Ele voltou a dirigir, não falou nada, os olhos fixos na estrada, o rosto duro, como sempre, parou uma hora depois, em silêncio, puxou o freio e disse só:
— Eu já volto.
Deixou Cora sozinha dentro do carro, e ela só respondeu com um aceno de cabeça, o olhar perdido em algum lugar entre o medo e o cansaço.
Quando ele voltou, tinha nas mãos duas tigelas de novas.
— Não tem muito o que se comer nesse lugar… tem banana, tem goiaba, e eu trouxe leite um leite condensado, pode fazer uma espécie de salada de fruta..., Cora, à noite a gente se alimenta direito.
— Obrigada…
Ela pegou a tigela, os dedos tremendo pouco, mas pegou, e ele ficou em silêncio, olhando pelo retrovisor, sabendo que, mais tarde, o ar ficaria frio, e ela não tinha roupa, não podia comprar, não agora, não ali, não podia levantar suspeita, sabia que Alceu estava apenas meia hora atrás.
E não podia ma.tá-lo na frente de todo mundo, não podia errar, nunca errou um assassinato, não começaria agora.
Deixou ela comer em paz, depois voltou ao volante, dirigiu um quilômetro à frente, estacionou de novo, abriu a porta do lado dela.
— Não sei seu nome — ela disse, com a voz baixa.
— Me chame de Seraphin, Cora… e venha comig
— Você… você não vai me machucar?
— Não, mas estou certo de que Alceu desistiu, venha.
Ela ofegou, não queria voltar com Alceu, mas não sabia o que Seraphin era, só sabia o que Alceu era, e ninguém podia ser pior do que Alceu.
Então o acompanhou, ainda que hesitante, até a entrada de uma caverna de pedra, escura, funda, quase invisível entre a vegetação.
— Eu tenho medo do escuro… e de lugares fechados.
Mas ele a puxou com firmeza pra dentro, acendeu uma lanterna pequena, pendurou no teto da caverna, o feixe fraco tremulando nas paredes de pedra, e ela ia gritar quando viu uma cobra enrolada num canto, mas ele a cobriu a boca dela.
— Não grite… nenhuma delas é venenosa.
Ela tremia, o corpo encolhido.
— Você não pode gritar, Cora… eu preciso ir lá fora, colocar Alceu em outro caminho, não posso matá-lo agora, não aqui, na frente dos homens dele.
— Vai me deixar aqui sozinha?
Ela escutou o som de um morcego passando rente ao teto da caverna e ia gritar de novo, o corpo já em pânico, mas Seraphin cobriu a boca dela com a sua, de repente, não era pra ser um beijo, era só pra calar, só pra conter, mas o gosto dela, misturado com frutas e o leite condensado que ela tinha tomado no carro, invadiu a boca dele, o instinto venceu o controle, e Seraphin aprofundou o beijo, usou a língua, apertou com força, deixou o corpo colar no dela sem pedir nada, sem explicar.
Encostou-a contra a parede da caverna, a boca firme, as mãos segurando os braços dela, o vestido subindo sob os dedos dele, os joelhos firmes na pedra, ia tê-la ali, ia quebrar a própria regra, mas ela soluçou.
— Não… não,
___ Não é… obrigada, Cora… parei.
Ele recuou, como se tivesse levado um soco no peito, fechou os olhos, respirou fundo, puxou um lenço do bolso e colocou sobre a boca dela com um cuidado estranho, como quem queria protegê-la e silenciá-la ao mesmo tempo, antes que ela entendesse, os pulsos estavam presos, ele a sentou com calma no chão úmido da caverna, ajeitou a coberta por cima do vestido e falou baixo:
— Fecha os olhos… assim não vê nada… eu volto logo.
Ela ficou ali, imóvel, o corpo tremendo, os olhos fechados, à beira de desmaiar de medo das sombras, dos morcegos, das cobras, e do próprio Seraphin, mas não tentou se desamarrar, não tentou fugir, só respirava fundo e mantinha o corpo firme, como se aceitasse.
