CAPÍTULO UM

2933 Words
Ainda era anticlaro quando mamãe chegou do serviço e me acordou para que eu a ajudasse a fazer o pão para os meus irmãos comerem antes de irem para seus serviços. Juntei meus olhos, cega pela claridade do lampião que ela carregava na mão. — Está tudo bem? — perguntei a ela, e mamãe me forçou um sorriso. Nunca a vi sorrindo de verdade, além de seus sorrisos por obrigação que ela nos dava. Tirei as grossas cobertas de cima do meu corpo e, com um vestido fino e rasgado, fui açoitada pelo frio, como se fossem lâminas que penetrassem em minha pele, me rasgando por fora e me congelando por dentro. Virei para trás e cobri a Derla, minha irmãzinha de três anos, com a minha parte da coberta e, do canto ela gemeu ao se ajeitar na cama ainda dormindo. Mamãe jogou sua capa em minhas costas e ela ficou sem, enquanto eu ajeitava a cama para que Derla dormisse melhor e não caísse, caso virasse sem que eu estivesse ali para pará-la. — Obrigada — agradeci e logo a segui. Juntas caminhamos até os fundos. Fiquei feliz ao ver que o fogo já queimava a lenha do fogão de barro no fundo de casa, enquanto eu ia até o pequeno cômodo, que era atrás do nosso quarto, pegar o trigo e os ingredientes. — Vai dormir, mamãe — eu pedi. — Eu cuido do resto. Ela gesticulou negativamente com a cabeça, ainda em silêncio, me obrigando a ter para ouvir apenas uma discussão entre dois bêbados, que acontecia na viela ao lado de casa. Ela esparramou um pouco de ** de trigo na mesa bamba de madeira que tínhamos, enquanto num prato oco de barro, também acima da mesa de madeira, eu misturava os ingredientes com ambas as mãos. A mesa gemia enquanto eu usava um pouco de força para misturar os ingredientes. Eu ficava olhando para a mamãe fazer sua parte do serviço bem séria. Ela parecia não ter língua a maior parte do tempo. Houve uma época que em não a ouvi falar durante três dias. Nelo e eu contamos. Mamãe arrancou o prato oco das minhas mãos sem eu perceber. Engoli saliva e olhei para ela. — Assim você vai acordar os seus irmãos! — exclamou, irritada, enquanto colocava o prato oco entre o seu braço direito e acima da cintura, um pouco de lado e, com o esquerdo, por ser canhota, assim como eu, mexia com a massa por uma colher longa de p*u. Despojei, sinceramente, da minha melhor expressão de arrependimento e tentei arrancar pedaços de massa da minha mão, para devolvê-lo ao prato oco. — Ela ainda está mole, Alle. Você tinha que ter colocado mais trigo! Acenei com a cabeça. — Desculpe, mamãe — sussurrei. — Da próxima vez eu não vou errar. Ela respirou fundo ao me olhar com raiva e com os lábios cerrados de desgosto e logo desviou o olhar frio de mim para a vasilha com o ** de trigo, que encheu a mão e despejou dentro do prato oco. Por baixo da capa, meus pés ardiam por estarem nus acima do chão gelado, e eu procurava colocar um sobre o outro e esfregar as pernas, enquanto olhava para a mamãe, esperando que ela me dissesse o que fazer a seguir. A respiração saía falhada e profunda, levando esse ar frio e ardido para dentro dos pulmões. Meu cabelo longo, liso e cinza, todo repicado e maltratado, me ajudava um pouco a amenizar o frio, mas não o suficiente. — Agora termine — ela pediu ao, do nada, me entregar o prato. — Eu vou dormir, Alle. Faça esse pão para os seus irmãos, por favor. E não acorde ninguém. Urnelo vai trabalhar daqui duas horas, não estrague o sono do seu irmão. — Não vou, mamãe — prometi, ao enfatizar com um balanço positivo de cabeça. — Quanto antes você aprender a fazer uma boa massa de pão, antes podemos começar nossos planos de vender eles na feira. — Ela suspirou, me olhando. — Alle, eu estou ficando velha. Não tenho muita coisa boa sobrando da beleza que eu tinha quando moça. Sei disso porque cada vez mais tenho perdido clientes na madrugada para moças mais novas que eu. Assenti com a cabeça, olhando para a massa do pão. Nelo disse que a mamãe não gostava de conversar sobre