Capítulo 03

4879 Words
— Ahhh, você chegou! Eu parei no ato de destrancar a porta do meu apartamento e me virei para o final do corredor, onde uma figura esguia e de cabelos rosas num estilo Black Power estava parada, sorrindo para mim. A minha cabeça estava tão cheia de problemas e preocupações, que por um momento não reconheci a pessoa que me chamava, e isso a deixou com uma expressão levemente aborrecida no rosto delicado e coberto de maquiagem brilhante. — Boa noite, Pink — falei para ela, abrindo um sorriso cansado enquanto desmontava o coque em meus cabelos. Eu guardei a rendinha junto com o prendedor de cabelos dentro da mochila, e tornei a ajeitá-la nos ombros. Pink me observou em silêncio, com sobrancelhas arqueadas. — É impressão minha ou você estava me esperando chegar a um bom tempo? — Mas é claro que eu estava esperando. Você esqueceu que iríamos jantar juntas hoje? Sim, eu me esqueci completamente. Mas não pude dizer. De todas as pessoas no mundo, Pink Summer — o nome artístico que usava para suas apresentações — era a única que conseguia tirar o melhor de mim sem esforço. Era uma amiga, quase irmã, que a vida me deu quando me mudei para aquele complexo de apartamentos. Uma mulher brilhante e formada em jornalismo que trabalhava como Drag Queen nas horas vagas e que já havia passado muitos perrengues na vida. Naquela noite provavelmente havia acabado de sair de alguma apresentação artística, e continuava se equilibrando num salto de 15cm. Com dois empregos nas costas e um sorriso contínuo no rosto, Pink era a minha inspiração, embora não soubesse. Seu verdadeiro nome era Bianca Goulart, e ela sempre assumia uma personalidade completamente diferente quando estava em seu local de trabalho. Como jornalista, Bianca sempre demonstrava muito conhecimento nas áreas políticas, e facilmente julgava uma pessoa pelo último voto das eleições passadas. Ela ficou três meses sem falar comigo ao descobrir que eu tinha votado em branco para a eleição do presidente, e disse que a culpa do país estar decaindo numa crise, era pelo voto que dei de mão beijada para o candidato que estava ganhando, e que agora realmente gerenciava todo o país. Eu não entendia de política e nem queria entender, porque quando entrava em qualquer discussão sobre aquilo, tinha a impressão de que Bianca se materializava do nada para poder debater de maneira cadenciada ao que o outro dizia. Os nossos interesses em comum eram apenas o amor pela literatura e o sonho que eu tinha de trabalhar na mesma editora que ela, embora tenha recusado estagiar no local, porque a minha meta relacionada a editoras era muito maior do que apenas um estágio de meio-período. — O que você fez para a janta? — Perguntei, virando a mochila de lado para aliviar o peso, conforme entrava em seu apartamento. — Espero que não seja strogonoff, você sabe que eu detesto aquela coisa. Rindo da minha cara de nojo ao lembrar todas as péssimas experiências que tive ao comer strogonoff — razão pela qual eu odiava o prato —, Bianca se encostou na porta para me deixar passar, e eu me esgueirei contra a parede, arrastando de leve a mochila sobre os inúmeros quadros e retratos nas paredes do corredor principal de sua casa. Aquele complexo de apartamentos era basicamente projetado da mesma forma. Abríamos a porta, e então havia o corredor, cuja primeira porta direcionava para uma sala, e a próxima para um quarto, e diante dele estava o banheiro. Por fim, nos fundos, havia a cozinha e a área de serviço. Todas as janelas eram direcionadas para o sol, de modo que alguns sempre o viam nascer, e os sempre viam o seu pôr. Só que Bianca encontrou uma maneira de tornar a sua casa mais receptiva e diferenciada do que todas. Eu tinha quase certeza de que ela era a única em todo o prédio que acendia incensos atrás da porta, porque eu acredito que o cheiro forte seria sentido até mesmo da calçada se todo mundo fizesse igual. — Fiz