CAPÍTULO DOIS

2948 Words
Nelo me puxou e corremos pela avenida. Soldados começaram a atacar crianças e adolescentes na frente de todo mundo e matá-los. A sociedade reagia, sem entender o que acontecia. Alguns adultos civis tentavam proteger as crianças, mas morriam sem misericórdia Entramos numa rua que dividia a Barra da Vila dos Sapos. Vários soldados atacavam pessoas nas ruas e entravam nas casas, com gritarias e gemidos se sucedendo. Antes de chegarmos neles, Urnelo me arrastou para a viela a direita. Não o contestei e o segui. Outro grupo de soldados vinha em nossa direção numa concentração maior. Estes estavam ainda mais próximos de nós que na outra viela. Para piorar, ali só havia nós dois de civis vivos com um monte de homens armados nos olhando. Derrapamos sobre o chão, olhando apavorados para todas as direções. — Por ali! — Nelo gritou. Meu irmão me puxou para uma passagem ele que reparou ao nosso lado esquerdo e eu o segui obediente. — Ei, vocês. Parem! — um soldado gritou. Com apenas um olhar de meu irmão eu já sabia o que fazer. Mamãe sempre nos disse que se um soldado nos mandar parar, é para correr até sair sangue no lugar do suor. A subida era desgastante, mas ainda assim estávamos motivados a não parar até julgarmos estarmos seguros. Só que outro grupo de soldados virou uma esquina, cem metros distante de nós e paramos. Olhamos para trás e o grupo de soldados estava correndo em nossa direção. Um descendo e outro subindo, sem nenhuma outra viela para despistarmos eles. Estamos perdidos! Constatei, cansada e implorando por uma intervenção divina. — Por aqui — Urnelo disse, me puxando e me tirando dos pensamentos. — Não fizemos nada! — exclamei a eles, enquanto Urnelo me guiava até um prédio cinza amarelado ao nosso lado direito, tentando me fazer escalá-lo pelas pedras que ficavam expostas da construção. — Não fale com eles! — Urnelo exclamou, escalando logo atrás de mim. — Só suba. Um soldado colocou uma flecha no arco dele e apontou para Urnelo, enquanto se aproximava de nós, seguido de dezenas. Praticamente começamos a engatinhar sobre a parede, no desespero de sermos pegos. — Desçam! — ordenou ele, com descaso pelo nosso desespero. — Para! Para! — gritei, olhando para ele. — Não atira, eu desço. — Parei. — Não seja estúpida, garota — Urnelo me repreendeu. — Continue subindo. — Ele vai nos m***r — reclamei, voltando a subir e olhando para o soldado que cada vez mais ficava para baixo. — Ele não vai conseguir — Urnelo garantiu, e foi só ele calar a boca para o homem soltar a sua flecha. O objeto cortou o vento, dançando feito uma minhoca ao ser retirada da terra, se aproximando do meu irmão. Eu gritaria um longo “não”, se eu não visse rapidamente outra flecha rompendo o ar e acertando a flecha do soldado, quebrando-a no meio e a fazendo se chocar contra a parede bem ao lado de Urnelo. Olhei mais do que imediatamente de onde a flecha havia vindo e vi um anão troncudo, de barba e cabelo num tom entre o ruivo e o loiro, com um arco na mão. Semicerrei os olhos. Nunca havia visto um anão usando arco e flecha na vida. Urnelo me beliscou na batata da minha perna. — Um anão te salvou, seu i****a — comentei, irritada pelo beliscão dele enquanto continuava a subir. Olhei para baixo novamente a ponto de ver outra flecha viando em sua direção. Olhei para o anão e, com desespero o notei colocando uma flecha no arco para dispará-la. Mas não daria tempo. — Nelo! — gritei. A flecha acertou o peito de Urnelo. Ele ergueu a cabeça para mim. Seus olhos arregalados, transmitindo dor. Suas mãos soltaram das pedras e o vi despencar os cinco metros que subimos, caindo sobre uma carroça cheia de palha, com o peito já todo sangrando e a ponta da flecha apontando em seu peito. Meu coração cavalgou no meu peito conforme os meus olhos esbugalhavam ao vê-lo ali, com sangue brotando do peito, tingindo todo seu chemise bege. Aterrorizada, escalei o resto da parede mais do que rápido, com os lábios e o queixo tremendo, enquanto engolia um choro de pânico. Meus pés chegavam a escorregar nas pedras enquanto eu