer nada que prejudique ele – saiu no meio do meu choro. – E ele também te ama. Agora ele tá se sentindo m*l por ter permitido que esse bandido entrasse aqui dentro da casa dele e se aproximasse de você. Ta se sentindo culpado, achando que falhou. Mas logo vocês conversam. Concordei com um aceno quase imperceptível e senti quando Humberto me puxou para dentro do abraço dele. Me deixei ir, sem resistência, apoiando a testa e depois o rosto no ombro dele. Fechei os olhos enquanto eu chorava baixinho, tentando controlar o ar, mas quando a mão dele subiu pelo meu cabelo, deslizando com cuidado, aquilo me desmontou. Um soluço curto escapou e sacudiu meu corpo inteiro. Ficamos assim, grudados, por um tempo que eu não soube medir até o toque do celular dele interromper. Ele olhou rápido a tela, guardou de volta no bolso sem dizer nada. – Preciso ir. – falou, quase num suspiro. Eu só assenti, fraca, com os dedos tremendo nas costas dele. Não consegui formar palavra nenhuma. Ele segurou meu rosto com as duas mãos, o polegar morno tocando de leve minha pele molhada de lágrimas, e encostou a boca na minha testa num beijo leve. – Se cuida. Qualquer coisa me chama. – disse, olhando dentro dos meus olhos antes de se afastar. A porta fechou atrás dele e eu puxei o ar fundo. Meu Deus… eu não posso destruir meu pai desse jeito, não posso arrastar ele pra dentro da minha confusão. Eles já sofreram tanto comigo, com tudo que eu passei, com a minha doença… não tenho o direito de causar outro sofrimento a eles. Puxei o ar pelo nariz, tremendo. Eu vou enterrar esse sentimento. Enterrar tudo o que sinto pelo Iago, cavar bem fundo dentro de mim e fechar com cimento, fingir que nunca aconteceu nada entre nós. Vou voltar a viver como se ele nunca tivesse existido.
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