9. A Primeira Morte

2122 Palavras
A neblina cobria a cidade como um lençol vivo. Os sinos da igreja ainda ecoavam, longos, graves, distorcidos, enquanto o som da água se misturava ao vento, criando um murmúrio constante — como se o lago sussurrasse o nome de cada habitante de Darrow’s Hollow. Ethan e Sarah não dormiram. Permaneceram diante da janela, observando a neblina rastejar pelas ruas, cobrindo os postes e as casas da margem. De vez em quando, algo se movia dentro dela — vultos, silhuetas indistintas, passos arrastados. Mas toda vez que Ethan tentava focar, nada restava além de névoa e silêncio. Ao amanhecer, o primeiro grito ecoou pela cidade. Veio da direção do lago. Um som agudo, humano, desesperado. Ethan e Sarah correram pela estrada molhada, com o vento frio cortando o rosto. Quando chegaram à margem, Tom Grady já estava lá, parado, imóvel, olhando para algo na areia. O xerife estava pálido, os olhos arregalados, o rosto sem cor. Atrás dele, dois homens cobriam a boca, tentando não vomitar. O corpo estava estendido parcialmente dentro d’água, como se tivesse sido devolvido pelo lago. Era o pai de Danny Harper. Metade do corpo estava normal, mas o outro lado — o lado que tocava a água — parecia... transformado. A pele era pálida, translúcida, com marcas em espiral que pulsavam como veias luminosas. Os olhos estavam abertos, fixos no céu, e na boca havia lama, musgo e algo mais — algo vivo, que se movia lentamente, como uma pequena criatura aquática. Sarah deu um passo para trás, horrorizada. “Meu Deus…” Tom engoliu em seco. “Acho que ele foi até o lago, procurando o filho. E… ela o encontrou primeiro.” Ethan se ajoelhou, o coração acelerado, examinando as marcas. Eram idênticas às do diário. Símbolos de invocação e domínio. A criatura havia marcado o corpo como se fosse parte de um ritual. Henry Calder chegou pouco depois, arrastando o bastão pela lama. “É o início” disse, com voz rouca. “Ela começou a tomar forma física. Precisa de um corpo para se ancorar neste lado. Este… é o primeiro.” Tom olhou para o velho, furioso. “Você fala disso como se fosse inevitável!” Henry o encarou sem emoção. “É. Porque é.” O vento soprou forte, levantando pequenas ondas. E então Ethan percebeu algo — as marcas na areia ao redor do corpo. Padrões circulares, idênticos aos do diário, desenhados em torno do cadáver. Mas o que o fez gelar foi o centro do círculo. Ali, onde o corpo havia sido deixado, a areia estava afundada — como se algo tivesse emergido de dentro, e não vindo de fora. Sarah percebeu também. “Ela não o trouxe. Ela o empurrou de dentro da terra.” Ethan se levantou lentamente, os olhos fixos na água. “O ciclo começou.” Tom recuou, olhando em volta. “O que quer dizer?” Ethan o fitou, sério. “Cada morte, cada marca, cada corpo… é um aviso. Ela está subindo. E quanto mais medo existir na cidade, mais fácil será atravessar completamente.” Henry apontou o bastão para o lago. “E quando ela atravessar, não haverá volta.” Um som profundo ecoou — uma vibração grave, subterrânea, que fez a areia tremer. A água do lago se moveu, lenta e densa, formando um redemoinho. E no centro dele, por um instante, Ethan viu — ou acreditou ver — algo emergir. Uma superfície n***a, úmida, coberta de olhos. O olhar fixo nele. O olhar de algo que o conhecia. Ele cambaleou para trás, o coração disparado. Sarah o segurou. “Você viu, não viu?” Ethan respirou com dificuldade. “Ela me viu também.” O redemoinho desapareceu, e o lago voltou a ficar calmo. Mas o silêncio que se seguiu não era paz. Era expectativa. Tom olhou para Ethan. “O que fazemos agora?” Ethan limpou o rosto, ainda pálido. “Agora… precisamos entender o diário completamente. As pistas, os selos, o que ainda resta do ritual. Se não encontrarmos uma forma de contê-la, Darrow’s Hollow vai se tornar parte dela.” Henry se virou, começando a subir o barranco. “O medo é a linguagem dela, Ethan Cole. E a cidade já aprendeu a falar.” O vento soprou mais forte, trazendo novamente o cheiro metálico da água e um sussurro baixo, quase imperceptível, que só Ethan pareceu ouvir: "Você é o sangue. Você é a porta." E naquele instante, ele entendeu — a primeira morte era apenas o início da invasão. E a criatura não planejava mais dormir. O corpo foi levado para o necrotério improvisado na prefeitura. Ninguém quis ajudar a carregá-lo. Mesmo coberto, a simples presença daquele cadáver parecia pesar o ar, como se algo invisível o seguisse, como se o lago tivesse deixado parte de si preso à pele do homem. Ethan observava de longe, os olhos fixos no pano que cobria o corpo. Aquela metade humana e metade deformada parecia mais um aviso do que uma vítima. Sarah permanecia próxima, sem falar. A cidade toda sabia, agora. O medo não era mais rumor — era realidade. No fim da tarde, quando os gritos cessaram e o vento voltou a soprar do lago, as ruas ficaram vazias. Cães latiam para o nada. Janelas batiam mesmo sem vento. E os postes pareciam piscar em sincronia com o pulsar invisível que vinha das águas. Henry apareceu novamente, o rosto ainda mais cansado, a bengala afundando na lama molhada. “Não é a primeira vez que Darrow’s Hollow vê isso” disse. Ethan o encarou. “Está dizendo que já aconteceu antes?” “Sim. Em 1887, o lago engoliu metade da vila. Corpos foram encontrados da mesma forma, marcados. O selo foi restaurado com sangue, o sangue dos Cole.” Ethan respirou fundo, sentindo um calafrio percorrer-lhe o corpo. “E se eu me recusar a repetir o que foi feito?” Henry o olhou, grave. “Então ela atravessará por completo. O medo será tudo que restará desta cidade.” Sarah interveio. “Não pode haver outra forma. Precisa haver.” O velho balançou a cabeça. “Toda força antiga cobra um preço. Sempre foi assim.” O silêncio se instalou, pesado, até que o som das águas quebrou a imobilidade. Um barulho distante, um estalo grave, depois outro, depois o mesmo suspiro úmido que Ethan ouvira semanas antes. O lago estava respirando. E cada expiração parecia se aproximar mais da cidade. Naquela noite, ninguém dormiu. Ethan ficou sozinho na casa da mãe, sentado na sala, o diário aberto sobre a mesa. As páginas tremiam com o vento que entrava pelas frestas, mas ele jurava ouvir um som mais baixo, mais íntimo. Um sussurro que vinha de dentro do próprio livro. "O sangue dorme em ti. Acorde-o, e o selo renasce." Ele fechou os olhos, tentando afastar as palavras. Mas algo dentro dele pulsava — um ritmo que não era seu. O mesmo compasso que vinha do lago. Do lado de fora, a neblina se movia com vida própria. Sombras atravessavam as ruas. Algumas eram humanas. Outras não. ************* Na manhã seguinte, a cidade acordou diferente. Ninguém falava alto. As lojas não abriram. Apenas o sino da igreja soava, lento, espaçado, como um lembrete de que ainda havia tempo — pouco, mas havia. Tom apareceu à porta de Ethan, com olheiras fundas e o olhar perdido. “Mais um” disse. “Encontraram outro corpo. Perto da escola.” Ethan sentiu o estômago virar. “Quem?” “O padeiro. Wallace.” Eles foram juntos. O corpo estava no pátio da escola, cercado por uma dúzia de curiosos que olhavam de longe, temendo se aproximar. A cena era quase idêntica: metade do corpo normal, a outra marcada pelas mesmas espirais. Mas desta vez, havia algo mais. As marcas pareciam frescas, como se ainda estivessem vivas. Sarah chegou logo depois, os olhos marejados. “Isso é um padrão, Ethan. Ela está escolhendo. Um de cada vez. Sempre alguém que se aproxima da água.” Ele olhou ao redor, a mente fervendo. As marcas, os símbolos, os locais… tudo formava um mapa. Um círculo invisível que se fechava ao redor da cidade. E ele estava no centro. Henry apareceu novamente, o olhar cansado, a voz rouca. “O medo é o combustível. As mortes são o sacrifício. O selo se enfraquece. Ela está abrindo caminho, um corpo por vez.” Ethan apertou o diário contra o peito. “Então o selo não está apenas quebrando. Está sendo substituído. Ela está criando outro. Um feito de nós.” O velho assentiu lentamente. “Um selo de carne.” O vento soprou forte, e o som do lago veio mais claro, mais próximo. Um estalo. Depois outro. E então o sussurro, firme, nítido, dentro da cabeça de Ethan: "O medo é teu sangue. E o sangue é minha voz." Ethan fechou os olhos, o corpo tremendo. A criatura falava através dele agora. E ele sabia o que isso significava. A barreira entre Darrow’s Hollow e o que dormia sob o lago estava se desfazendo… e o próximo corpo poderia ser o dele. O céu começou a mudar de cor antes do fim da tarde. O azul se dissolvia em um cinza esverdeado que fazia o lago parecer metal líquido. Nenhum pássaro cantava. Até os cães haviam parado de latir. Ethan estava de volta na casa da mãe, o diário sobre a mesa, as mãos trêmulas. Tentava reler as últimas páginas, mas as letras pareciam se mover no papel, as linhas se retorcendo como se o livro respirasse. Ele fechou os olhos por um instante e, quando os abriu, jurou ver uma sombra projetada na parede, uma forma humana, mas sem rosto. O som veio primeiro como um eco distante, o mesmo ruído que ouvira nas margens do lago: um estalo grave, seguido de um sopro úmido, irregular. Sarah entrou apressada. “Tem algo errado com o ar… Está pesado, como antes da tempestade.” Ethan balançou a cabeça. “Não é uma tempestade.” Do lado de fora, as ruas estavam desertas. A neblina cobria as casas até metade das janelas. Luzes piscavam. As árvores rangiam sem vento. A cidade inteira parecia prender a respiração. Eles foram até a praça central. Lá, o sino da igreja soava sozinho, em intervalos regulares, sem ninguém na torre. Henry Calder os encontrou perto dos degraus, apoiado na bengala, o olhar vazio. “O medo chegou ao ponto que ela precisava” disse. “Agora, o que dormia pode chamar o que é seu.” Ethan se aproximou. “O que isso quer dizer?” Henry levantou o dedo trêmulo em direção ao lago. “Escute.” O som vinha de todos os lados, da água, da terra, do vento. Era como se a cidade inteira murmurasse ao mesmo tempo. Entre as vozes, uma se destacava, profunda, lenta, familiar: "O sangue desperta. O selo abre. O medo fala." Sarah tapou os ouvidos, mas o som estava dentro da cabeça, não fora. Ethan sentiu o chão vibrar sob os pés. O diário, ainda em suas mãos, começou a pulsar. As páginas se abriram sozinhas, revelando uma nova inscrição, escrita em sangue seco: “Quando o olho se abrir, o reflexo tomará forma.” Uma onda atravessou o lago, alta o suficiente para alcançar a rua. A água invadiu a praça, avançando por baixo das portas. As luzes da cidade se apagaram uma a uma. E então, silêncio. Por um segundo, parecia que nada aconteceria. Mas da água ergueu-se um corpo. Primeiro o topo da cabeça, depois o rosto, depois os ombros. Não era um corpo comum — era o de Wallace, o padeiro, o mesmo que haviam enterrado pela manhã. Ele ficou de pé, imóvel, o olhar vazio. A pele coberta pelas mesmas espirais brilhantes. Ethan deu um passo atrás. “Meu Deus…” Sarah prendeu o fôlego. O corpo se virou lentamente em direção à cidade, e quando abriu a boca, não saiu som humano — apenas o rugido da água e o sussurro das vozes. Outras figuras começaram a emergir ao redor dele. Rostos conhecidos. Rostos mortos. A criatura usava o medo deles para moldar corpos, rostos, lembranças. Era o medo tomando carne. Henry caiu de joelhos, o rosto banhado de lágrimas. “Ela atravessou.” Ethan sentiu o mundo girar. O lago não era mais uma fronteira. Era uma boca aberta, respirando, faminta. E Darrow’s Hollow, agora, era parte dela. O sussurro final ecoou por toda a cidade, e Ethan soube que era apenas para ele: "O olho vê o sangue. E o sangue vê o lago." As luzes da cidade se apagaram de vez. E a água começou a subir.
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