minha famosa vaca atolada! — Disse ela, gesticulando com as mãos. — Vai, deixa a mochila em qualquer canto. Você já é de casa. E eu realmente era. Sabia perfeitamente que o seu apartamento era cheio de plantas e que o delicioso e pungente cheiro de incenso impregnava as paredes do familiar tom de gelo. Sabia também que cada mesinha, cada prateleira, ou qualquer objeto que pudesse servir de apoio, havia cristais e pedras energéticas ou velas coloridas em nomes de orixás ou santos. Bianca tinha sua religião, e eu tinha a minha, mas nunca deixamos que isso nos abalasse de alguma forma. Enquanto eu dizia que estava colocando-a em minhas orações diárias, ela dizia que estava pedindo ao seu exu para me proteger, eu considerava isso uma troca justa, então apenas agradecia pela prot€ção. Às vezes, quando eu a surpreendia com alguma visita, ela estava ouvindo canções ligadas a Umbanda, e eu nunca me incomodava ao notar a letra. Houve um dia em que ela estava escutando uma canção sobre uma Divindade chamada Maria Mulambo. Basicamente, o cantor dizia sobre uma mulher que foi condenada a ser queimada viva, e que um padre se compadeceu e quis ajudar, mas ele também era pecador e os dois foram queimados juntos. Ao som do tambor, o cantor recitava: “Ele se juntou às cinzas e gargalhou à luz da lua, a mulher virou mulambo e o padre seu tranca-rua". E eu inconscientemente me balancei ao som dos tambores, sentindo que a canção de alguma forma tocava os meus conhecimentos mais primitivos sobre a religião. Eu sempre me senti atraída pela Umbanda, mas não sabia como é que podia haver uma introdução nesta religião, e não costumava fazer muitas pesquisas na internet sobre. Eu sempre fui o tipo de pessoa que ficava cismada com muita facilidade nas coisas. E, sempre criado por católicos fervorosos e que temiam até mesmo falar da morte, eu ainda tinha essa limitação de não querer buscar outras formas de reverenciar entidades. Embora Bianca estivesse sempre falando pelos cotovelos sobre a nova pedra energética que tinha recebido no que ela chamava de Terreiro. Nossa amizade começou da maneira mais inesperada e maluca possível. Eu tinha acabado de fazer a minha mudança. Não conhecia muito da região, porque tinha vindo de uma cidade grande e era demasiada desconfiada para saber lidar com a bondade e a falta de preocupação das pessoas do interior. Então Bianca surgiu em minha porta, de uma hora para outra, completamente caracterizada de Drag e segurando uma enorme travessa de torta holandesa. Ela não esperou convite para entrar, e começou a me dar várias informações sobre o prédio e seus habitantes. Bianca não reparou que eu não estava inicialmente tão animada em saber sobre a vizinha dos quinze gatos ou o síndico de costas curvadas, então ela continuou fofocando até finalmente chamar a minha atenção, e assim embarcamos em uma conversa. Todos os dias nas altas horas da noite, Bianca surgia em minha porta com uma tigela ou prato em mãos, e me trazia comida enquanto fofocava sobre o seu dia. Aos poucos, comecei a me abrir. Ela pediu informações sobre a minha família, e eu contei o máximo que conseguia dizer sem sentir minha voz embargar e as lágrimas começarem a subir. “É um assunto complicado demais, talvez eu fale em outra hora”. Mas eu jamais falei sobre, e ela jamais perguntou. Ela achava que meus pais e irmãos eram vivos, só não entendia muito bem como pude sair de casa e cortar os laços da melhor maneira possível. No entanto, a falta de familiares de sangue nunca me abalou. Eu rapidamente me tornei parte da vida e da família de Bianca. Então ela era a única família que me importava para passar o natal junto, ou para enviar mensagens de feliz aniversário. Porque minha verdadeira família, que consistia apenas em uma irmã que morava na cidade vizinha do interior, só lembrava da minha existência para pedir dinheiro. Aliás, naquele dia, eu estava bloqueada no w******p da minha irmã, e