seu trabalho, ela queria apenas desabafar de vez em quando. Por isso eu precisava ficar quieta e apenas ouvir. Era o mínimo que podíamos fazer, ele me disse. — O Sr. Dompari disse que nunca vai me largar na mão e que sempre vou ter meu serviço na estalagem dele, mas as coisas não são como eram antes. Precisamos ter proventos de outra forma para nos manter alimentadas e pagando os impostos da cidade pra mantermos o teto sobre a cabeça. Ergui a visão e armei um sorriso rápido no meu rosto. Assenti duas leves vezes com a cabeça e a percebi forçar um sorriso cansado para mim, ao sair de perto. — Me desculpe por eu ser tão burra. — Minhas palavras doeram ao saírem abertamente. — Eu vou aprender a fazer pão direito, mamãe. Eu juro. Ela não disse nada, tudo o que ouvi foi um som sutil dela se deitando na cama. Suspirei, olhando em volta. *** *** *** No raiar do dia eu acordei com Derla me chutando, enquanto gemia e se agitava na cama. Levantei o tronco, ainda com os olhos inchados de sono e a segurei, enquanto tentava falar o mais baixo possível para não acordar mamãe: — Derla, acorde. — Mas ela não acordava, então puxei seu cabelo da nuca e ela despertou num grito. Olhei para todas as direções e vi Neau, todo magricelo e pequeno, mostrando sua cabeça da sua cama que ficava em cima da cama de Urnelo. O cômodo era pequeno e as camas eram feitas com galhos grosso de árvores, uma sobre a outra, tendo três colunas de camas espalhadas no quarto. — O que foi aí, guria? — ele me questionou. Seu cabelo engrenhado e loiro sujo estava grande, dando um volume exorbitante naquela cabeça pequena. — Nada que seja da sua conta! — exclamei ao tirar os olhos dele e olhar na direção de mamãe. Ela me encarava, acordada, num silêncio e reprovação. Fiz uma expressão de quem estava encrencada, ao explicar: — Derla estava gemendo e se debatendo. — Pelo amor aos Três! Tenta não fazer mais barulho, Alle — ela respondeu ao se virar para o outro lado. Voltei a olhar para Derla, mas ela já estava dormindo outra vez. Cerrei o maxilar, me levantei da cama e fui até Urnelo, que comia sentado à mesa, junto à Nola, minha irmã cinco anos mais nova que eu. Urnelo tinha dezessete anos, de cabelo longo, no meio das costas, sempre preso por uma tira de pano preto, num liso ondulado e castanho escuro, de feições bonitas e um pouco de sardas no rosto. Ele era alto e magro, mas não tão magro, tinha alguns músculos do excessivo trabalho diário que era o de carregar pesos para uma mercearia da cidade. — Está h******l! — Nola exclamou ao levar uma mecha de seu cabelo longo, n***o e cacheado para trás. — Fale baixo! — Urnelo puxou o cabelo dela com força, forçando ela a ter uma expressão engraçada de dor, mostrando as presas e fechando os olhos. — Não está tão r**m assim — ele acrescentou. — Só faltou um pouco de sal. — Desculpa — pedi, ao me sentar de frente a ele e Nola. — Eu misturei todos os ingredientes, a mamãe só acrescentou no final um pouco de trigo. — Não precisa se desculpar, Alle. Não está de todo r**m — ele argumentou, brotando um sorriso no rosto. — Você vai ir até a mercearia comigo para ver se a esposa do Ferdinaldo te pega para ajudá-la a costurar? — Nelo, eu consigo ganhar mais dos roubos do que ganharei trabalhando para ela. — Dos roubos você pode perder uma das mãos, se for pega. Nela você pode perder só o serviço, se não fizer direito — o meu irmão explicou, levando um pedaço de pão até a boca e segurando um copo de barro cheio de água com a outra. — Perderia o serviço e depois uma das mãos, pois voltaria a roubar e estaria enferrujada nos meus truques de rua — retruquei. — Assim perderia duas coisas. Ele se levantou. Nunca teve paciência para discutir. — Você vem ou não? — Arrumou a sua camisa de algodão amarelada, colocando-a por baixo da calça de brim marrom escuro. — Ela está com medo — Nola comentou. — Cala a boca, cabelo de sabugo de milho queimado! — exclamei. Nola semicerrou seus olhos ao me