Capítulo-III. Fisgados
Seus olhos me denunciam; seus desejos uma desordem que me recolhem e me calam. Mesmo que a vida chame lá fora, aqui dentro o tempo estagnou.
Tiana
Adormeci e quando despertei foi com a voz do piloto falando algo.
_ Chegamos? - perguntei sonolenta.
_ Não, é uma parada para abastecer.- Alef respondeu sem vontade.
Me encolhi contra a poltrona, sentia frio, meu saco de tricô não parece ser suficiente.
Alef se levantou e saiu andando. Eu fiquei quieta com o olhar perdido sem saber o que vai ser de mim e do meu destino.
Pensei no momento da despedida, nos abraços que dei em meus pais, meu irmão e em Joaquinha. Sentirei falta deles e da minha vida simples, do meu país. Não demorará para Alef voltar e o avião retomar seu voo. Fechei os olhos.
— Você dormiu demais, acorde — sua voz soou como uma ordem.
— Quem é você realmente?
— Para você, serei dor; para outros, escuridão. Não queria me revelar.
— Eu não tive culpa de nada, o coronel e meu tio descobriram tudo e...
— Guarde suas invenções para os outros, não para mim. Não pense que me engana com essa conversa de inocência, de não ter culpa. Sei bem como mulheres como você agem para alcançar uma vida de luxo e riqueza. Tentou me usar como um trampolim, mas eu sou uma rampa e vou te derrubar, menina! — Seu olhar é afiado, como uma espada, cheio de espinhos prontos para me ferir.
— Acredite em mim, não fui eu que...
— Chega! — Seu grito me faz engolir as palavras. — Sua voz me causa náuseas! Cale-se!
Estremeço, olhando assustada para o homem que agora exibe uma versão violenta e explosiva. Seus olhos não me soltam, e isso me incomoda. Tento fechar os olhos.
— Mandei você manter os olhos abertos.
— Os olhos são meus e eu...
Não consigo terminar a frase; Alef já está sobre mim, segurando meu cabelo com força na nuca. Ele abre um sorriso frio.
— Você não tem nada, tudo é meu. Aquele papel que você assinou determina isso. A partir de agora, fará o que eu quiser, sua horrorosa.
Dói ouvir dele que me acha feia. Alef retorna à poltrona, e eu o encaro com raiva; a mágoa é insuportável.
— Eu não sei onde estava com a cabeça quando me envolvi com você. Acredito que foi a necessidade de aliviar a tensão. Você nunca me atraiu, Tiana, nunca me abriu. Me aproximei porque era o que tinha por perto. É como um doce: quando você deseja algo açucarado e a única opção não agrada seu paladar, mas contém açúcar, você pega e come.
Meu peito se aperta, minha garganta fica constrita.
— Eu te dei algo que nunca poderei recuperar, Alef.
— Não teve tanta importância para mim; foi apenas um momento. Eu nunca te quis para ser minha ou estar perto de mim. Você não se encaixa no tipo de mulher que eu gosto: altas, loiras, cabelos lisos, olhos claros, com aparência de modelos. Alguma vez você se olhou no espelho? Você é comum demais. Para aqueles matutos do seu lugar de origem, talvez você desperte algum interesse, mas em mim, não. O tempo todo eu quis apenas sexo, Tiana. Se você acreditou em sentimentos ou criou ilusões, isso é problema seu.
— Como você pode mudar tanto...
— Eu não mudei, sou assim; seus olhos tolos enxergaram o que quiseram.
Calei-me. O homem que tinha momentos gentis se transformou em um monstro, carregando em seu pescoço a chave da minha prisão.
Horas depois, estávamos aterrissando na Alemanha. Alef saiu e me deixou para trás; minha vontade era de não me mover. No entanto, se eu não o seguisse, para onde iria nesta terra desconhecida?
Alef parece ter múltiplas personalidades. Como se lida com alguém assim? Sinto que estou prestes a mergulhar em um pesadelo real.
Saímos da aeronave e vejo Alef conversando com quatro homens de terno preto na pista, onde há três carros. Um deles se destaca: uma BMW SUV preta com detalhes cromados. Conheço o modelo porque o coronel Gumercindo tem várias revistas sobre carros, e eu e Quininha costumávamos olhar as cores e modelos.
Fico perto da escada, sem coragem de me aproximar, e nem quero. É como quando você descobre que a pessoa por quem sentia algo bonito está se transformando em algo podre, e tudo o que deseja é se afastar. É isso que estou sentindo. Quero que esse alemão fique longe de mim, mas como posso conseguir isso se somos casados?
Alef me lança um olhar, me abraço. Estou vestida com uma calça jeans, uma blusa de tricô e sandálias que não combinam com o frio deste lugar; estou quase tremendo de frio. Percebo a diferença nas roupas: as deles são grossas e em camadas, enquanto as minhas são finas.