não recebia notícias dos meus dois sobrinhos desde o meu aniversário do ano passado, quando ela me mandou mensagem dizendo que não gostaria que eu a visitasse, porque ela não faria bolo algum para mim. É claro que a falta do bolo da minha irmã não me fazia falta alguma, ainda que ela trabalhasse como confeiteira e que seus bolos fossem maravilhosos. Porém, eu me ressentia de não ter um relacionamento amigável com a minha família. Porque muitas pessoas batiam o pé em dizer que o problema era que eu não me interessava o suficiente para ligar e perguntar trivialidades do dia-a-dia deles, e que era isso que dificultava a relação. Mas isso não era verdade. Eu não conseguia me lembrar algum dia em que eu e minha irmã tenhamos nos suportado, e nunca oferecemos apoio uma para a outra depois da tragédia ocorrida na família. A minha situação familiar era complicada, isso era tudo o que eu me permitia dizer, então eu passava boa parte da minha vida procurando pessoas que pudessem suprimir a falta que aquilo podia causar em minha vida. Talvez fosse por isso que meus relacionamentos no geral fossem tão complicados. Em relação aos namorados, eu queria que eles me dessem atenção em período integral, queria que cuidassem de mim, já que eu não podia este contato fraterno com ninguém. E aos amigos, eu estava sempre me questionando quanto tempo é que eles levariam para perceber que eu não era uma boa pessoa, e quando é que me abandonariam. Estas questões eu guardava em meu íntimo, é claro. No entanto, era o principal motivo para que eu não conseguisse manter uma relação verdadeira com alguém. Por mais que eu falasse o tempo todo em meu local de trabalho que o salário recebido não pagava a minha terapia pelo estresse, eu estava mentindo. Eu nunca havia feito terapia. Eu não confiava em médicos, psicólogos, psiquiatras, e nem hipnólogos. Todas as pessoas que me pareciam ter alguma capacidade de influenciar os meus pensamentos não era digno da minha confiança. Porque eu mesma não era digna da confiança de ninguém, embora interpretasse um papel muito bom para que ninguém percebesse este fato. — Como sua mãe está? — Perguntei em voz suave, sentando na cadeira diante do belíssimo prato que Bianca me serviu. Bianca suspirou, distraidamente coçando abaixo da sua peruca de cabelos crespos e enrolados. — Mamãe não toma jeito, Tammy. Ela é do grupo de risco mais afetado pelo vírus, mas vive enfiada na casa do namorado. Eu já avisei um milhão de vezes que enquanto ela não for vacinada com as duas doses, ela não pode sair andando por aí. Mas quando eu falo, parece que estou falando grego, ou ela simplesmente descobre uma capacidade de não absorver os meus conselhos, porque faz tudo ao contrário. O vapor da comida espiralou para o alto, espalhando um perfume de temperos fortes e picantes. O prato estava tão quente que o pano de mesa de plástico de Bianca até mesmo se grudou com o contato, e eu desisti da tarefa de trazer o prato para mais perto, e em vez disso arrastei a minha cadeira até não ter de esticar tanto o braço para trazer a comida até a boca. — Às vezes acho que quanto mais tentamos nos evitar para impedir a proliferação do vírus, pior é. — Argumentei, pescando um pedaço de carne e o aproximando da boca. O gosto era ainda mais forte e gostoso do que o cheiro, e eu senti meu estômago agradecendo pelo sabor que escorregava pela minha garganta. Eu suspirei ao engolir a comida, e Bianca balançou os ombros de modo pomposo, aceitando o elogio que eu apenas emiti com um murmúrio. — Você sabe, um dia pode ser que sua mãe não esteja mais aqui. Pode ser que ninguém mais esteja aqui. Temos que aproveitar o agora. Isso foi o que eu aprendi com essa pandemia infernal. Aproveitar o agora, porque amanhã tudo pode se acabar numa gripe. Bianca refletiu por um instante, depois abriu um sorriso largo, e ocupou a cadeira diante da minha. Notei que as panelas tinham sido recentemente