encarar. Queria brigar, como sempre. — Você já está passando da hora de desenvolver prendas, Alle. Você tem treze anos e só sabe fazer pão sem sal, bolo solado, — Urnelo comentou, rindo. Eu olhei f**o para ele — e torrar as carnes. Meninas da sua idade já estão se casando. — E quem é que vai casar com ela, com esse cabelo de velha? — Nola me perturbou e joguei na cara dela, com força, um disco de pão, para não acabar jogando na cara de Urnelo. — Guria, eu vou... — Alleumena e Nola, abaixa o tom da porcaria dessa conversa! — mamãe gritou do quarto, interrompendo Nola de pular para cima de mim. Ficamos caladas, comigo sobressaindo Nola. Ela me apontou o seu dedo, pensando estar me intimando. — Vamos, Nelo — eu anunciei ao olhar para Urnelo e me pôr de pé. — Vou ensinar essa mulher com quantos metros de linha se faz um vestido. Fomos até o altar Dos Três, uni as mãos em sinal de oração e abaixei minha cabeça por três segundos. Peguei a vara de bambu de molho da pequena jarra de água consagrada e passei o bambu molhado por sobre a fumaça da vela da p******o. Quando coloquei o bambu de volta ao lugar. Nelo fez o mesmo. Quando meu irmão abriu a porta e passamos por ela, vi um grupo de soldados descendo a subida da viela em que morávamos. Apertei os olhos aos direcioná-los preocupados a Urnelo. — O que os soldados reais fazem em Canto Escuro? Quase nunca avistávamos um soldado sequer ali no bairro, quem diria um grupo grande deles. Urnelo mexeu com os ombros. Encaramos os soldados e eles nos encaravam de volta. — Será que outro louco planejou invadir o palácio do rei e os soldados descobriram? — indaguei. Urnelo encolheu os ombros e os soltou. — Eu não faço ideia, só sei que não vou ficar aqui parado para descobrir. — Ele pegou no meu pulso e me puxou pelo braço. — Vamos. Viramos numa ruela. Apenas alguns civis caminhavam por ali. Sem sinal de soldados. Levou vários minutos para sairmos do Canto Escuro. Na Vila dos Sapos, que era o bairro logo ao lado, caminho à passagem principal da cidade, vimos uma concentração igual de soldados que no nosso bairro. — Seja lá o que fizeram ou que planejaram fazer, foi o suficiente para alertar o castelo — Nelo comentou. — Ele puxou meu pulso novamente. — Não vamos para a passagem principal por aqui. Vamos pelo Porto ou pela Barra. — Pela Barra é mais perto — respondi. — Eles estão nos bairros mais pobres. A Barra não é um bairro rico — ele retrucou. — Mas é o mais perto de rico desse lado da cidade — garanti. — Vamos pela Barra. Puxei ele numa viela à direita e seguimos. Soldados estavam em todos os lugares. Eles encaravam tudo e todos. Aquilo me agoniava. Tinha alguma coisa ali. Eu nem sabia que a cidade tinha tantos soldados assim. À esquerda de Nelo passou um rapaz com a bolsa de couro com o tampo desamarrado e um colar de um relógio de sol pendendo por um dos compartimentos da bolsa. Engoli em seco e olhei em volta. Soldados nos olhavam de um lugar ao outro. Apertei o punho e junto o maxilar. Eu sabia exatamente qual relógio de sol era aquele só pela corrente. Eu conseguiria comprar o trigo do pão da metade do mês com aquele relógio. Hesitei de prosseguir com mais um passo e fiquei para trás de Nelo. Quando fui me direcionando ao rapaz que se aproximava, meu irmão se virou e puxou minha mão e me colocou ao seu lado novamente. — Olha o tanto de soldados! — Era um relógio de Rawper. Dura uma hora a mais que o necessário, na sombra. Sabe quantos vale com o Sr. Pocibro? — Menos que sua vida! — ele resmungou agitando meu pulso. Puxei meu braço de sua mão, suspirei e olhei em volta. Saímos dali e atravessamos a Barra. Não importava o bairro em que fôssemos que a mesma concentração de soldados estava lá. — Acho que estamos longe demais de casa para voltar e tirar todo mundo da cidade, né? — perguntei para Nelo. Ele não respondeu. Distraído, Nelo apenas assentiu com a cabeça sem olhar para mim. Ele virou à esquerda e eu o puxei pelo braço para