A realização de um sonho. ( Cíntia)

1893 Words
■ SETE MESES DEPOIS DO ABORTO. " Não há como não amar, não importa como chegou . A maternidade é única. " Por: Cíntia. Há extamente seis meses atrás eu me sentia a escória da humanidade, a mulher mais inútil da face da Terra, a pobre coitada de útero fraco e desgastado. No entanto, hoje me sinto o ser mais feliz do universo inteiro. Eu teria a minha criança, finalmente ela viria para os meus braços carinhosos. Dois dias depois de eu ter passado por uma curetagem, Cesarini me revelou o que tinha dado início: um processo de adoção. Fiquei em êxtase, a ideia da adoção tinha há muito passado pela minha cabeça, mas eu tinha um enorme receio de que meu marido rejeitasse e declinasse. Portanto, calei-me e insisti com os procedimentos e tratamento para gerar um bebê nosso. Não é fácil para uma mulher no auge dos seus vinte e seis anos ver suas amigas se tornarem mães e a bendita cegonha não bater à sua porta. Pior ainda quando alguém lhe pergunta: "Não vai querer ter filhos? Olha, toda mulher precisa de um herdeiro para dar continuidade à linhagem sanguínea, ao sobrenome e à herança." Por muitas vezes me segurei para não chorar na frente dessas pessoas; em outros momentos, senti vontade de quebrar a fuça desses infelizes, sem filtro e nada comedidos em suas palavras. Eu sofri triplamente e muitas vezes calada. Sofri por ter um útero improdutivo, sofri pelo medo de meu companheiro me abandonar e procurar uma mulher fértil com útero saudável para gerar seus herdeiros, e sofri por me sentir inferior às outras mulheres que carregavam suas proles com tanta desenvoltura. Confesso que muitas vezes senti inveja ao ver muitas futuras mamães desfilando pelas ruas, exibindo seus barrigões cheios de vida na minha frente. Era como se escancarassem suas vitórias para que eu visse. Eu desejei tanto estar como elas, com seus pés inchados, corpos disformes, rostos redondos, e no entanto fiquei somente com a água na boca. Entendo perfeitamente que não é culpa delas eu ter um sistema reprodutivo deficiente. A única responsável é dona Anne, minha mãe. Quando eu tinha quinze anos, vivi uma paixão ardente com o meu colega de turma, Arthur. Ele era bolsista no Colégio Correia de Freitas, uma renomada instituição de ensino onde somente os filhos da elite carioca estudavam. Arthur era um rapaz de dezesseis anos, n***o, de olhos verdes e com um sorriso lindo. Acabei me entregando para ele. Foi tudo lindo e emocionante, até meus pais descobrirem e transformarem minha vida em um inferno. Tive que abrir mão da minha paixão e fui submetida a uma bateria de exames, onde descobriram minha gestação. Não esqueço a bofetada que levei da minha mãe e as duras palavras vociferadas por meu pai. Naquele dia, ao retornar para casa, dona Anne me fez tomar duas xícaras de uma bebida amarga, dizendo que era para acalmar meus nervos. No entanto, era uma infusão abortiva, e eu descobri da pior maneira. O feto que se desenvolvia dentro de mim foi arrancado covardemente de sua redoma de proteção. Meu pai não deixou barato o fato de Arthur ter tocado na herdeira dos Fletcher. O rapaz foi incriminado no artigo 33 da Lei 11.343/2006 (tráfico de drogas). Arthur foi detido, encaminhado para o presídio estadual e, depois de condenado, mesmo sendo inocente, foi enclausurado na penitenciária, onde veio a perder sua vida durante uma briga na cela em que foi confinado. Meus pais destruíram três vidas e causaram danos irreversíveis. Aos meus dezoito anos, abandonei o lar, cercado de espinhos, e alcei voo por conta própria. Comecei a trabalhar com minha tia Serafina, irmã do meu pai, fiz vestibular, passei e fui cursar