desligadas, pela maneira com que nuvens repolhudas de fumaça se erguiam de cada lateral das tampas. Eu não era a única parte da família de Bianca que ela esperava até tarde para jantar, havia também o seu marido advogado que também trabalhou no mesmo escritório que eu, mas atuando em consultorias, de modo que agora ele estava empregado em outra empresa. Aliás, eu devia a ele aquela vaga de estagiária, já que antes de sair ele conseguiu mexer os pauzinhos para me colocar lá dentro. Por pior que ela fosse, ainda era uma grande ajuda para uma renda extra. Principalmente quando eu não podia contar muito em ter um salário completo, por cada desculpa esfarrapada que o supermercado encontrava para me descontar. Bianca me esperou comer um bom bocado de comida para voltar a falar. — 2020 está muito estranho mesmo. Até você começou a ser menos pessimista, Tamara — ela deu uma risadinha. — Eu não sou pessimista — resmunguei, apontando o garfo em sua direção. — Sou realista até demais. Eu realmente acho que essa doença se espalhou pelo mundo para mostrar que devemos ter mais empatia uns pelos outros. Que o emprego que mais desvalorizam e desdenham, é o essencial para todos viverem. Não me julgue por ter me tornado uma pessoa melhor. — Eu tenho uma teoria de que 2020 desandou porque você passou a virada de ano sozinha em casa, chorando e amaldiçoando todo mundo, Tamara. A culpa da pandemia foi a sua praga — ela caçoou, rindo ainda mais alto. Dei uma risada baixa. Um dos motivos para eu estar bem chateada e querer o máximo possível de distância da minha família era aquele fato. Eu havia passado a virada de ano sozinha, chorando. Tudo porque eu não tinha muitas expectativas de sair com amigos, porque eu gostava de beber, mas não como eles. Não conseguia beber durante uma noite inteira e ainda acordar cedo para trabalhar. Mesmo que o supermercado e o escritório não funcionassem no dia seguinte à virada, eu ainda trabalhava em pequenos projetos secretos em casa. E sempre preferia o sossego e o silêncio a ter de encontrar uma multidão de pessoas. Porém, antes que a minha relação ficasse ainda mais estranha com a minha irmã, ela me pediu para passar o ano novo em sua casa, e eu me organizei para isso. Tive até o trabalho de comprar um vestido branco apenas para a ocasião. Mas, como no meu aniversário — que era um mês antes do ano novo — nós tivemos uma briga, eu não sabia que estava automaticamente desconvidada para comemorar o ano novo. Somente percebi que não passaria com ninguém quando enviei uma mensagem para minha irmã e ela não respondeu, embora tenha feito questão de visualizar e postar foto com seu marido e filhos. Eu poderia ter sido uma baita i****a e ter aparecido lá do nada, até porque já estava pronta e tinha dispensado o convite dos meus amigos com a esperança de passar com a minha família de sangue. Porém, mais uma vez a minha irmã fez questão de me fazer criar expectativas de que algum dia seria digna de receber algum amor fraterno, e no final não fez mais do que me iludir. Então, Pink estava certa, eu passei mesmo a virada de 2019 criticando tudo e todos que tinham saído de suas casas para se reunir nas ruas e observar os fogos. E eu chorei a noite inteira, me afogando numa garrafa da sidra mais barata que veio em minha cesta de natal — fornecida pelo supermercado. Desse modo, eu não duvidava nada que todos os meus praguejos tenham surtido efeito suficiente para causar uma pandemia mundial. Porque no começo de janeiro tudo mudou. Uma nova realidade começou. Agora os varais das casas não continham apenas roupas molhadas, mas uma variedade de máscaras e luvas. As pessoas não gostavam mais de frequentar lugares fechados. E muitos estabelecimentos foram multados por não cumprirem as regras estabelecidas pelo ministério da saúde. A nova realidade era um castigo eterno para todos, mas não mudava em nada a minha realidade, e eu não me importava nem um pouco de não