Lá fora, Seraphin foi até o rio, se despiu pra se lavar, acalmar o próprio sangue,pulou na água, escutou os passos, o ranger de botas pesadas, o estalo de armas sendo engatilhadas.
Os homens de Alceu apareceram com facões e pistolas, todos armados, olhos cheios de suspeita.
— Minha mulher — Alceu cuspiu as palavras — cadê?
Seraphin estava com a camisa pela metade, começou a se vestir devagar, como se não houvesse ameaça alguma no ar.
— Não sei da sua mulher… ficou maluco?
— Ela não está na fazenda, e o único carro que saiu de lá foi o seu.
— Meu carro está logo ali, pode olhar, Alceu… você acha mesmo que eu traria uma mulher comigo? Eu durmo em buraco, como o que caço, vivo sem ninguém, nunca me viu andar com companhia, nem seus homens me viram com alguém do lado, e agora você acha que eu estou trazendo sua mulher como bagagem?
Os homens se olharam.
Alceu apertou os olhos, tentou farejar mentira, mas Seraphin não tremia, não piscava, não mudava o tom de voz.
Frio. Imóvel.
— Pode vasculhar se quiser — ele disse, já acendendo um cigarro — se ela estiver comigo, você leva. Mas se não estiver… quem vai embora é você.
Alceu foi conferir o carro, abriu as portas, olhou o porta-malas, passou a mão por baixo dos bancos, chegou a deitar no chão, tentando encontrar qualquer esconderijo, qualquer espaço onde uma mulher pudesse estar encolhida, mas não achou nada.
— Você viu ela?
— Na fazenda — Seraphin respondeu, o cigarro já firme entre os dedos — vi indo embora, e não era da minha conta, vi porque estava lá, porque faço o que sou pago pra fazer e nada mais.
— Vamos voltar pra lá… alguma esposa de trabalhador deve ter acolhido, vou ma.tar todo mundo.
Alceu partiu com os homens, bufando, cuspindo ódio pela boca, cavalgando em círculos como um cão farejando o próprio rastro.
Seraphin esperou.
Meia hora, talvez um pouco mais, o suficiente pra ter certeza de que ninguém voltaria, de que não estava sendo vigiado, só então se moveu, limpou a mão na calça, apagou o cigarro com a sola da bota e entrou na mata de novo, e foi para carvena, sabia que ela estava com medo..
Cora estava como ele imaginava, encolhida, tremendo, os olhos duros como pedra, a respiração presa, quase sem força.
Ela não gritou, não chorou, mas também não se mexeu.
O corpo dela tremia tanto que ele precisou ajoelhar ao lado, soltou as amarras com calma,a abraçou.
Ela se agarrou nele, com medo, com frio, com tudo.
— Tudo bem… o carro tem aquecedor… vamos partir.
Ela só balançou a cabeça, sem falar nada, o rosto no ombro dele, o corpo ainda em choque..
Ela nem mesmo se moveu, não abriu os olhos, não reagiu, o corpo mole, entregue ao próprio medo, e Seraphin não disse nada, só se abaixou, passou os braços por baixo dela e a pegou no colo, sem esforço, sem delicadeza, mas também sem violência.
Levou até o carro, abriu a porta de trás, colocou Cora no banco como quem coloca uma coisa frágil, encontrou uma coberta jogada entre os bancos, dessas que ele usava quando precisava dormir em algum canto frio, e a enrolou ali dentro, apertando bem.
— Eu queria tomar um banho.
— Em duas horas… aguente mais um pouco, Cora, tem um hotel simples a umas cidades daqui, eu vou arrumar um quarto, você toma banho, dorme, a gente come alguma coisa… depois eu penso.
Ele nem sabia pra onde ia, não tinha casa, não tinha nada, vivia entre pontos de fuga e esconderijos, mas ia encontrar um lugar seguro, quente, silencioso, onde ela pudesse parar de tremer, onde ele pudesse pensar, onde Alceu não estivesse olhando.
Deu a partida no carro, acelerou devagar, os olhos no retrovisor..
Tinha uma mulher com ele, só sabia que a queria, só não sabia o que fazer com ela.