não irmos naquela direção. — O que foi? — Ele olhou em volta. Estava em alerta. — Nada. — Agitei a cabeça em sentido negativo. — Só não podemos ir por essa rua. Vamos passar na frente daquela padaria do povo com cara de porco. Comprei uma rosca para Nola lá e só dei metade do valor e falei que voltaria depois para pagar o restante. Ele me puxou pelo braço, determinado, e entramos na rua que pedi para não entrarmos. — Eu pago o que falta. — Não precisa — resmunguei. — Alle, não podemos ficar endividado por mesquinharias com o comércio. Quando realmente precisarmos, não teremos créditos para comprar. — Foi só uma rosquinha. E eu realmente não tinha o restante para pagar. — Mas eu tenho. Caminhamos até lá. O filho mais velho do dono da padaria atendia os clientes, distraído pelo movimento dos soldados, assim como qualquer outra pessoa. Quando ele passou os olhos em mim, um calombo entre suas sobrancelhas cresceu e ele me apontou seu dedo gordo. — Você! — Ele já foi gritando. — Você comprou de novo aqui e só pagou a metade. Quando olhei para o lado, peguei o Nelo me encarando. m***a! — Eu comprei duas vezes pela met... — Três! — o menino gritou. Ele deveria ter a minha idade. Se ele fosse mais velho não era muito. — Comprou quando eu estava sozinho, depois com minha mãe e por último com meu pai. — E como sabe que foi eu nas três vezes? — protestei. — Griza, alta e magra — ele descreveu a cliente —; do cabelo cheio, longo, desgrenhado e m*l cortado; das roupas de trapos e... — Acho que vocês estão quites agora, porquinho do mato — Nelo respondeu, cerrando o maxilar e apertando sua bolsa de moedas no punho, com a pele branca pela força. Aparentemente ele já não tinha mais interesse em pagar por meus delitos. O menino apontou para nós. — Soldados, peguem aqueles ladrões. Pegue a griza primeiro. Ela é lisa. Olhei preocupada em volta, mas soldado algum dava ouvidos para o que o moleque dizia. Procurei não correr e nem transparecer que era eu a quem ele falava, embora eu fosse a única griza ali na rua e quase a única daquele lado da cidade. Fomos reto por mais dois minutos e alcançamos a passagem principal de Nestta. Tinham ainda mais soldados ali que nos bairros. O que estava acontecendo com a cidade? Tinha algum torneio onde todos os soldados de todas as cidades de Estarim estavam na capital, vestidos com o brasão dali? — Hoje é um bom dia para faltar ao serviço — resmunguei para meu irmão. Ele me olhou, enfurecido. Já estava irritado comigo para continuar ouvindo minha voz. — O que espera que eu faça com uma irmã pequena com fome, olhando um monte de outras crianças comendo e ela com o estômago vazio? — Nola não é pequena! — Nelo resmungou. — Ela pode ser a terceira filha mais velha de mamãe, Urnelo, mas Nola ainda é uma criança com vontades de crianças. Eu perdi minha infância para nenhum deles precisar fazer o mesmo. — Você não foi a única. — Perdemos os dois. Eu sei. Mas não é porque perdemos que eles devam perder também. Ele atravessou a avenida e fui logo atrás. Ele entrou numa viela e o sino do castelo de areia tocou três vezes e parou de abrupto. — Por que o sino está batendo agora? — Nelo perguntou para si próprio. — Que estranho. Só três vezes — comentei ao mesmo tempo que ele, num tom mais baixo. A cidade de mexeu nesse instante. Soltados invadiram casas e comércios. Os que não conseguiram rápido, foram chutando as portas até arrombarem. Nelo pegou no meu pulso e voltou. Corremos o mais parecido com andar possível e ameaçamos entrar na outra viela, mas o mesmo acontecia ali. E era pior. Dois soldados ergueram um menino desacompanhado, transparecendo ser tão pobre quando nós, o erguendo na parede e um deles cravou sua espada no peito do garoto. Meus olhos arregalaram e minha barriga revirou lá dentro. Vi o garoto golfando sangue pela boca. De repente gritos vinham de toda cidade e meu corpo todo arrepiou de medo.
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