ter nenhum lugar para ir nas sextas à noite. Até porque não tinha tempo para sair nas sextas durante a noite. — Eu não duvido nada — comentei com um dar de ombros, observando Bianca abrir a geladeira e tirar uma garrafa de cerveja. — Minhas palavras tem poder! Minha amiga voltou a se aproximar, sorrindo com sagacidade. Os cílios postiços dela estavam começando a desgrudar dos seus originais, e ela estava com uma crise de piscadelas que estava me causando uma certa agonia, porque seus cílios eram do tamanho de asas de passarinhos — e eu não estou brincando — então eu estava evitando olhar nos seus olhos para não começar a piscar loucamente em reflexo do seu desconforto. Era óbvio que ela estava esperando pelo marido para começar a desfazer a sua montagem. — Você e a minha mãe poderiam sair mundo afora fazendo consultas de tarô e previsões de boa sorte. — Ponderou ela, tornando a se sentar. — Fariam sucesso. — Não... No meu caso, só as previsões de má sorte dão certo. Eu sou a prova viva — falei, revirando os olhos. — Me roubaram trezentos reais no meu trabalho hoje. Estou tão frustrada. Bianca encheu nossos copos com cerveja, e franziu o cenho de tal modo brusco que um dos cílios finalmente pendeu diante dos seus olhos e ela decidiu tirá-los. — E por que diabos te roubaram? — perguntou, puxando um lencinho umedecido que deixava estrategicamente em cima do armário da cozinha. — Parece que alguma operadora de caixa pegou três notas de cem falsas, e como eu fui a última a ter o caixa fechado no domingo passado, a culpa teria sido minha. Eu ainda tive que escutar eles dizendo que se tivesse acontecido ontem, na minha folga, eles saberiam que eu não era a culpada. Mas, como ontem não tiveram nenhum problema parecido, deduziram que só poderia ter sido causado por alguém que estava de folga. No caso, a escolhida de Jesus para enfrentar pragas todos os dias, eu. — Não faz o menor sentido — ela disse, exasperada, com o cenho ainda franzido. — Se você quiser, eu peço que o Guto veja se há alguma lei sobre isso. Eu não entendo muita coisa, mas ele é advogado. Pelo amor de Deus! Isso não existe. — O que não existe sou eu desempregada e sem ninguém para me ajudar — disparei com uma brutalidade sem motivo. — Não posso ir contra eles, Bianca. Eu dependo desse emprego. — Você tem a mim e o meu marido para te ajudar — ela disse, orgulhosa. — Se der algum problema sério, você pode vir morar com a gente. Ou nós dois podemos te ajudar com as contas. Eu posso ajudar você de qualquer maneira. Não vou deixar que passe por perrengues bem debaixo do meu nariz, ou melhor dizendo, do lado da minha porta. Eu não poderia ter me sentido mais comovida com as palavras dela. Bianca dizia para quem quisesse ouvir que nunca se aproximava de alguém que seus orixás não aprovavam. Que ela sempre sabia quem é que tramava por suas costas e estava sempre em alerta para evitar essas pessoas. Eu sabia que ela não tinha muitos amigos também, e que além da sua mãe e do seu marido, eu era a única que frequentava a sua casa. Então, era realmente muito significativo saber que as entidades da sua religião aprovavam a nossa aproximação, por mais que eu me sentisse desconfortável ao mentir para ela. Bianca não sabia de muitos pontos sobre a minha vida. Os poucos segredos que eu me permitia revelar, eram apenas compartilhados com ela, mas havia o pior sobre mim. Havia aquilo que eu escondia sob uma fachada de mulher independente e que se ocupa de tudo o que é possível para alcançar um sonho distante. Ninguém nunca reparou que na maior parte do tempo eu estava julgando as pessoas com o meu olhar, e me perguntando se realmente valia a pena manter uma amizade com elas. Estava aí o motivo para eu querer evitar tanto o encontro com médicos. Eu sabia que alguém mais especializado no assunto encontraria uma doença para dizer que eu tinha sem saber. Algo sério, talvez provocado durante o meu nascimento, ou