Capítulo 56

1441 Words
Maria Clara Um barulho na porta me arrancou do sono. Batidas. Fortes, apressadas. Quase violentas, que fizeram meu coração pular na garganta antes mesmo de eu abrir os olhos. Meu Deus. Demorei uns segundos pra despertar. O quarto estava um breu — muito escuro. A minha cabeça parecia pesar uns cem quilos, os olhos colados, e o corpo todo... sei lá... bambo, mole. Tateei na escuridão procurando o celular em cima da cama, até que achei — e a tela acendeu feito um farol na minha cara: 4:13 da manhã. Só pode ser brincadeira. — O que foi agora... — resmunguei baixinho, a voz saindo grossa, arrastada de sono. Mas as batidas não paravam. Uma pancada atrás da outra. Insistente. Nervosa. Impossível ignorar. Me arrastei pra fora da cama, tropeçando no tapete e quase indo de cara no chão. Esfreguei os olhos com força, tentando espantar a névoa do sono, e o frio do chão gelado subindo pelas pernas. Fui seguindo o som, meio cega ainda. — Calma, já tô indo... — bocejei, a boca seca, enquanto girava a chave na fechadura. Abri só uma fresta, desconfiada — e dei de cara com o Juninho. Filho da dona Sílvia, dona da casa. Sabia que ele era do movimento, então ver ele parado na minha porta às quatro da manhã... Ai, meu Deus. Coisa boa não devia ser. Ele ajeitou o boné torto na cabeça e cruzou os braços, apertando forte contra o peito. A cara estava fechada e... ele parecia tenso. Ficava olhando pros lados, inquieto. Nada bom. Definitivamente nada bom. — Tá acontecendo alguma coisa, Juninho? — minha voz ainda estava meio ferrada de sono, mas a preocupação já dava aquela fisgada gelada lá no fundo do estômago. — O patrão mandou te chamar lá no galpão. — falou rápido, meio que atropelando as palavras, e os olhos dele continuavam naquela varredura frenética na rua. Meu estômago gelou. Depois de ontem... daquela confusão toda. O que ele queria comigo? — Agora? — minha voz falhou, saiu quase como um chiado. — Quatro da madruga? O que ele quer? — Não sei. — a resposta curta só piorou a bola de ansiedade que estava crescendo aqui dentro. O jeito dele, a urgência na voz... — Mandou te buscar. É urgente. Passei a mão no rosto, bagunçando ainda mais o cabelo, tentando fazer meu cérebro funcionar. Urgente? O que podia ser tão urgente a essa hora? Será que tinha acontecido alguma coisa com a Manu...? Senti um nervosismo gigantesco me dominando. Será que... — O que aconteceu? — insisti, a voz tremendo um pouco agora. — Aconteceu alguma coisa com ele? A pergunta i****a, preocupada, escapou antes que eu pudesse segurar. Credo, Maria Clara, se toca! — Eu não sei. Ele não falou nada! — Juninho rebateu, a impaciência explodindo. — Só disse pra vir voando te buscar. Anda logo. Não adiantava. Não ia conseguir arrancar nada dele. A urgência. O nervosismo do Juninho. Me fez concordar com a cabeça antes mesmo de decidir se queria ir. Mas eu tinha que ir, né? Não tinha escolha. Suspirei fundo e pedi pra ele me esperar. — Beleza. Só deixa eu trocar de roupa e calçar um tênis. Voltei pro quarto que nem um fantasma. Vesti uma calça de moletom, uma blusa preta de manga comprida e joguei por cima o moletom branco de capuz. Peguei o celular, conferindo a bateria por puro hábito — tá quase cheia — e calcei o tênis. Saí, trancando a porta. A chave gelada e tremendo um pouco na minha mão. Subi na garupa da moto dele, o banco frio. O vento da madrugada cortou o meu rosto como navalha assim que ele acelerou. As ruas estavam desertas. Um breu total. Só o farol da moto rasgando a escuridão, varrendo as fachadas silenciosas das casas. O motor roncando alto era o único som, ecoando nos becos vazios. O vento frio balançava as folhas secas no chão. Um cachorro latia longe. Um uivo triste que parecia espelhar a minha própria apreensão. Não consegui evitar que a pergunta escapasse da minha boca, urgente, gritada por cima do barulho do motor: — Juninho! — a voz saiu esganiçada pelo vento. — ...o Iago tá bem? Ele virou a cabeça só um mínimo. O vento quase levou o boné embora. A resposta veio