as subia rápido demais, amortecida de qualquer outro pensamento ou sentimento que senão a morte de Urnelo. Os olhos dele congelados, olhando para os meus. Seu pânico, sua dor, sua surpresa pela flecha o ter acertado. Logo cheguei ao topo e me debrucei sobre o teto ao ver uma flecha passando rente a minha cabeça. Deslizei minhas pernas a modo de ficarem escondidas também sobre o teto da laje de concreto acima daquele prédio de dois pavimentos. Eu tinha medo de me mexer e acabar sendo morta também; tinha medo de continuar parada e algo me acertar. Meus olhos se enxertavam de lágrimas que, contra a minha vontade, escorriam para os lados e molhavam o meu cabelo. Os gritos das pessoas tomaram mais vida nesse instante. Parecia que eu ouvia a cidade inteira gritar dali. Como se todos gritassem apontando suas vozes para mim. Levei a minha mão esquerda até a boca, tentando contê-la de tanto choro, mas fui tirada daquele momento ao ouvir a voz grossa do anão: — Corra, Alleumena! Por algum motivo desconhecido, me destravei daquela situação que me enterrei e reagi. Ele sabia o meu nome e eu nunca havia visto ele na minha vida. Mas ele salvou Urnelo da primeira flechada e derrubava alguns dos soldados enquanto eu subia. Contra mim ele não tinha como estar, então rolei mais para o lado, a modo de poder ficar em pé sem que ninguém lá de baixo pudesse me avistar e corri sobre a laje daquele prédio estreito, mas comprido, que tomava quase toda a quadra. Meus pés frearam no limite do prédio. Dali avistei soldados matando outras crianças e adolescentes em outra rua. Uma minoria lutava em vão. Por que estão fazendo isso? Dali de cima eu via quase toda a cidade, pelo menos toda a que estava abaixo dos meus pés e que não tinha um prédio maior para tampar a minha visão. O castelo de areia, como era chamado, por ter sido feito com areia queimada por fogo de dragão, dando-lhe uma aparência e textura de vidro bege, estava a mais de três quilômetros dali, mas ainda longe eu o avistava, já que belo e brilhando com o raio do sol vermelho, ele era gigantesco. O céu estava no seu azul mais claro e radiante. Nem parecia saber que era um dia infeliz em Nestta. Calculei a distância entre os prédios e dei alguns passos para trás, acreditando que, motivada daquele tanto, eu poderia atravessar aquela viela num salto apenas. Voltei para trás, corri e ao chegar na ponta, sabendo que a minha vida dependia de conseguir aquilo ou não, eu pulei e voei, me chocando na beirada do prédio à frente, com o meu corpo sobre ele e as minhas pernas pendidas para fora. Uma dor parecida com a de dez socos irradiou a região do impacto da quina da parede nas minhas costelas. Recolhi minhas pernas imediatamente e engatinhei sobre o prédio. Tossi de dor algumas vezes e na última tossida interrompida pelo susto, um pouco de sangue amarelo escuro espirrou da minha boca. Minha barriga doía como se alguém tivesse triturado tudo lá dentro. — Ai, nãoo... — Gemi terminando a palavra. — Não, não, não, nãããoo. Curvei os braços sobre a laje daquele prédio, me deitei e fiquei de barriga para cima, esforçando para respirar, com um chiado assustador partindo de dentro de mim. Eu chorava de dor e de medo, com ambas as mãos sobre a minha barriga. Nem para fugir eu prestava. Burra! Burra! Burra! Ouvi a voz de mamãe me repreendendo. Sua garota burra! Tonta! Virei para o lado com uma onda de vômito emergindo. Todo meu vestido se melou do meu sangue griza. A dor aumentou e gemi alto, apertando de leve a barriga. Meus lábios se torceram num evidente choro e um soluço me doeu ainda mais a barriga. Outra onda de vômito ensanguentado saiu. Curvei o corpo sobre meu vômito e comecei a chorar. — Mamãe — sussurrei por ela, enquanto meus olhos se inundavam pelas minhas lágrimas. — Mamãe... — continuei falando e gemendo as palavras. — Estou morrendo, mamãe. Me ajude. — Respirei fundo, sentindo o chiado no peito pelo esforço. — Deuses, me deem forças para lutar contra aqueles que me querem m*l. Deve haver um motivo para aquele anão ter ajudado o Nelo e eu; e um motivo para eu estar