adquirido em torno do lar abusivo no qual fui criada por dezoito anos. Eu evitava um diagnóstico verdadeiro porque eu sabia que existia alguma coisa errada. Eu sentia que o meu corpo não parecia digno da personalidade que havia por baixo. Eu podia enganar as pessoas com um sorriso largo, mas os meus olhos continham todas as dores e dúvidas que eu nutria pelas minhas próprias motivações de vida. Todo mundo tem um sonho, o meu sempre foi poder ser quem eu era de verdade. Mas eu sabia que a sociedade não aceitaria muito bem. Eu tinha quase certeza de que os meus amigos não se sentiriam confortáveis sabendo que o meu pior lado era a minha manipulação. Ninguém nunca percebeu que eu não abria a boca para falar sem querer jogar uma crítica no meio das palavras. Eu era uma agente do caos, e as pessoas ao meu redor jamais notaram isso. Eu tinha de me controlar o tempo todo, tanto para falar, quanto para agir, e ao meu redor, ninguém nunca desconfiou do lobo escondido na pele de cordeiro. — E eu agradeço muito, Bianca — respondi, por fim, abrindo um sorriso tímido para aliviar o peso das palavras. — Mas eu não saí de uma cidade grande para vir ao interior depender de alguém. Eu estou aqui por mim mesma. Para ser alguém na vida. Talvez um dia me mudar para a capital, ter um bom emprego, terminar minha faculdade, ou começar algo que eu realmente ame... Eu só queria que fosse mais fácil, sabe. As vezes cansa lutar tanto e continuar girando em círculos. Mas, assim que alguma oportunidade aparecer, eu vou agarrar com unhas e dentes. Qualquer chance que a vida me der de subir, eu vou com força total, e nada e nem ninguém vai me impedir de ser feliz. — Ei — ela pegou em minhas mãos com as suas, fazendo as longas unhas refletirem momentaneamente sob a luz do teto, e apertou firme nossos dedos, trazendo consolo. — Querendo ajuda ou não, eu estou aqui para os seus melhores e piores dias, e continuarei estando. Você não precisa de um emprego que suga as suas energias. Meus cristais até escureceram um pouco quando você entrou, de tanta energia negativa, Tammy. — Peça perdão aos seus orixás por mim, mas eu preciso mesmo de umas férias ou uma sessão de descarrego — falei com um trejeito de boca, embora meus lábios tenham se curvado. Bianca soltou meus dedos e se empertigou na cadeira, assumindo uma expressão empolgada e iluminada, daquele tipo que ela só exibia quando achava um oponente digno para falar m*l do presidente que ela apoiava. — Talvez minha mãe possa fazer uma consulta para você. Eu peço para ela fazer de graça. Acenei com a mão e balancei a cabeça em negação. — Não, Bianca. É brincadeira. Você sabe que eu sou meio maluca. Eu vou ficar cismada com as coisas que ela falar, ou vou ficar procurando respostas cada vez mais honestas e vou acabar me convertendo para a sua religião. Você sabe que eu sou uma perseguidora nata e eu não consigo parar de girar meu mundo em torno de algo até que esse algo me deixe satisfeita. É melhor não. Bianca cruzou os braços, dando de ombros. — Eu não estou brincando, Tammy. Sua vida vai ser totalmente diferente quando você tiver a sua primeira leitura de cartas. Você vai mudar essa negatividade dentro de você, eu juro. E esse seu lado de perseguidora também vai ficar um pouco de lado quando você entender que nada vale mais do que o seu amor próprio. — Tá bem... — murmurei com os lábios encrespados, agitando as mãos. — Mudando de assunto, como tem sido lá naquela editora? Tem tido muitos furos jornalísticos? Bianca passou o resto da janta falando sobre o seu trabalho e como a sua chefe era uma grande filha da p**a, então bebemos mais e acabamos desabafando sobre como nossos chefes poderiam dar as mãos e irem juntos para a p**a que os pariu, rindo tanto das nossas desgraças que assustamos quando o Guto, marido de Bianca, chegou do trabalho. — E como vai o livro, Tammy? — perguntou ele, enchendo o prato com a comida feita por Bianca. Ela