Acordei com a boca seca e a cabeça cheia de barulho. Não era ressaca não — era só preguiça mesmo. O despertador tocando no celular e eu ignorando pela terceira vez. Já tinha até decorado aquela música chata. Levantei na má vontade, olhei pro espelho e soltei um sorriso torto.
Bonito pra desgraça.
O problema de ser eu é esse: sempre fui bonito demais pra levar a vida a sério.
Joguei água na cara, ajeitei o cabelo do jeito que eu gosto, aquele topetinho meio bagunçado que faz as menina suspirar, e fui pro armário pegar a camisa da escola. Nem fechei tudo. Primeiro botão aberto, tatuagem aparecendo, corrente no pescoço brilhando no claro do quarto.
Chamativo? Talvez. Mas fazer o quê? O mundo é dos ousados, parça.
Peguei a chave da moto e saí. Moto barulhenta, escapamento estalando, nem era pra eu tá andando com aquilo ainda — nem carteira eu tinha — mas ninguém no morro vai parar pra implicar comigo. Sou o Herus, vulgo Cachorrão, afilhado do Falcão. Filho do Fabão, sobrinho postiço do crime, cria respeitada.
Meu pai e minha mãe? Dois amores, de verdade. Maju é minha coroa guerreira, mulher batalhadora. Meu pai então… não preciso nem falar. Mas meu padrinho… meu padrinho, parceiro… Falcão sempre foi meu espelho. Ele é quem eu quero ser. Quem manda na parada, quem resolve, quem impõe respeito só de olhar.
Mas tem um detalhe que me tira do sério: o Zé Vicente.
O certo era eu e ele ser irmão. Crescemos juntos, brincamos de bolinha de gude na mesma laje, tomamos banho de mangueira nos mesmos barracos. Mas desde moleque ele sempre foi marrento, estudioso, certinho demais. Eu era o bagunceiro. Ele queria livro, eu queria rolê. Ele queria Direito, eu queria ser dono do morro.
Duas cabeças grandes demais pra caber na mesma favela.
E a treta estourou de vez ano passado. Garota bonita, moradora aqui, tava me olhando. Eu não ia negar fogo, né? Peguei mesmo. Sabia que ele tava com ela, mas foi mais forte que eu. Só que hoje? Hoje eu até tento segurar a marra. Tento. Mas o cara força. Se faz de santo e fica me olhando como se fosse juiz e eu o réu. Palhaçada.
Enfim. Desci o beco devagar, a moto roncando baixinho, só pra não chamar atenção. E já cheguei na ladeira onde o pessoal se encontra antes de ir pra escola.
E quem vem descendo? Sophia.
Linda, eu não vou mentir. A garota puxou a mãe, e a Melissa minha madrinha sempre foi uma mulher bonita. Mas a Sophia… sei lá. Eu olho pra ela e vejo a mesma menina que brincava de boneca na varanda da minha casa. Acho bonitinha, claro, mas é tipo irmã mais nova. Não rola essas fita de desejo, não. Muito nova pra mim. Muito certinha. Muito protegida. Gosto de mulher que sabe que vai quebrar a cara e ainda assim se joga.
Mas provocação é outra história.
Quando vi o shorts curto dela descendo a rua, não resisti:
— Princesa Meyer — soltei com aquele sorrisinho canalha.
Não era nem pra deixar ela sem graça de verdade, era só pra provocar o Zé. Ele odeia que eu chame ela assim. E eu adoro ver ele espumar.
Mas o que eu não esperava era a chegada da loirinha logo em seguida.
Milena.
Essa aí é perigo real. Gata demais. Olho claro, boca carnuda, jeito de quem não pede desculpa nem por atropelar um velho. E ainda por cima com a ousadia de piscar pra mim e soltar um “Oi, gato!” do nada.
Mano…
Se fosse pra escolher uma treta hoje, ia ser essa.
Só que eu vi o olhar do Vicente vindo logo atrás. Cruzou comigo de novo, já bufando.
— Fica longe da minha irmã, Cachorrão — falou baixo, tenso.
Eu sorri. Ajeitei minha corrente devagar, só pra deixar claro que eu tava gostando da cena. Ele achando que ia me assustar. m*l sabe ele que eu gosto do perigo.
E não deu outra: m*l a Sophia e a Milena saíram, ele me puxou pro beco como quem acha que vai resolver tudo no braço.
— É o seguinte, Herus. Tu encosta na minha irmã ou na Milena de novo e eu te arrebento.
Fala bonita. Discursinho bom de quem estudou Direito e acha que a vida é argumento.
Eu ri.
— Tá apaixonadinho, Zé? Tá ferrado, hein?
A loira ali não é do tipo que usa coleira, tá ligado? Tu não vai aguentar não
Empurrei ele de leve no peito e saí andando. Deixei ele lá sozinho, segurando a própria raiva. Eu sou ligeiro. Não vou dar o show que ele quer agora. Isso é guerra fria. Tem que saber jogar.
Mas uma coisa eu sei: o trono desse morro não vai ser dele. Pode ter diploma, pode ser filho do patrão, pode rezar pra todos os santos… mas quem conhece o povo, quem tem carisma, quem arrasta multidão… sou eu.
Ele é ordem. Eu sou o caos. Quem tu acha que o povo vai seguir?
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A escola foi só mais um desfile. Cheguei acelerando a moto na porta, entreguei o capacete pro vigia escondido, entrei com aquela confiança que incomoda os certinhos. Vi de longe as duas: Sophia e Milena.
A loirinha me olhou rápido e sorriu. E eu sorri de volta, só de leve, só pra deixar dúvida no ar.
Gosto de deixar rastro. Não sou desses de se explicar. Quem entendeu, entendeu.
A aula foi chata, como sempre. Professor falando de filosofia e eu rabiscando o caderno com ideias tortas sobre dinheiro, poder e fuga. Meu mundo é outro. Não quero diploma. Quero respeito.
Saindo dali, vi de longe a cena: o Zé chegando de moto, Milena parada conversando, risadinha daqui, troca de contato dali.
Ele não perde tempo. Também não perde pose.
Mas eu não me preocupo.
Quem tenta parecer muito bom moço sempre esconde um podre grande. E o dele? Eu vou descobrir.
Por enquanto, deixo ele brincar de irmão protetor e de namorado enrustido. Quero ver até onde ele aguenta sem explodir.
A guerra começou faz tempo. Só que ele não sabe que eu sou paciente.
E paciente, parceiro… vence no final.
Fim do jogo? Não.
Isso aqui nem começou ainda.
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