viva enquanto todos estão morrendo nas mãos dos soldados. Então, por favor. — Fechei os olhos e as lágrimas me escaparam quentes pelo rosto. — Por favor! Me deem forças para reagir. Eu não posso morrer aqui. Isso me parece errado. — Levei a minha mão esquerda até a testa, tirando algumas mechas de cima do meu rosto. — Mas se a vontade do deus velho é que eu morra, deixe pelo menos que eu sabia o porquê. E como um voto de confiança de que os deuses me escutaram, ergui o meu tronco, sofrendo pontadas agudas de dor e me levantei do chão daquela laje. Fiquei com o corpo curvado, sem conseguir ficar ereta. Insisti que meu corpo aceitasse que eu ficasse em pé e reta e senti uma dor ainda mais intensa, mas consegui ficar quase que perfeitamente reta. Olhei em volta e suspirei. Pousei minha mão esquerda sobre a barriga e comecei a caminhar lentamente. Rodeei o prédio de um canto ao outro, verificando como eu poderia descer quando todo aquele alvoroço e selvageria lá em baixo acabasse, e não avistei modo algum que não fosse do mesmo jeito como subi ali. Com sorte o prédio era menor, já que a rua dali era mais alta. Então fiquei ali em cima, tentando manter a lucidez, caminhando de uma ponta a outra, enquanto o meu corpo enfraquecia, até que algum tempo depois os soldados saíram, deixando apenas corpos mutilados e furados, tingindo todas as ruas de vermelho. Algumas poucas pessoas gemiam e se contorciam no chão, beirando a morte. Desci quase caindo da parede, chorando e gemendo, enquanto pontadas intensas cegavam a minha vista e me deixava tonta no alto da parede. A descida durou o tempo mais seguro possível para eu descer naquela situação até que eu alcancei o chão e fui caminhando à espreita pelas ruas. Agora com o corpo ainda mais curvado que antes. Peguei um caminho diferente, já que me negava a ver Urnelo morto numa carroça. Ao chegar em casa, a porta estava arreganhada e me joguei de joelhos no chão ao ver a minha mãe no chão botando sangue para fora, enquanto deslizava lentamente pelo chão até o quarto, onde o silêncio me enchia de certeza o que encontraria se entrasse ali. — Mamãe — disse, com a voz falhada e esganiçada. Ela parou, virou a cabeça e olhou para mim. Esboçou um sorriso vermelho. Um verdadeiro desta vez, e se deslizou até onde eu estava, voltando o caminho que trilhava até então. Engatinhei pelo campo que nos distanciava, agora a dor aumentando e meu corpo desvanecendo. Quando nos alcançamos, a abracei. Mamãe não conseguia falar, tossia sangue ao tentar. Ela estava bem pior que eu. Ainda assim ela tentava me dizer algo. — Não precisa falar. — Peguei o dedo dela e o encostei no chão arenoso de casa. — Escreva. Mamãe levou sua mão até meu rosto e me acariciou ali. Outra corrente de lágrima desabou do meu olho e aqueceu sua mão. Seu olhar me dizia o quanto ela sentia muito por tudo. Ela me disse naqueles olhos que finalmente vi alguma coisa que não cansaço e ou os olhos de alguém que perdeu na vida. Ela suspirou e espirrou sangue vermelho de seu nariz no meu rosto, contrastando minha pele melada por meu sangue amarelo escuro, com o seu rubro. Ela tirou sua mão da minha e começou a escrever no chão, com o dedo da sua mão esquerda, me revelando o que estava acontecendo: Um amigo meu, que está te procurando, me disse que o rei Tirários Qatel morreu e que os soldados tiveram ordens do novo rei Biermoni Qatel para m***r todas as crianças, adolescentes e jovens dessa da cidade, acabando assim com os bastardos do antigo rei, para que ninguém tente roubar o trono dele. Mamãe apagava um grupo de palavras, com a mão aberta, para escrever sobre elas o restante, repetindo isso várias vezes. E o que isso tinha a ver comigo? Que culpa todos temos de o rei ter alguns bastardos espalhados por Nestta? Por fim, ela me olhou e vi seus olhos marejarem lágrimas. Mas apagou as últimas palavras que havia escrito e as substituiu por: Você é uma das bastardas do rei, Alle. Eu fui chamada para servi-lo na cama um ano após o meu falecido marido morrer num campo de batalha, e então engravidei de você. Mamãe tossiu, botando