Narradora POV
[Anos atrás]
- Mama! Olha o que eu sei fazer!
A pequena loirinha dava estrelinhas pelo gramado do parque e Marie sorria para a filha.
Era um evento um tanto incomum que eles saíssem em família em uma tarde apenas para passear ou, no caso dela e de Dimitri, ver seus filhos brincarem no parque.
- Linux, por que não larga um pouco esse caderno e vai brincar com a sua irmã? Um pouco de sol vai te cair bem.
Dimitri deixou um tapinha na nuca de seu filho do meio que estava sentado entre os pais desenhando.
O garoto ajeitou os óculos sobre o nariz exatamente idêntico ao do pai e ergueu seu rosto.
- O que eu ganho com isso?
Suspendeu uma de suas sobrancelhas. Marie quis rir, ter um filho superdotado de sete anos não era uma tarefa fácil, principalmente quando se tratava de um descendente de Dimitri.
O pai, sem querer demonstrar sua mente em profusão, apenas lançou um olhar para ela e depois para o garoto mais uma vez.
- Vitamina D e a amizade de sua irmãzinha não basta?
Rebateu o adulto como se Linux também fosse um, então ouviu-se uma risada ofegante e um rosto suado se meteu no meio da conversa.
- Oferece dinheiro logo, só assim pra esse pirralho se mexer um pouco!
Eros, com suas luvas de boxe sob seus braços cutucou a cabeça de Linux que quase se virou para estapeá-lo, mas Marie impediu a briga antes mesmo que ela começasse.
- Você não estava praticando boxe com seu amigo? Se não vai ajudar, volta pra lá!
Marie disse com uma carranca que ela tinha adquirido com a maternidade.
No rosto de Eros cresceu um sorriso canalha, mesmo no auge dos seus quinze anos já se podia ver que tipo de homem ele se tornaria.
- Ajudar... atrapalhar... o importante é participar, mama.
Ele riu cutucando o irmão mais novo mais uma vez, o que fez a paciência do mesmo se esgotar e Linux correr atrás de Eros furioso. Sem entender, mas querendo se juntar, Daphne correu atrás deles.
Eros ria debochado, Linux xingava ele em grego e Daphne soltava risadinhas enquanto chamava pelos irmãos. Mesmo em um caos completo, a cena era bonita de ver.
- Ao menos ele saiu para o sol.
Dimitri deu de ombros fazendo Marie rir e se recostar no corpo do marido que a abraçou de bom grado.
Era uma tarde bonita e ensolarada, quem diria que a noite seria tão escura após aquilo.
[Dias atuais]
- Linux desenvolveu a lúpus após o estresse do sequestro. Ele foi o único que não conseguiu falar abertamente sobre tudo o que viu e passou naquele lugar.
Marie, um pouco mais recomposta da lembrança dolorosa do dia em que pensou que perderia seus filhos para sempre, começou a explicar com mais facilidade.
Desde mais jovem ela sempre foi boa em mascarar o que sentia e se tornar mais forte com as adversidades, por isso naquele momento conseguia conversar com Sophie como se aquele assunto fosse pequeno como um grão de arroz aos seus olhos.
- Daphne era pequena, o sequestro em si não foi tão traumático quanto o acidente de carro que eles sofreram com a fuga dos bandidos.
Explicava ela calmamente.
- Já Eros eufemiza tudo. Diz que nada aconteceu de sério com ele, que ele não sofreu, que tudo o que eles fizeram com ele não doeu mas...
Marie interrompeu a si mesma quando percebeu do que estava prestes a falar, então dirigiu um sorriso triste à Sophie que parecia se sentir cada vez menos policial e mais parte daquela família.
- Eu sou mãe deles, Sophie. Quando você for mãe, vai entender melhor, mas eu sei exatamente quem eram meus filhos antes e no que se transformaram depois desse maldito sequestro.
Mesmo com aquele sorriso em seu rosto, seus olhos avermelhados pelo choro recente mostravam raiva genuína, algo que não se podia mensurar com palavras. A delegada havia visto esse olhar em poucos rostos nessa vida, mas com certeza o de Marie era o mais marcante.
- E agora Linux está perdendo para uma doença que ele nunca poderia ter tido se não fosse por eu e Dimitri termos hesitado no passado...
Desviando seu olhar com raiva de si mesma, a oficial passou as mãos pelo rosto e respirou fundo.
Já a delegada piscou algumas vezes antes de se aproximar um pouco mais percebendo que estava começando a entrar no assunto principal.
Ela estava ávida por mais informações. E para sua sorte, Marie estava ávida por vingança.
- Do que a senhora está falando?
Ousou perguntar, então a mulher de meia idade em sua frente teve seu rosto rejuvenescido por alguns segundos ao finalmente poder expressar sua raiva a alguém.