Alef aponta para o carro e começa a andar na frente. Mais uma vez, caminho sozinha, minha respiração se transforma em vapor, e oro baixinho para que o sol deste país apareça, ou vou congelar. Alef entra no carro e fecha a porta.
Demoro uns três minutos para me aproximar do veículo, puxo a maçaneta, mas a porta não abre. Tento novamente, e nada. Entro em pânico, pensando que ele vai arrancar com o carro e me deixar aqui congelando. Bato no vidro, e a ponta dos meus dedos já não sente mais nada.
— Alef, abre, por favor... — minha voz sai trêmula. O vento não para de soprar, como uma lâmina contra a pele do meu rosto.
Escuto um clique, tento mais uma vez e a porta se abre. Entro no carro tremendo, com dificuldade para respirar. Escorrego pelo banco de couro, me encolhendo ao máximo em busca de calor.
— O que você tem? — ele pergunta sem emoção.
— F-frio... — gaguejo, batendo os dentes.
— Sério? Eu não estou sentindo nada — ele responde com sarcasmo.
Me encolho ainda mais contra o banco, deito em posição fetal, meu corpo treme incontrolavelmente. Acho que vou morrer de hipotermia. Então, sinto algo sendo jogado sobre mim com certa violência.
Abro os olhos e vejo que é o sobretudo que ele estava usando. Não penso duas vezes, pego a peça e me cubro dos pés à cabeça.
Lágrimas se formam nos meus olhos, engulo em seco, lembrando das últimas palavras do meu irmão: se for para sofrer, prefiro ficar desonrada. O cheiro de Alef invade minhas narinas, junto com o pouco calor que a peça trouxe do corpo dele.
Sinto raiva de mim mesma, da minha inocência. Por que não prestei atenção nos sinais? O que fiz para merecer isso?
Sinto quando o carro começa a se mover, e logo estamos em uma velocidade que não consigo identificar, apenas ouvindo o barulho dos pneus contra o asfalto. Não quero me levantar, não quero olhar para ele de jeito nenhum. Ele me deixou trancada no tempo frio.
Crueldade é um termo fraco para descrever algo assim.
_ Temos uma coletiva com a imprensa; vou providenciar algo para você usar.
Fico incomodada ao ouvir o que ele diz.
_ Eu não vou.
_ Você não tem escolha; preciso limpar a bagunça que você fez. Não pense que será um prazer estar ao seu lado, porque não será. Faremos isso porque envolve minha família e o nome da minha linhagem.
_ Faça isso sozinho.
_ Não discuta comigo, Tiana. Você vai e ponto final.
Temo deixá-lo muito irritado e que Alef me abandone na primeira esquina; nem sei onde fica a embaixada do Brasil aqui para pedir ajuda.
Engulo muitas palavras e olho pela janela.
Não leva cerca de vinte minutos para entramos cruzando uma área gradeada e cheia de verde.
_ Aqui é...
_ O lugar onde você vai viver a partir de agora.
Um carro à frente do nosso atravessa os portões, seguido pelo nosso veículo e mais dois.
_ Esses carros são...?
_ Seguranças. - responde de forma seca.
O carro avança por uma estrada até fazer uma curva, quando de repente aparece uma construção. Uma casa que parece respirar, com uma arquitetura que combina estética moderna e luxo. A estrutura cúbica é revestida com telhas de cedro preto profundo e elementos de madeira. Janelas do chão ao teto. Meu olhar se perde na área ajardinada em terraços, impressionante pelo design amplo e pela elegante vegetação inspirada nos jardins j*******s.
A casa é uma verdadeira declaração de luxo. Um lar que não se parece com um lar.
_ Não direi "seja bem-vinda", pois não quero te enganar. A mala está no porta-malas; pegue-a e me espere na entrada. Você vai subir essa escada, passar pela lateral e encontrará a porta.
Saio do carro, contorno-o, e o porta-malas se abre sozinho. Pego minha mala e sigo o caminho indicado por Alef. Não entendo por que os seguranças me observam. Coloco a mala no chão e começo a caminhar, quando de repente aparece um enorme cachorro de pelagem escura. Não tenho tempo nem de gritar; quando percebo, sou lançada ao chão e o animal rosna bem perto do meu rosto.
Meus olhos se arregalam, perco a cor, o medo é intenso.
_ Socorro! Socorro! Alef! - grito, tentando evitar movimentos bruscos para não provocar um ataque do animal.
Estou em pânico, aterrorizada, quando ouço passos. Viro os olhos e vejo Alef se aproximar lentamente, com as mãos nos bolsos da calça.
_ Socorro, socorro... - ele imita meus gritos de desespero com escárnio. - Está com medo? Apavorada? É indescritível a sensação de ser surpreendido quando menos se espera, não é?
Alef se abaixa perto de onde estou. Fala algo para o cachorro, que se afasta e se senta perto dos meus pés, sem desviar os olhos de mim.
_ Seu inferno começou, Tiana. Eu serei seu carrasco.
