Capítulo 3OS VELHOS

1656 Words
Capítulo 3 UMA VEZ ELE HAVIA LIDO EM ALGUM LUGAR — mas não se lembrava onde —, que todo ser humano acaba se tornando refém de suas próprias convicções. Algo do tipo: se você acredita em maré de azar, certamente, em algum momento da sua vida ela — a maré de azar — vai dar as caras e tentar devorar a sua mente. O garoto nunca foi de acreditar nessas coisas. Claro que não ia dar ouvido a essas besteiras. Pelo menos não até esbarrar com o corpo da própria mãe, estirado sobre uma cama. Morta. p**a m***a, tá aí o tipo de situação que não dá para imaginar. A verdade é que a maioria das pessoas acha que essas coisas só acontecem em filmes ou em livros de romance policial, mas nunca na vida real. Até que um dia, sem aviso, acontece com você. Puta merdaA morte da mãe o deixou perturbado e completamente vulnerável. O garoto começou a ter alucinações e passou a atribuir seu sofrimento (e agora já dava até para admitir a tal da maré de azar) a uma conspiração Divina. Deus estava disposto a lhe sacanear. Só podia ser isso. Perder os pais de forma tão estúpida num espaço de tempo tão curto, o fazia pensar em coisas terríveis. Sua mãe foi asfixiada com o próprio travesseiro enquanto dormia. O garoto só podia descrever como dolorosa a maneira como percebeu que, embora a morte esteja presente no nosso dia a dia — no sujeito que morreu num acidente de trânsito; na vizinha que perdeu a batalha para um câncer; no político que teve um infarto fulminante; na celebridade que se drogou mais do que seu corpo podia suportar —, só prestamos atenção no real sentido da palavra, quando ela, a morte, se interessa por um amigo próximo ou alguém da família. Para o garoto, o termo família se relacionava exclusivamente com a mãe. Algo na vida do velho Agenor sempre teve mais peso do que bancar o exemplo de figura paterna. Na opinião do garoto, o pai não passava de um sujeito a*******e, cuja rotina se resumia a encher a cara de uísque e grudar os olhos em qualquer r**o de saia que cruzasse o seu caminho. morte,família caraEle odiava tudo aquilo. E quando sua mãe foi assassinada, as coisas ficaram ainda mais insustentáveis. O garoto começou a considerar a ideia de que não duraria muito tempo nesta vida. E talvez nem quisesse mesmo. Para quê?... Não fazia nenhum sentido. Por mais que se esforçasse, não via nenhuma razão para continuar fazendo parte deste mundo caprichoso, injusto e c***l. No começo ele contava horas. Depois passou a contar os dias. E quando a terceira semana chegou, já estava cansado de esperar por uma resposta da polícia. Não havia nada que o convencesse de que o detetive estava fazendo direito o seu trabalho. A angústia inicial, agora se transformava em revolta, especialmente pela falta de informação sobre como andava a investigação relacionada à morte dos pais e o silêncio que se estabeleceu em torno do assunto. O garoto era tomado por uma sensação de procrastinação e impunidade toda vez que Viana se recusava a falar com a imprensa. andavaNa TV, os noticiários da RPC (Globo) e os da TV Tarobá (Rede Bandeirantes) traziam informações alarmantes sobre o aumento do índice de homicídios na cidade, 126 até o momento. A polícia não tinha dúvida, a maioria dos assassinatos estava relacionada ao t***************s e ao contrabando de armas vindas do país vizinho. Enquanto isso, a Associação de Magistrados do Paraná (AMAPAR) se reunia para discutir temas como: criminologia e políticas de justiça. Todos concordavam que a situação era r**m, mas já havia estado pior. Entre 2007 e 2009, a cidade de Foz do Iguaçu estivera no topo da lista do mapa da violência como uma das cidades com o maior número de homicídios no país. RPC TVTarobá mapa da violênciaAgora, a ideia de que seus pais pudessem contribuir para engrossar novamente essa estatística assombrava o garoto. engrossar øøø Menos de vinte e quatro horas. Esse foi o tempo que durou a possibilidade de o garoto ingressar em alguma instituição dedicada a menores abandonados, e isso o deixou aliviado, pois, sabia que qualquer pessoa com algum conhecimento sobre o assunto, pode compreender que geralmente, crianças com idade acima de dois ou três anos estão condenadas a esperar pela maioridade sem que ninguém se interesse em adotá-las. Quando o detetive Viana lhe pediu um número de telefone de alguém da família, o moleque se deu conta de que não havia ninguém para quem a polícia pudesse ligar. Ninguém. Pelo menos não alguém que ele conhecesse. — Está me dizendo que não conhece ninguém da sua família? — ele perguntou, seu olhar logo passaria da incredulidade à desconfiança. “Não vejo nada demais nisso”, o garoto poderia