administração, onde conheci Cesarini e o amor me flechou. _ Vamos, minha princesa, é a terceira vez que você troca de roupa. - a voz doce do homem que amo alcança meus ouvidos, trazendo-me de volta à realidade. Olho em sua direção e dou-lhe um sorriso. _ Estou nervosa, quero causar uma boa impressão na assistente social e no nosso filho. - seguro meus fios loiros no topo da cabeça - O que você acha, solto ou preso? - pergunto, olhando para meu reflexo no espelho. _ De qualquer jeito, vai ficar bonito. Agora vamos, chegar atrasados não vai ser de bom tom. - ele diz, abraçando-me por trás. _ Será que ele vai gostar de mim? - pergunto, aflita. _ Sendo ele ou ela, quem não gostaria de você, meu anjo de olhos azuis? Não fique com receios, apenas se deixe guiar por esse coração doce que você tem. - Cesarini diz, dando-me um beijo no rosto, o que conforta um pouco a minha falta de segurança. Ao chegarmos no lar de adoção Coração Valente, senti minhas pernas bambearem. Eu estava estremecida desde o momento em que atendi ao telefone da minha residência, onde me informaram que uma criança com o perfil compatível ao que meu esposo e eu indicamos estava nos aguardando para sermos apresentados. Meu coração deu um salto dentro do peito e, desde então, estou estremecida. Entramos de mãos dadas, Cesarini percebe meus dedos gélidos, a tensão presente em cada fibra que compõe o meu ser. Somos recepcionados pela representante da Vara da Infância e Juventude, a diretora do local e a assistente social. Fomos levados para o berçário, praticamente vazio, onde somente dois berços estavam ocupados. Uma energia diferente disparou em meu corpo quando olhei para um pequeno embrulhinho cor-de-rosa. "É ela, minha menina, minha filha!" - a certeza veio latente, dominante. Movida pela emoção, não pedi autorização e segui apressada para o pequeno berço, levei as mãos à boca sufocando um soluço. Todos pararam para olhar para mim. Mirei o rostinho delicado daquela pequena e meu coração explodiu de amor e ternura. Seus olhinhos escuros como a noite sem luar me fitaram, e então me afoguei neles. Eu me rendi, minha alma se rendeu aos encantos da pequenina. A conexão aconteceu forte, sublime, inexplicável, inenarrável, e eu soube que, de alguma forma, a vida estava confiando a mim aquele presente de Deus. Chorei balbuciando promessas para aquela menininha, promessas de dar-lhe todo o amor que tenho acumulado em mim, dar-lhe uma vida recheada de alegrias e segurança para tudo o que propunha fazer quando crescesse. Prometi ser seu porto seguro, colo quentinho para onde correr quando as coisas da vida a assustarem. Prometi ser seu anjo protetor a cada passo que desse e as mãos que iriam segurá-la quando seu corpo ameaçasse cair. Confessei que serei eu a recolher cada lágrima sua quando chorar, a escutar suas palavras de frustração quando o primeiro amor a magoar, que serei eu a sorrir e a chorar junto com ela por cada momento bom e r**m da sua vida. Me declarei de peito aberto e alma reluzindo, minhas mãos coçando de vontade de pegá-la e sentir seu cheiro, para guardar para sempre no fundo da minha memória a essência que exala do corpinho miúdo da minha filha. Olhei para o meu esposo, que tinha suas "safiras azuis" orvalhadas. Ele se continha, e eu não estava conseguindo fazer o mesmo. Até que a diretora do local manifestou-se, e eu fui forçada a me recompor. _ Senhor e Senhora Moraes, a criança que tenho para apresentar-lhes não é essa e sim outra. - ela aponta para o segundo bebê que dorme alheio a tudo que ocorre à sua volta - É aquele. - completa. Meus olhos fitam o pequeno pacotinho envolvido numa manta de cor verde. _ A mãe deste