Capítulo 58

1452 Words
Maria Clara Fechei a porta do quarto devagarinho, prendendo a respiração pra não fazer barulho. A Alicia estava deitada, quieta na minha cama. Toda machucada, o rosto inchado, mas respirava melhor, mais regular. Graças a Deus. Eu já tinha limpado os cortes feios no couro cabeludo dela, passado pomada com cuidado onde a gilete tinha machucado, arranhado a pele. Tratei também a queimadura no rosto dela, espalhando a pomada que eu mandei o Iago buscar e que era boa pra isso, e deixei enfaixado com gaze limpa. Fiz o meu melhor, o que podia fazer ali. Como o Iago não queria que ninguém soubesse, decidi que ia cuidar dela aqui em casa mesmo, escondida. Não sou médica de gente, nunca fui, mas cuidar dos bichos lá na clínica me ensinou muita coisa. Sobre empatia, sobre amor, sobre cuidado. No fim das contas, a diferença entre cuidar de um bicho e de uma pessoa nem era tão grande assim. Até era mais gratificante cuidar de um bichinho de quatro patas, sabe? Pelo menos ele te lambe, te cheira, te olha com aqueles olhos puros de gratidão. Te mostra amor sem precisar dizer uma palavra. Agora, o bicho de duas pernas... ah, esse costuma morder a mão de quem cuida, mesmo depois de curado. Balancei a cabeça, afastando o pensamento. Assim que passei pela porta e levantei o rosto, vi o Iago. Encostado na parede do corredor estreito, o boné afundado na testa, o olhar perdido em algum ponto distante lá fora, através da janela da sala. Fomos juntos até a sala. Aqui em casa era tudo tão pequeno, tão apertadinho, que com poucos passos a gente já estava em outro cômodo. Ele olhava em volta, quieto, reparando em cada canto, nos meus porta-retratos na estante, nas almofadas coloridas que comprei numa lojinha lá do centro. Como se estivesse gravando o lugar na memória. Tinha algo no olhar dele que... não sei explicar. Um misto de curiosidade e... contenção? Como se estivesse se segurando muito pra não deixar escapar alguma coisa, algum sentimento. Ele deu um passo e, na hora, fez uma careta, rápida, quase imperceptível, mas eu notei. O corpo dele deu aquela travada, o ombro subiu tenso por um segundo. E meu corpo reagiu junto, um impulso i****a de querer ajudar, mas sem saber como. — Que foi? Tá doendo? — perguntei baixo, quando vi ele fechar o semblante por aquele instante de dor. Ele negou com a cabeça. Disfarçando. Mesmo assim, me aproximei um pouco, preocupada. Porque ele tinha pegado ela no colo... — Tá tudo bem. — ele disse, a voz controlada. — A dor deve ter sido do esforço de mais cedo. Assenti, observando o movimento quase imperceptível do peito dele subindo e descendo. Ele estava mentindo. — Senta um pouco, vai. — apontei pro sofá. Ele negou de novo, só com um movimento de cabeça. — Tô suave. — passou a mão pela barriga, por cima da camisa, e nossos olhares se cruzaram por um instante. Ficamos em silêncio por um tempo que pareceu longo demais. — Vou chegar lá em casa. Amanhã eu mando os cria trazer o que tu pediu. — Tá. — falei, sem jeito, desviando os olhos. Ficar tão perto dele assim era estranho. Sempre me deixava nervosa, minha garganta dava aquele nó. — Eu continuo achando que tu fez um m*l negócio. — ele disse, antes de se virar por completo em direção à porta. A voz dele tinha um tom de aviso. — Mas... cê faz o que quiser. Fiquei quieta, olhando para as minhas mãos. Pensativa. Ele podia até ter razão. Era loucura trazer a Alicia pra cá. Mas... não tinha como eu agir diferente. Eu nunca deixaria ela ali. Ele ia saindo pela porta no exato momento em que o Juninho apareceu, entrando apressado, quase trombando nele, com umas sacolas de mercado balançando na mão. O Iago travou, voltou o corpo pra dentro e parou perto da porta. — Tá na mão, Iago. Tudo que tu pediu tá aí. — Juninho levantou as sacolas, ofegante. — Não tinha outro lugar pra colocar não? — falei, dando uma risadinha. — Trouxe tudo em sacola de mercado, sério, Juninho? O Iago virou o rosto pra mim. O olhar dele subiu do chão, passou pelas sacolas, e parou em mim. Sério. Frio. A risada morreu na minha