ter respondido. No fundo, ele sabia que dizer a alguém que — exceto pelo pai e a mãe — você não conhece mais ninguém da própria família não é nada que corresponda aos padrões estabelecidos. Então o silêncio se insinuou irrecusável. “Não vejo nada demais nisso”Ele queria poder falar sobre as férias na casa dos avós em Paraisolândia, um vilarejo esquecido no município de Charqueada no interior do estado de São Paulo. Queria poder falar das festas de fim de ano em Curitiba; ou da tia favorita que morava em Brasília e que dominava como ninguém as técnicas de fazer um bolo de chocolate com cobertura de leite Ninho. Mas sabia que tudo era só sonho. Nada, além disso. Invenção. Fantasias da cabeça de uma criança que nunca tinha saído de Foz do Iguaçu. Nunca tinha brincado na rua ou se apaixonado por uma prima. NinhoParentes. Seus pais se recusavam a falar sobre eles. Papo encerrado. “E quem precisa de parentes?”, o pai dizia. “Pare de encher o saco do seu pai com essas perguntas”, a mãe defendia. E assim tudo se resolvia. Talvez houvesse um segredo, o garoto supunha. Por que não?... Algo terrível que devesse ser mantido fora do alcance da família. Na noite em que a mãe do garoto morreu, um céu escuro de setembro observava a dança das luzes (vermelhas) sobre os tetos das viaturas. Eram duas delas. Uma estacionada sobre a calçada e a outra atravessada no meio da rua impedindo a passagem dos carros. Os giroflex ligados chamavam a atenção de pelo menos dois quarteirões. Gente que o garoto nunca tinha visto na vida, agora queria saber o que tinha acontecido naquela altura da rua Piquiri. giroflexOs policiais entravam e saíam da casa, como se fossem convidados para uma festa. Você vai superar isso, o garoto ouviu de um deles. Observavam tudo e conversavam entre si. Falavam baixo. Então nenhum expectador indesejado podia ouvi-los. Os curiosos — que se aglomeravam a poucos metros da viatura atravessada na rua — começaram a perder o interesse pelo tumulto assim que a equipe forense cruzou o portão com uma maca, dessas com rodinhas, cujo conteúdo era um volumoso saco preto, com a mãe do garoto dentro. Mas nem todo o mundo estava ali só pelo espetáculo fúnebre. Um casal de velhos, que costumava frequentar a mesma igreja que a mãe do garoto, não arredou o pé de lá. Eles esperaram pacientemente até que o garoto respondesse a todas as perguntas do detetive Viana. Em seguida, a mulher lhe estendeu a mão. — Se quiser, pode ficar conosco — ela disse, apoiada ao braço flácido do marido. O garoto se aproximou e a velha o abraçou. — Podemos cuidar de você até que a justiça decida o que fazer — o idoso disse, de posse do mesmo tom de voz que um pai usa ao aconselhar um filho. O garoto assentiu. Ele sabia que se recusasse a oferta generosa, não teria para onde ir. Não renegava a ideia de que teria de aprender a viver sem a presença dos pais. Mas e daí? Os velhos pareciam dispostos a convencê-lo de que a vida devia seguir em frente, apesar de tudo. Aliás, se a vida fosse baseada num seriado de desenho animado, o garoto diria que o seu Alfredo se encaixaria perfeitamente na pele daquele personagem de “Os Simpsons”, aquele, excêntrico e milionário, dono da usina nuclear onde Homer Simpson trabalha (como é mesmo o nome dele?). Se bem que, na opinião do garoto, no caso do seu Alfredo, a careca lustrosa, o nariz pontiagudo e a estatura esquelética não lhe tiravam o jeitão de bom homem. Até onde ele sabia — e isso se resumia às conversas que a mãe tinha com o casal após os cultos aos domingos —, seu Alfredo era um sujeito respeitável. Então, podia-se dizer que a comparação ao Sr. Burns (do seriado) limitava-se às características físicas. Os Simpsons Homer Simpson (como é mesmo o nome dele?). Sbom homemJá a dona Tamires, exibia aquela expressão de quem tem sempre algo bom a dizer. Os cabelos brancos, os óculos de armação antiquada, os lábios finos e os olhos claros combinavam com seu sorriso. øøø Um sorriso malicioso. Isso foi tudo o que o garoto pôde ver no rosto do detetive Viana quando compartilhou sua teoria sobre os acontecimentos envolvendo a morte dos pais. Para ele, a mesma pessoa que tinha matado o seu pai, também havia sufocado sua mãe. O problema era que além dele, naquela sala, parecia não haver mais ninguém disposto a acreditar nesta possibilidade. — Estamos cuidando disso — o detetive respondeu. O garoto teve a sensação de estar sendo analisado. E estava. Por um instante, teve a certeza de que o sujeito à sua frente não o estava levando a sério. Ele não confiava no detetive, mas Viana deixava bem claro que não se importava com isso.
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