- Aposto que já ouviu falar sobre Ayaan Gupta, certo?
Sophie POV
Eu não sabia o que fazer com aquela quantidade de informações em minha mente. Ao mesmo tempo que eu queria me sentir empática com a situação de Eros e não perturbá-lo, eu também queria respostas.
Marie me contou sobre como Ayaan, que na época se apresentou como Ravi para eles, tentou matar seus filhos por vingança ou para pelo menos atrair ela e Dimitri para uma armadilha.
Também me contou que a polícia foi de muita ajuda na época assim como a equipe do meu pai que foi a equipe responsável pelo resgate das crianças, mas ela não sabia - ou simplesmente não queria me contar - os detalhes pela visão de seus filhos.
Sou jovem, claro que sim, mas não sou leiga. Assim como também não estou alheia ao que acontece ao meu redor, sei bem que Ayaan estava a solta novamente e que isso significava perigo eminente para essa família.
Se eu pudesse dar um chute, com certeza apostaria que ele estava por trás das drogas no camarim de Eros.
Faria sentido ele fazer isso, assim acabaria com a carreira dele e sucessivamente com a imagem de sua família e o sustento do tratamento caro de seu irmão, matando muitos coelhos com uma única cajadada.
Mas isso era apenas uma suposição partindo do, também pressuposto, ponto de vista em que Eros era inocente.
Contudo, alguém inocente nunca precisaria ter seu histórico apagado e Marie me disse com todas as letras que eles mexeram no histórico médico dos filhos.
No que mais eles poderiam ter mexido?
Meu coração não estava, mas minha mente estava dividida. Não conseguia pensar em mais nada além daquele caso complexo, estava tão imersa em meus próprios pensamentos que nem ouvi Eros se aproximar, apenas percebi sua presença ao que ele colocou um copo de café em minha frente.
– Não sabia como você gostava então trouxe puro.
Disse ele dando de ombros e se sentando na cadeira ao meu lado, sua jaqueta estava fechada com o zíper até o queixo e seus olhos estavam avermelhados. Ele estava chorando, de certo.
– É assim que eu gosto, puro e forte.
Disse sem nenhuma pretensão de soar ambígua, mas quando percebi já era tarde. A faísca já tinha acendido nos olhos de Eros que sorriu sacana.
– Vou manter isso em mente, delegada.
Disse ele com as pontas dos dedos tamborilando sobre a mesa de metal da cafeteria e um silêncio desconfortável se instaurou entre nós.
– Bem... eu... sinto muito. Pelo seu irmão, sabe? Marie me contou.
Mudei de assunto rapidamente e dei um gole no café que estava perfeito demais para quem não sabia de como eu gostava do mesmo.
Eros perdeu o sorriso que sustentava e olhou para as próprias mãos.
– Ele precisa de um hospital melhor, vamos levar ele com a gente amanhã. Tem um hospital na Holanda que pode ajudar ele.
O lutador falava como se tudo já estivesse preparado em sua mente e que somente de pensar que daria certo tudo automaticamente já daria certo.
Eu admirava esse otimismo, a primeira coisa que minha depressão fez foi me roubar isso.
– Mas isso significa que ele vai ter que entrar em um avião, como ele vai nesse estado?
Perguntei tentando ser o mais delicada possível e vi o sorriso i****a voltar ao rosto dele mais uma vez.
– Quem você acha que sou, querida? Vamos fretar um avião, botar a p***a de uma equipe médica inteira dentro dele e vamos para a Holanda!
Aquele sorriso confiante e a maneira que ele se colocou de pé era o que me confundia sobre o que ele de fato estava se sentindo.
[...]
O hotel em que passaríamos a noite era bem luxuoso e eu tenho quase certeza de que nunca nem passei por essa parte da cidade antes, mas cá estou eu.
– Os guarda-costas estão subindo com nossas coisas. Pode pedir o que quiser do menu e também pode ficar com a cama de casal, eu fico na de solteiro.
Eros explicava tudo tão rápido que nem mesmo me deu tempo de negar e de dizer que era errado botar um atleta que acabou de sair de uma competição para dormir encolhido em uma cama menor que seu corpo.
– Amanhã esteja pronta às sete em ponto, nosso voo é às oito, mas nunca se sabe o que pode acontecer...
Tagarelava sem parar tirando sua jaqueta e dando as costas para mim seus músculos ainda tensos da luta e do estresse.
– Eros.
Chamei por ele, mas ele pareceu nem me ouvir.
– Sabe, uma vez tinha uma multidão de fãs loucos do lado de fora do hotel e eu perdi meu voo por ter ficado sem conseguir sair do prédio...
Ele ria e ao mesmo tempo parecia estar preso dentro daquela máscara feliz que ele mesmo colocava.