garganta. Apertei a boca com força, segurando a vontade i****a de rir da cara feia que ele estava fazendo. Credo. — Obrigada, Juninho. — murmurei, desviando o olhar. — Tem de que não, pô. — ele sorriu pra mim e piscou. Um gesto inocente. Mas pro Iago... Ele lançou um olhar pro Juninho que parecia que ia arrancar a cabeça dele ali mesmo. Sério, era quase engraçado, se não fosse assustador. — Deixa aí e vaza, fi. — a voz do Iago veio firme, seca. Uma ordem clara. Juninho olhou pra mim, depois pro Iago, meio sem graça. Me entregou as sacolas com cuidado e saiu rapidinho, quase correndo, sumindo pelo corredor estreito. Peguei as bolsas pesadas e botei em cima do sofá. Enquanto isso, o Iago continuou parado ali, observando cada movimento meu, o corpo grande bloqueando metade da porta, como um guarda. — Tu já conhece geral aqui no morro? — perguntou de repente, ajeitando o boné na cabeça, a voz mais baixa agora. — Não... quer dizer... — encarei ele, confusa com a pergunta. — Conheço a dona Sílvia, mãe do Juninho... ele... a Agatha, o marido dela... — Eee? — perguntou, os olhos me estudando, esperando mais. — E ontem conheci as meninas lá na casa da sua mãe. A Mel e a Any. Ele assentiu devagar, mas a expressão não mudou. Aquele olhar dele estava me analisando, me decifrando. O tipo de olhar que falava mil coisas que a boca dele nunca deixava sair. — Pode crer. — murmurou. — Vou deixar um menor aqui embaixo caso precise de algum bagulho. — Não precisa deixar ninguém aqui embaixo não. Qualquer coisa eu falo com o Juni... — Não. — ele cortou na hora. A voz grossa, impaciente. Nem me deixou terminar a frase. — O Juninho tá cheio de fita pra resolver. Não tem tempo pra ficar moscando aqui, não. O que tu tiver pra desenrolar vai ser com o menor que eu botar aí, visão? Fiquei olhando pra ele, tentando entender o porquê daquela grosseria toda. Mas logo entendi. Não era nada sobre o Juninho estar ocupado. Era sobre ser ele. Sobre eu falar com o Juninho. Ele tá com ciúme. Estava estampado na cara dele. No jeito que ele nos olhou. Tava escrito na testa dele. — Tá bom. — falei baixo, prendendo um sorrisinho que quis escapar. Ele ajeitou o boné de novo, parecendo desconfortável com a minha percepção. E passou pela porta. — Ah... — falei rápido, antes que ele descesse a escada. Ele parou e olhou pra trás. — Vou precisar de alguém pra ficar com ela quando eu tiver na clínica. Pelo menos por uma semana, até ela melhorar mais. Ele escutou, quieto, e confirmou só com a cabeça. — Obrigada. — sorri pequeno, mas ele nem retribuiu. Virou e saiu, sério, descendo as escadas até sumir de vista. Fiquei olhando descer as escadas e sorri em silêncio. Ele tinha ficado com ciúme. De verdade. E eu... eu tinha amado. Confesso. Um calorzinho i****a subiu pelo meu peito. Entrei, fechei a porta e encostei as costas nela, respirando fundo, o cheiro dele ainda pairando no ar da minha sala. Olhei pro sofá. As sacolas ali em cima. Nem sei onde vou enfiar tudo isso. Aqui é tão minúsculo. Fui até elas, peguei as sacolas e abri uma por uma, curiosa. Tinha algumas peças de roupa, camisetas, vestidos, roupa íntima. Até toalha de banho, escova de cabelo, escova de dente nova e coisas básicas pra Alicia... Sentei na beirada do sofá, apoiando o cotovelo no joelho e o rosto na mão. A cabeça girava de cansaço, de confusão, de tudo. E, de repente, uma saudade enorme da minha mãe me apertou o peito, forte. Uma absurda de chorar. Suspirei, olhando pro teto e bufei, cansada. Vai dar certo. Logo logo a gente vai se encontrar mãezinha. Iago Já faz umas semanas que arranquei os pontos. Bagulho cicatrizou direito, ficou só um risco discreto na barriga. A dor já nem incomoda mais. Agora tá suave. De volta pra rotina, pra função... pro comando dessa p***a. Tô no escritório da boca, largado na cadeira de rodinha, o cigarro queimando devagar no canto da boca. Conferindo umas anotações no caderno, vendo o giro da semana. Lucro subindo, mas sempre tem vacilação pra resolver. — Fala. — levanto o olhar.
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