Alef diz algo e o cachorro se aproxima; penso que ele vai dar ordens para me atacar e fecho os olhos.
Então, ao ver o corpo do homem se erguendo, abro as pálpebras. Alef se afasta, levando o cachorro que mais parece um boi.
Sentindo-me atordoada pelo susto, passo a mão pelo cabelo para tirar qualquer sujeira. Me levanto e pego minha mala.
Caminho com medo, cabeça baixa e a alma pesada.
Sigo o caminho que Alef explicou, paro em frente à porta e, minutos depois, ele aparece, abre a porta e entra.
_ Antes que você pense que sou algum dono ou senhor, quero deixar claro que não sou e nem serei. Aqui você vai pagar com serviços pela comida e estadia. Não te reconheço como minha esposa.
Seu quarto ficará próximo à despensa. Não teremos uma relação de homem e mulher, mas sim de patrão e funcionária. Leve sua mala para lá, feche-se e só saia quando eu te chamar.
— Se é para me tratar assim, peça o divórcio e me entregue aos meus pais. Prefiro enfrentar o julgamento dos outros do que passar por isso.
Alef se aproxima e segura meu queixo com brutalidade.
— Eu te trato como quiser, você é minha. Esqueceu que leva meu sobrenome? — Ele empurra minha cabeça com tanta força que caio sentada no chão.
— Odeio você, Alef!
— Ah, odeia? Saiba que seus sentimentos não me afetam. Ódio, amor... vindo de você não têm valor, não me atingem.
Levantei, peguei a mala e olhei para o infeliz que apontou na direção da cozinha.
— Se tentar fugir ou sair, meus seguranças têm ordens expressas para te deter, mesmo que precisem te neutralizar.
Meus passos pararam, não olhei para trás, respirei fundo e segui em frente. Sozinha, consegui encontrar o quartinho, que era minúsculo e sem janela; mais uma alcova do que um quarto de funcionária. Coloquei a mala para dentro, fechei a porta, sentei na cama pequena e parei para pensar na confusão que arrumei para minha vida. Tirei as sandálias e deitei na cama de colchão duro, sentindo os ossos. Apoiei a cabeça sobre as mãos e me perdi em meus pensamentos. Acabei amaldiçoando o dia em que prestei atenção nele naquela bendita quermesse, amaldiçoando o dia em que peguei o telefone de Tomásio e fiz aquela ligação, amaldiçoando por ter dado minhas primeiras vezes a ele, amaldiçoando a sexta-feira em que decidi que seria dele.
— Como fui burra! Burra! Me deixei levar pelo coração e acabei acorrentada, fisgada e marcada por um homem que me trata como lixo!
De repente, a porta se abre e Alef aparece.
— Dentro de duas horas, você terá roupas, sapatos, joias e um profissional para cuidar do seu rosto e cabelo. Escolhi tudo e, após usar, terá que me devolver. Nada aqui é seu, nada será seu, estou sendo claro?
— Sim, igual água.
— Ótimo!
Ele saiu, deixando a porta aberta.
Sentei-me e procurei meu celular na mala. Queria ligar para alguém e contar tudo, mas lembrei do papel que estava enrolado dentro de uma meia que guardei. Coloquei-o debaixo do colchão. Na primeira oportunidade que eu tiver, ligarei para essa pessoa que Dona Dinah mencionou e pedirei ajuda para voltar ao Brasil.
Fiquei olhando para a cômoda empoeirada à minha frente por um bom tempo, até que decidi organizar algumas das minhas roupas. O tempo foi passando e, quando terminei, sentei e me recostei na parede. Se eu fosse uma música, seria puro lamento.
Sem noção do tempo, só percebi que duas horas se passaram ao ver Alef entrar no pequeno quarto.
— Suba as escadas, primeiro quarto à esquerda. Estarei te monitorando pelas câmeras de segurança.
Minutos depois, estávamos dentro do carro, ele impecável em um terno cinza chumbo, e eu vestindo tubinho branco, blazer e Scarpin nude. Meu cabelo encontra-se escovado, um conjunto de joias me adornando.
— Vai sorrir, se porta como uma mulher apaixonada. Demonstraremos amor e que somos um casal inigualável.
Não me atrevo a dizer nada. Olho para o outro lado.
Alef dirige por algum tempo até entramos numa garagem subterrânea.
Desembarcamos, ele se aproxima e tenta pegar a minha mão, desvio me afasto.
Alef percorre os dedos pelos cabelos escuros que possui, olha de um lado para o outro, fala alguma coisa para os seguranças que seguem na frente sem olhar para trás.
De repente, o homem me empurra contra a parede mais próxima.
_ Não apronte nada comigo que vai se arrepender de ter cruzado o meu caminho.
Olho dentro dos seus olhos.
_ Eu já me arrependi. - duelamos com olhares até que ele segura em minha mão e aperta.
_ Tente se soltar e quebro seus dedos.
Olho de soslaio para o homem que me puxa em direção à porta do que parece ser um elevador.