também estava comendo agora. — Bia me falou que você estava fazendo pesquisas em novelas mexicanas para ter mais inspiração. — Não é bem uma pesquisa — falei em tom constrangido, e cocei de leve a minha orelha. Eu nunca entendi porque é que fazia aquilo quando me sentia incomodada de verdade. — Eu estou assistindo algumas novelas famosas para saber quais são as tramas que mais chamam a atenção das pessoas. Sabe, até no mundo literário você tem que saber quais batalhas lutar, e, definitivamente, se eu quero que algum livro meu se torne um dos mais buscados nas plataformas digitais, vou precisar me adaptar ao que as pessoas estão acostumadas em ver. Eu andei percebendo que a fantasia não é um gênero tão buscado quanto um conto e*****o, por um exemplo, e isso é totalmente diferente do que eu escrevo. Só que é complicado para mim, porque eu não sei quais referências buscar. Eu não sei se preciso viver algo assim, ou se posso dar uma de J.K.Rowling e criar algo que nunca vivi, mas que vai conquistar as pessoas. — Ah, amiga... — suspirou Bianca, soltando o garfo no prato com um estrépito, para novamente esticar a mão e tocar a minha. — Você tem um cérebro tão brilhante, mas desperdiça isso naquele supermercado e naquele escritório, que é cheio de gente i****a. m*l posso ver você fazendo sucesso com as histórias que você cria. Eu amo saber que eu tenho uma amiga escritora. Só queria que você me deixasse falar disso pro mundo todo. Eu ajudaria nas divulgações. Qualquer coisa só para você não ter que continuar cercada daqueles arrombados do seu emprego. — Não fale assim, Bia! — pediu Guto, com um olhar quase suplicante. — Eles não são tão ruins assim, não é, Tamara? — Quando você tem um setor, realmente deve ser mais fácil lidar com as pessoas — falei com cautela, lançando um olhar na direção de Guto. — Mas... quando você é a escrava de todo mundo, fica um pouco difícil nutrir sentimentos imparciais, sabe. Só que eu não estou reclamando, Guto. Eu sou muito grata pela ajuda que você me deu. — Me dê os nomes das pessoas que te fazem se sentir assim, Tammy, e eu vou direto ao Manfred pedir para que tome providências — disse Guto, solicito. — Quem é Manfred? — perguntei. — O dono da empresa — comentou Guto. — Ele tem um filho que vez ou outra visita o escritório, mas você ainda não deve ter conhecido ele. Acho que muito da arrogância daquelas pessoas vem do jeito que o filho dele lida com a empresa. Ele não dá respeito aos funcionários, e por isso eles agem como se fossem os donos de tudo. Mas Manfred é um homem sensato, justo, e com certeza detesta injustiças. Eu vou falar com ele por você. Não se preocupe. Eu recusei com um franzir de rosto e uma negação de cabeça. Bianca e Guto começaram a falar que limites precisam ser impostos em qualquer lugar de trabalho, e que eu deveria parar de ser tão ingênua. Aquele espírito raivoso que eu tentava manter contido o tempo todo se agitou diante da crença deles de que eu era mesmo tão bobinha quanto a minha aparência dizia. — Sabe de uma coisa? É melhor eu ir voltando para a minha casa. — Avisei em tom de despedida, erguendo-me para encerrar o assunto. Por pouco a minha mochila não bateu contra a garrafa de cerveja na mesa quando eu fui colocá-la de volta nas costas. — Preciso acordar cedo amanhã, e preciso me preparar para mais um dia exaustivo e monótono. Até o dia em que conseguirei escrever um livro e*****o e muito atraente para que as leitoras dele possam me tornar bem sucedida e famosa. Até lá... Enquanto a minha inspiração não chega, eu preciso trabalhar e passar raiva. — Estamos com você, amiga — disse Bianca, erguendo seu copo com cerveja. — Não esqueça de me enviar o manuscrito quando ele estiver pronto, posso tentar acionar alguns contatos na editora que trabalho e tentar tornar o seu sucesso mais do que possível. Apenas nunca deixe de sonhar. Você é um gênio!
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