mais sangue pela boca, me forçando a desviar das palavras: “aí eu engravidei de você”. Desmanchei a minha expressão de espanto e pavor, substituindo por uma de desespero, por ver mamãe morrendo na minha frente. Não havia reparado antes, mas uma adaga estava cravada na lateral direita de seu tronco, um pouco abaixo da costela, com mais uma perfuração no seu peito do lado direito e outro um pouco acima do umbigo. Eu a abracei mais uma vez e senti o seu calor de mãe me inundar, como se eu roubasse o restante de sua energia vital. Chorei de soluçar sobre o ombro esquerdo dela. Eu sou filha do rei Tirários Qatel e o meu tio mandou que me matassem, assim como os outros sobrinhos dele. — Saia da cidade. Saia de Estarim — ouvi seu sussurro e quase não entendi. — Viva a sua vida longe disso tudo e esqueça o seu passado. Eu chorei, não tinha muito o que falar, mas após pensar um pouco, eu disse a ela: — Eu te amo, mamãe. Me desculpa por não ter sido uma filha melhor para te ajudar mais. Ela falou algo que não entendi desta vez, mas mamãe afagou o meu cabelo com carinho, me fazendo acreditar que ela tenha dito algo relacionado a me amar também, até que a sua mão despencou sobre o meu ombro e depois sobre as minhas pernas e o seu corpo pesou contra o meu. A segurei firme enquanto as lágrimas dos meus olhos seguiam seu caminho abertamente para fora de mim. Permaneci ali parada por muito tempo, segurando o corpo dela. Lutei contra a minha vontade de soltá-la. Quando consegui, a coloquei ao lado e me levantei depois com um pouco de dificuldade. Fui até o nosso quarto e vi sangue escorrendo de todas as camas. Derla ainda continuava na mesma posição que a deixei. Covardes! — Alleumena! — ouvi um grito familiar da porta, mas me escondi no quarto, olhei em volta e vi uma cesta de palha que colocávamos roupas sujas. Corri até ela, debruçada sobre meu braço que apertava a barriga, agora m*l conseguindo ficar em pé com as pernas fracas. Me escondi entre as roupas sujas na cesta e procurei nem respirar, porque do jeito que eu estava, a respiração chiava como murmúrios altos. — Alleumena! — ouvi outra vez o homem me chamando e me mantive paralisada. Cheguei a ver parte da figura dele vagando no quarto, entre as frestas, até que parou frente à cesta que eu estava e a destampou. Ele me olhou com aqueles olhos grandes e castanhos para mim. — Eu não vou te ferir, criança — ele afirmou ao me oferecer a sua mão grossa e pequena para me ajudar a ficar em pé. Continuei o encarando como um animal arisco, soltando agora a respiração que segurava. — Confie em mim, criança — ele pediu novamente. Hesitei, mas no fim estendi minha mão em sua direção. Estava morrendo de toda forma e não tinha mais pelo o quê viver. — Quem é você? — exigi saber já em pé, inclinada sobre a barriga dura que segurava com o braço. — Sou Muaido Esparréu — disse ao dar alguns passos para trás, me dando espaço para sair da cesta. Eu saí, enquanto o ouvia se explicar: — Você pode não me conhecer, mas treze anos atrás eu conduzi sua mãe até o quarto do rei, assim como fiz com centenas de outras mulheres durante todos os meus anos de serventia à casa Qatel. E hoje eu soube em primeira mão que o irmão do rei, após, acredito eu, matá-lo para ficar no trono, decretou que todos os bastardos do reino deveriam morrer. Dei um passo para trás e arquitetei o que eu faria se ele tentasse me machucar. — Como servo da casa Qatel você não deveria ajudar o novo rei a m***r os bastardos, em vez de salvá-los? — indaguei, analisando-o. Olhando para os corpos de meus irmãos, ele apregoou: — Biermoni não é filho do antigo rei. É a prole de uma traição da rainha com um servo já morto por ela mesmo. E mesmo se fosse um Qatel de verdade, eu não o ajudaria a exterminar pobres crianças. — Os olhos dele se encontraram com os meus. — Os meus irmãos e primos me ajudaram a salvar alguns dos filhos bastardos do rei Tirários e, acredito que com o tempo teremos força para destituir Biermoni e ascender o verdadeiro herdeiro do trono.
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