Prólogo
O som do tiro soou uma explosão nos meus ouvidos e, depois disso, tudo pareceu seguir em câmera lenta. O corpo dele caindo com um baque s***o no chão, a mancha de sangue se alastrando pelo tecido da camiseta azul, a poça se formando por baixo, os olhos trêmulos e o suor formando gotículas brilhantes na sua testa. Um grito de horror eclodiu pelo beco; sirenes soaram no fundo, e logo tudo desapareceu. A consciência veio lentamente. De início, relutei em abrir os olhos, como se, caso o fizesse, o peso da realidade viesse sobre mim mais esmagadora do que conseguia suportar. De alguma forma, nada daquilo parecia real, a inconsciência era uma bênção que estava disposta a abraçar com toda a minha força.
Respirei fundo algumas vezes e me concentrei nos sons, vozes abafadas, o barulho discreto de um ar-condicionado, um bipe insistente, mas, fora isso, tudo à minha volta era silêncio. Convenci-me assim que estava sozinha e criei coragem para abrir os olhos; a visão turva levou algum tempo para ajustar-se, o teto de gesso foi a primeira coisa a entrar em foco; minha garganta seca e lábios grudados me alertaram para o fato de estar desacordada há algum tempo, a dor na minha cabeça era tamanha que m*l conseguia movê-la sem gemer.
Olhei em volta, um sofá ocupava o lado esquerdo, um pouco ao fundo, assim como a mesa que tinha um lindo jarro com flores e algumas revistas que não consegui identificar. Estava coberta por um lençol fino e, tocando-me descobri a fina túnica sobre mim; para meu desespero, sob ela, estava nua; apenas aquele fino pedaço de pano, aberto atrás, me cobria. Senti m*l-estar e pânico, travando uma luta interna para manter a calma. Era um quarto de hospital, não havia dúvida, o barulho irritante do monitor cardíaco começou a acelerar, marcando minha ansiedade e os batimentos enlouquecidos dentro de mim.
Não sabia como havia ido parar ali, para o meu desespero também não me lembrava do meu nome, onde morava ou qualquer coisa relacionada a mim até acordar naquela cama. Primeiro, a falta de ar vacilou meu peito, o coração parecia saltar algumas batidas, a dor na cabeça foi tomando proporções gigantes e, por fim, tudo escureceu.
∞Ж∞
Minha cabeça parecia explodir. O dia fora cheio e a noite não parecia muito melhor, quatro cirurgias, dois acidentes de trânsito, três pessoas esfaqueadas em briga e um assalto à mão armada quase simultaneamente. Enquanto esperava o café ficar pronto — e torcia para que ele me mantivesse acordado — Alice irrompeu na sala, afobada, com a prancheta na mão.
— Bernardo, é uma parada cardíaca no quarto da paciente que você trouxe — falou quase sem fôlego.
Larguei tudo e saí em disparada pelo corredor tendo Alice no meu encalço.
— Qual a situação? — quis saber enquanto torcia para o elevador descer mais depressa.
— Os enfermeiros estão fazendo massagem cardíaca, mas não há resposta.
— O que aconteceu?
— Não sei, foi apenas o tempo de ir ao quarto de um recém-chegado com traumatismo no fêmur — explicou. — Quando voltei, havia um enfermeiro tentando reanimá-la e corri para te chamar.
Os níveis não estavam bons, o monitor cardíaco indicava que a atividade do coração estava muito abaixo do mínimo normal e ela não respirava. Dois enfermeiros se revezavam na massagem cardíaca, empurrei a mesinha do desfibrilador e os afastei.
— Força 150!
— Em 150, doutor — confirmou a enfermeira despejando gel na pá.
— Afastem-se — ordenei. — Um, dois...
Pressionei as pás no peito dela, o primeiro choque. O enfermeiro rapidamente voltou a fazer a massagem cardíaca, mas continuava sem resposta. Mais gel na pá, friccionei uma na outra e mandei que eles se afastassem, o segundo choque, mais massagem cardíaca, no terceiro choque ela respondeu e os batimentos estabilizaram. Respirei aliviado quase sentindo o corpo ceder quando eles ajustaram os níveis da máscara de oxigênio, o suor escorreu frio pela minha nuca e têmporas, Alice tocou meu braço em solidariedade e sorriu.
— Movam para terapia intensiva — pedi. — Quero alguém monitorando direto, okay?
— Sim, doutor.
Saí do quarto, parando no corredor para voltar a respirar, não havia percebido a tensão que avançava pelo meu corpo até aquele momento, Alice se aproximou, ficando na parede oposta, de frente para mim. Parecia cansada e não era para menos, nos últimos dias estava tudo uma loucura.
— Quem é ela? — quis saber. — Não há registro da internação e você não é de fazer segredos.
— Eu não faço ideia — suspirei, cansado. — Não encontrei nada na bolsa, sem documentos, só um mp3 e uma caderneta.
— Precisa alertar a polícia — advertiu. — Ela pode ser uma fugitiva.
— E pode não ser. — Apertei a ponte do nariz. — Quero esperar ela acordar, vamos ouvir a versão dela antes de tomar providências.
Ela apenas assentiu. A maca com a paciente saiu pelo corredor na direção da ala UTI, observei-a desaparecer dentro do elevador e me perguntei, por um momento, o que estava fazendo.