menino optou por dispô-lo para adoção, ela alegou não ter condições para criá-lo, tem seis filhos e esse seria o sétimo. - falou com o semblante carregado, como se lamentasse a triste situação da mãe biológica do pequeno. _ Não entendo. Por qual razão a menina não foi colocada como uma das possibilidades para nós? - Cesarini assumiu a postura dura de CEO de grande envergadura que tem. As mulheres se entreolharam e nos convidaram para termos uma conversa particular no escritório do local. Assim que atravessamos a porta dupla de madeira maciça, fomos convidados a sentar. Eu aceitei, meu corpo estava totalmente trêmulo com a possibilidade de não poder levar a minha menina para seu novo lar. Meu corpo porejava de nervoso. Meu marido, por sua vez, fica de pé com suas mãos depositadas em meus ombros. _ Bom, senhores Moraes, a razão pela qual os trouxe para um local reservado é para deixá-los cientes da situação em si. Aquela menina foi achada há três dias por um morador de rua, dentro de uma caixa de papelão na calçada perto do parque Passeio Público. Não consigo esconder uma expressão verbal de puro horror. "Como podem existir seres humanos que descartam seus filhos como se fossem lixos imprestáveis? Como pode o coração humano ter esfriado tanto?" - indago em meu íntimo. _ É, senhora Moraes, nós sabemos de cada caso que nos deixa estarrecidos. - A senhora responsável pelo orfanato se manifesta. _ A menina ser encontrada na rua, não me parece ser um impedimento para podermos adotá-la - meu marido diz sisudo. _ Ouh, claro que não, senhor. No entanto, sua condição sanguínea é. A bebê é portadora do sangue dourado - fala a senhora pertencente à Vara da Infância. Olho para Cesarini sem entender "bulhufas" do que aquilo quer dizer. A menina seria portadora de alguma doença genética ou adquirida durante a gestação? _ Cesari? - chamei, ouvindo minha voz falhar. Meu marido deu um leve aperto em meus ombros e um esgar de um sorriso sombreou seu rosto. _ Queremos adotar a pequena, seu tipo sanguíneo raro não nos é um problema. - meu marido manifestou-se confiante e seguro. "Então é isso? Um sangue raro? Mas o quão raro é?" - perguntei para mim mesma. Na verdade, nunca tinha ouvido falar em sangue dourado, essa é a primeira vez. Minha mãe que enchia meus ouvidos com a tal história de sangue azul, pertencente à linhagem dos nobres e outras baboseiras. _ Nós temos por dever vos alertar, o sangue dourado um tipo de sangue cujo Rh é nulo, ou seja, os glóbulos vermelhos não possuem nenhum tipo de antígeno Rh. Tal tipo de sangue foi detectado pela primeira vez em 1961 em uma mulher australiana e desde então só foram registrados 44 casos de pessoas com Rh nulo no mundo todo. No Brasil, há conhecimento de pelo menos dois casos, segundo dados do Ministério da Saúde. Sendo assim, qualquer problema de saúde que esta criança possa apresentar no futuro e que necessite de doação sanguínea será um transtorno para vocês, e queremos evitar qualquer tipo de consternação. Me levantei, fervendo de raiva e indignação. _ Eu quero adotar aquela bebezinha. A escolha é do meu marido e minha, ter sangue raro só mostra o quanto especial aquela pequena é.- sou verdadeira. _ A decisão é do casal; nós apenas nos vimos na posição de alertá-los. Depois de tanta falação, eu pude finalmente retornar ao berçário e pegar minha filha no colo. Senti uma mistura de sentimentos mais louca do que já fui alvo. Ouvir seus chorinhos baixos, sentir seu peso diminuto em meu colo, fez nascer em mim um instinto de proteção abrasador. "Minha filha, para amar e proteger." - a frase solta ecoou dentro de mim.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD