Pré-visualização gratuita O mesmo céu
A noite estava quente apesar da tempestade que castigava os céus do país que aprendeu a chamar de lar. Endi olhou as horas.
2:45 da manhã
Admirou os raios que cortavam a escuridão e puxou o ar com certa dificuldade, aquela viagem havia sido uma decisão difícil, não queria voltar ao Brasil, o peso que carregava no peito, as imagens daquela noite ainda o perturbavam, ficaram mais fortes desde que aceitou ajudar o pai com algumas questões legais do orfanato Chang'e.
Júlia administrava o lugar e era assim que um amigo da família costumava chamá-la. A deusa chinesa da beleza e da lua era adorada pela sua bondade, assim como a dona do orfanato, mas Endi não conseguia aceitar a amizade da mãe com Ming. Para o jovem advogado, tudo o que tinha acontecido desde a noite em que perdeu a sua inocência parecia uma piada de péssimo gosto.
Coçou a barba e acendeu um cigarro, olhou para a mão direita e brincou com a aliança, a noiva de Endi, uma médica residente havia ficado tão frustrada com aquela viagem quanto ele, mas por razões diferentes que o homem desconhecia, ligou para a garota.
- “Fala”
- “Ainda brava comigo?”
Vick respondeu com ironia e raiva.
- “Por você me deixar aqui sozinha faltando um mês para o nosso casamento? Não, seria imaturidade minha”
- “Você ilumina minha escuridão, baixinha”
Endi nunca disse que amava a noiva, era sempre a mesma frase, mas dessa vez a comparou com os raios que iluminavam o céu. Sabia que o que garota estava fazendo desde que começaram a namorar, nunca reclamou, achava que era uma compensação por não ser capaz de oferecer o que Vick merecia.
Dinheiro nunca foi um problema para Endi, o pai era o subchefe da máfia americana, nunca precisou se preocupar com isso, mas também nunca havia usado o dinheiro do pai, sempre se viu como um soldado da máfia, antes dos dezesseis anos já tinha mais crimes no currículo do que a maioria dos donos dos morros brasileiros, mas possuía uma frieza e elegância que poucos assassinos conseguiam manter, gostava de mortes limpas como aprendeu com o pai.
Vick por sua vez não gostava de trabalho e no segundo ano da faculdade de medicina a família perdeu tudo depois de uma mão r**m no jogo, os empréstimos para pagar outros empréstimos foram se tornando insustentáveis, aliados a má administração e gastos exorbitantes o império financeiro dos Trufelli desmoronou. Endi pagou por cada gasto da namorada desde então e a italiana aproveitou todos os benefícios de ser a companheira de um filho da máfia, assim como os pais.
- “Posso ficar com os meus pais até você voltar?”
- Claro que pode, Vick.
Internamente, Endi sabia que aquela viagem lhe custaria muito dinheiro, a última vez que Vick foi ver os pais ela havia presenteado a mãe com um carro esportivo que custava mais de oito dígitos, o cartão black foi bloqueado e foi assim que o jovem advogado descobriu que a noiva gostava de usar o seu dinheiro para presentear os pais, ainda assim não reclamou.
Conversou com a noiva olhando para o céu noturno, não ouviu nada do que a italiana disse, aquele lugar o fez lembrar de quando na infância ajudava Mel a encontrar o melhor foco do telescópio que brincavam na pequena torre de observação improvisada pelo pai do rapaz, lembrou do cheiro adocicado de bala.
-“ Seis anos”
- “O quê?”
Só então ele se deu conta de que ainda estava ao telefone com a noiva, deixou a mente se perder nas lembranças de quando viveu no Brasil, moravam em um condomínio, Mel era filha de Ivan o chefe da máfia e melhor amigo do seu pai, cresceram juntos, mas foram separados por algo que ainda fazia o estomago do advogado revirar.
“- Nada baixinha, só pensei alto. Vai visitar sua mãe, ligo mas tarde.
Haviam se conhecido na faculdade, na época a garota foi sua amiga, ele estava quebrado e ela disposta a esperar, terminaram fazendo amor em uma noite de muito Gin e confissões.
Afastou o pensamento e jogou o cigarro, assistiu a brasa perder o brilho laranja na poça e seguiu para a saída. Os planos eram simples, tomar um café, esperar amanhecer, se hospedar em um hotel, resolver tudo no orfanato e voltar o quanto antes para a vida que tinha construído longe do Brasil.
Ainda assim, o peito apertava todas as vezes que lembrava de Mel. Sorriu com o pensamento que surgiu sem ser convidado.
“O mesmo céu miminho”
Brincavam assim, ele sempre dizia a Mel que não importava a distância das estrelas, elas dividiam o mesmo céu.