embolada pelo barulho: — Tá... eu acho. Eu acho. Essa droga de resposta não ajudava em nada. Só fazia a tempestade dentro de mim ficar mais forte, mais gelada. Enquanto a moto subia o morro na escuridão, me levando direto pra ele. O que ele queria comigo? Por que tão urgente? E por que diabos, se a gente já tinha colocado tudo em pratos limpos ontem… não tinha sobrado nada pra dizer um pro outro? Enquanto a moto subia, minha cabeça não parava. Fiquei pensando em mil coisas... Principalmente no porquê dessa pressa toda. Por que ele me tinha chamado agora, no meio da noite? Só conseguia imaginar uma coisa... O único motivo que ele me procuraria. Claro que era isso. Dei uma risadinha sem humor, negando com a cabeça. Me sentindo uma trouxa. Uma i****a mesmo. Uma completa i****a por ter aceitado vir, sair de casa nesse escuro, ainda por cima preocupada se ele tá bem. Que raiva que eu sinto de mim! Respirei fundo, tentando engolir a irritação e a ansiedade que brigavam dentro de mim. — Pra onde a gente tá indo? — Pro galpão. — Juninho respondeu seco. — Onde fica isso? — Fica lá pra cima da matinha. O nome já me gelou por dentro. Matinha. Lembrei da Manu falando que tem um lugar pra onde eles levavam gente pra... Credo. Não. Não podia ser. Será que ele ia me matar? Meu estômago doeu. Esse lugar devia ser o mesmo. — Tu não vai me dizer o que aconteceu, não? — insisti, a voz agora carregada de um medo que eu tentava disfarçar. Ele virou o rosto só um pouco, de lado, e voltou os olhos pra estrada escura à frente. — Só vai, Maria Clara... tu vai entender quando chegar lá. A resposta dele não ajudou. Nada. Na realidade, pareceu ter feito até o efeito rebote. Porque o caminho tinha ficado infinito. Cada curva da moto fazia meu coração bater mais rápido na garganta, um tambor descontrolado. Um medo i****a, sem nome, ia crescendo dentro de mim. Medo do que ia encontrar. Medo dele. Finalmente, o galpão apareceu no fim da estradinha de terra batida, cercado por árvores. Era enorme e tinha um portão de ferro que parecia bem pesado. A verdade é que esse lugar era muito assustador. Juninho parou a moto perto do portão e olhou pra mim por cima do ombro. Seus olhos estavam sérios, tensos. — Ele tá lá dentro. Assenti, muda, tentando controlar a respiração que tinha ficado curta, sentindo a gastrite dando sinais. Calma, Maria. Respira. Repeti mentalmente pra mim mesma. — Tá... obrigada, Juninho. — minha voz era um fio. Desci da moto, as pernas meio bambas. Empurrei o portão devagar. O barulho do ferro arrastando no cimento ecoou alto, me dando arrepios. Um vento morno, com cheiro de poeira e... algo mais, vinha de dentro. Estranho. Entrei um passo. Hesitei. Depois, outro. Fui caminhando por um corredor escuro, as paredes de concreto bruto passando dos dois lados. No final, uma porta entreaberta. Um rapaz que eu nunca tinha visto — magro, cara de poucos amigos — fez um gesto com a cabeça pra eu entrar ali. Ele me guiou sem dizer nada. Entrei. E aí... eu vi ele. O Iago estava encostado na parede do cômodo m*l iluminado. Braços cruzados, cabeça baixa, a sombra do boné cobrindo os olhos. Imóvel. E logo à frente dele... — AAAAHH… — o grito rasgou minha garganta, mas saiu abafado. O chão sumiu dos meus pés. Minhas mãos voaram pra boca, tentando segurar o horror, o enjoo. Meu coração disparou — parecia que ia sair pela boca. Era a Alicia. Desmaiada na cadeira, cabeça tombada... e o cabelo raspado. Tava tudo cheio de sangue. Meu Deus. O que fizeram com essa garota... — Iago… — minha voz era um sussurro trêmulo, quase inaudível. Meus pés estavam grudados no chão de cimento frio, no meio do galpão. Meus olhos fixos nele, sem conseguir desviar. — ...o que que você fez? Ele levantou o olhar pra mim. Devagar. Mas os olhos dele... estavam vazios. Frios. Como duas pedras escuras. Ele não disse nada. Nem um músculo do rosto se mexeu. Dei um passo hesitante, depois outro. As pernas fracas, me forçando a ir até ela. O cheiro r**m ficou mais forte.
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