O jantar já estava em andamento quando a conversa inevitavelmente começou a girar em torno de mim.
Até então, eu era apenas “o acompanhante da Manuela”, um detalhe elegante ao lado dela, algo que despertava curiosidade, mas que ninguém ainda tinha coragem de questionar diretamente. A mesa era longa, de madeira escura impecavelmente polida, decorada com arranjos baixos de flores brancas e velas finas que lançavam sombras suaves sobre os rostos. O salão inteiro exalava sofisticação — o tipo de ambiente onde cada riso é calculado, cada gesto observado.
Manuela estava sentada ao meu lado, usando um vestido que parecia ter sido desenhado diretamente para ela. Nada exagerado, mas absolutamente impossível de ignorar. O tecido caía perfeitamente sobre o corpo, deixando à mostra apenas o suficiente para provocar olhares mais longos do que o socialmente aceitável. E eu sentia isso. Sentia os olhos passeando por ela… e depois voltando para mim, tentando entender o que eu fazia ali.
Ela cruzou a perna devagar, tocando a minha por baixo da mesa, um gesto simples, íntimo, quase casual — mas que para mim foi um lembrete silencioso: estou aqui com você.
Foi então que Rafael inclinou o corpo para frente.
Até aquele momento, ele já tinha feito comentários atravessados demais para serem apenas coincidência. Sempre com um sorriso educado demais, um tom que parecia brincadeira, mas carregava algo ácido por baixo. Ele segurava a taça de vinho com firmeza, os dedos longos e bem cuidados, e me analisava como se eu fosse um objeto fora do lugar.
— Então… — ele começou, olhando diretamente para mim, sem sequer fingir desinteresse — acho que ainda não ficou claro pra todo mundo… quem exatamente é você?
O silêncio que se seguiu foi quase palpável.
Algumas pessoas trocaram olhares discretos. Outras fingiram se concentrar na comida. Manuela ficou tensa ao meu lado — senti isso imediatamente. O corpo dela enrijeceu por um segundo, e antes que eu pudesse responder, ela levou a taça aos lábios, como se ganhasse tempo.
Rafael continuou, sem esperar resposta:
— Quero dizer… esse evento é bem específico. Sócios, investidores, amigos próximos. Pessoas que… fazem parte do círculo há anos.
Ele deu um gole generoso no vinho, os olhos ainda fixos em mim.
— Então fico curioso em saber como você se encaixa nisso tudo.
Manuela pousou a taça na mesa com um cuidado excessivo.
— Rafael… — ela disse, num tom baixo, controlado — não acho que esse seja o momento.
Ele sorriu, mas não era um sorriso bonito. Era tenso.
— Ué, Manu, curiosidade não é crime. Só quero saber.
Ela respirou fundo. Eu a conhecia o suficiente, naquele ponto, para perceber quando estava escolhendo as palavras com cautela.
— Ele é meu namorado.
A palavra caiu no meio da mesa como um objeto frágil quebrando no chão.
Rafael empalideceu.
Literalmente.
Por um instante, achei que ele fosse rir, como se fosse uma piada. Mas não. O sorriso morreu no rosto dele. A taça parou a meio caminho da boca, e os olhos se arregalaram antes de se estreitarem, duros.
— Namorado? — ele repetiu, a voz mais alta do que o necessário.
Alguns convidados se mexeram nas cadeiras. Alguém pigarreou.
— Você nunca comentou isso comigo — ele continuou, agora visivelmente alterado.
Manuela manteve a postura.
— Porque não era da sua conta.
O golpe foi direto.
Rafael riu, mas era um riso amargo.
— Interessante… — murmurou. — Então é por isso que você apareceu acompanhada assim, do nada.
Ele me olhou de cima a baixo, sem disfarçar o desprezo.
— Confesso que imaginei algo mais… à altura.
Ali estava. O ataque direto.
Eu ia responder, mas Manuela foi mais rápida.
— Chega, Rafael. — A voz dela saiu firme, fria, sem espaço para discussão. — Você está bebendo demais e passando dos limites.
— Eu? — ele ergueu as mãos, teatral. — Só estou sendo honesto.
Ela se virou completamente para ele, ignorando o resto da mesa.
— Honestidade não é licença para desrespeito. Muito menos aqui.
O clima pesou de vez.
Os outros convidados começaram, discretamente, a se aproximar mais de mim. Um casal à frente puxou assunto sobre a viagem, sobre o resort. Um homem mais velho comentou algo elogioso sobre minha postura, dizendo que Manuela tinha “bom gosto”. Era evidente: todos estavam tentando neutralizar a situação.
Todos… menos Rafael.
— Engraçado — ele insistiu, já sem filtro — como alguém aparece do nada e já ganha esse espaço todo.
Ele apontou para mim com a taça.
— Parece mais um penetra bem vestido.
Dessa vez, fui eu quem colocou a mão sobre a perna de Manuela, apertando de leve. Não para contê-la — mas para mostrar que eu estava ali.
Olhei diretamente para Rafael, calmo.
— Eu não precisei aparecer antes — disse, com tranquilidade. — Só no momento certo.
O olhar dele escureceu.
Manuela sorriu de canto, orgulhosa, e finalmente perdeu a paciência de vez.
— Rafael, se você não consegue manter a compostura, talvez seja melhor se retirar.
O silêncio que se seguiu foi absoluto.
Ele a encarou por longos segundos, como se estivesse vendo uma versão dela que não reconhecia mais.
— Entendi… — murmurou, bebendo o resto do vinho. — Então é isso.
Levantou-se de forma brusca, puxando a cadeira.
— Aproveitem a noite.
E saiu.
A tensão demorou alguns instantes para se dissipar. Mas, aos poucos, as conversas voltaram, o clima foi se recompondo. Manuela respirou fundo, visivelmente abalada, e virou-se para mim.
— Me desculpa por isso.
Aproximei-me do ouvido dela.
— Não precisa. — Sorri. — Ficou claro quem estava fora do lugar.
Ela entrelaçou os dedos nos meus, ali mesmo, na frente de todos. Sem rótulos, como ela havia dito. Mas com uma certeza que não precisava ser anunciada.
E enquanto o jantar seguia, entre risos contidos e olhares curiosos, uma coisa ficou clara para todos naquela mesa:
Eu não era um penetra.
Eu era alguém que tinha chegado para ficar.