– Eros...
Chamei mais uma vez me aproximando dele.
– Sabe quanto que custa encher um tanque de combustível de um avião? Quase sete dígitos! Eu fiquei puto da vida naquele dia...
Falando sem parar, ele só percebeu que eu o chamava quando eu toquei em seu braço e ele se contraiu em reflexo.
Acho que tanto eu quanto ele tínhamos a mesma mania de nos perder demais em pensamentos.
– Quer beber comigo?
Perguntei olhando nos olhos dele vendo aos poucos as bochechas sustentadas pelo sorriso falso relaxarem e os músculos de sua face voltarem ao seu estado normal.
Quem diria que ser deprimida ajudaria em algo? Pelo menos eu consigo fazer alguém aceitar a própria tristeza.
– Por favor.
Respondeu ele em um suspiro de alívio como se tivesse sido liberto de uma maldição.
[...]
– Posso fazer a pergunta do milhão?
Pedi servindo a ele mais uma dose de vodka a bebida que, entre todas, entramos em consenso de beber.
Ele, por sua vez, virou o copo sem pensar duas vezes.
Seu metabolismo era incrível, estávamos quase na metade da garrafa e ele não parecia nem mesmo alterado.
– Você quer saber do sequestro, não é?
Como se pudesse ler minha mente, ele sorriu servindo para mim a mesma dose no mesmo copo em que ele bebeu e eu também virei de uma vez só sentindo o álcool incinerar minha garganta e evaporar em meu estômago.
– Como você sabe?
Perguntei um tanto surpresa. Estava sendo tão óbvia assim?
Ele riu e chegou mais perto.
Estávamos sentados no carpete do quarto de hotel, aparados com as costas na cama, aliás.
– Todos querem. Uns como você são sinceros, outros jogam indiretas querendo se alimentar da dor alheia.
Amargurado, ele tomou mais um shot e eu sentia meu corpo ficar gradualmente mais quente por causa da bebida, mas ainda sim queria respostas.
– O que aconteceu lá, Eros?
Perguntei quase que exigindo dele uma resposta e vi a cabeça dele tombar para trás sobre o colchão macio daquele hotel cinco estrelas.
– Se eu contar você vai me dar o quê em troca?
Sorriu mais uma vez, aquela merda de sorriso cafajeste que não tinha como evitar. Bem, talvez eu estivesse equivocada e ele estivesse sim um pouco bêbado.
– O que você quer em troca?
Tudo bem, eu também estava bêbada. Bastante pelo visto, já que eu nunca faria um acordo desses sóbria.
Nem bêbada eu faria, mas talvez os remédios e a bebida não estivessem sendo uma boa dupla no meu organismo.
O sorriso dele cresceu, seus olhos verdes exploraram meu rosto e depois se voltaram para a garrafa entre nós.
– Quero dormir na cama maior...
Seu pedido foi uma grande quebra de expectativa, ouso dizer. Tão grande que me fez gargalhar.
– Só vai pedir-
Antes que eu pudesse terminar minha sentença ele finalizou a dele.
– ...com você.
E lá estava Eros de novo, seu olhar completamente hipnotizante, seu jeito meigo e ao mesmo tempo persuasivo de dizer aquelas coisas. Respirei fundo.
– Não me olhe desde jeito, eu tenho mãe e irmã, nunca tocaria em você sem permissão.
Disse ele em um tom de voz baixo e eu segurei um suspiro admirado.
Se ele estava fingindo ser esse cavalheiro todo que aparentava ser, então tragam um Oscar à esse homem!
– Por mim tudo bem, apenas responda a minha pergunta.
Me impedi de sorrir para ele, o que me salvou de ter meu sorriso fatalmente assassinado com sua próxima pergunta.
– Alguma vez na vida você já experimentou LSD, delegada?
Sua pergunta feita de maneira séria me fez recuar.
Narradora POV
[Dias atrás ao ser preso por Sophie]
O jovem lutador se remexia na cadeira inconformado por estar algemado por algo que ele nem mesmo fez, e também por saber que levaria a surra do ano de sua mãe.
– Gente eu vou na cafeteria, alguém quer alguma coisa?
Um dos policiais gritou de uma das mesas e um punhado de outros policiais celebrou com aquilo como se estivessem dando doces à crianças.
Eros revirou os olhos.
É para isso que servem meus impostos?
Pensou irritadiço.
– Okay, alguém sabe se a delegada vai querer alguma coisa?
O mesmo policial perguntou e Eros pareceu prestar mais atenção agora que aquela delegada que o prendeu estava sendo citada.
– Normalmente ela pede expresso duplo sem açúcar nem adoçante. Só puro e forte.
Disse um dos assistentes e isso ecoou pela mente do lutador.
Puro e forte, uh?