A neblina cobria a cidade como um lençol vivo.
Os sinos da igreja ainda ecoavam, longos, graves, distorcidos, enquanto o som da água se misturava ao vento, criando um murmúrio constante — como se o lago sussurrasse o nome de cada habitante de Darrow’s Hollow.
Ethan e Sarah não dormiram.
Permaneceram diante da janela, observando a neblina rastejar pelas ruas, cobrindo os postes e as casas da margem.
De vez em quando, algo se movia dentro dela — vultos, silhuetas indistintas, passos arrastados.
Mas toda vez que Ethan tentava focar, nada restava além de névoa e silêncio.
Ao amanhecer, o primeiro grito ecoou pela cidade.
Veio da direção do lago.
Um som agudo, humano, desesperado.
Ethan e Sarah correram pela estrada molhada, com o vento frio cortando o rosto.
Quando chegaram à margem, Tom Grady já estava lá, parado, imóvel, olhando para algo na areia.
O xerife estava pálido, os olhos arregalados, o rosto sem cor.
Atrás dele, dois homens cobriam a boca, tentando não vomitar.
O corpo estava estendido parcialmente dentro d’água, como se tivesse sido devolvido pelo lago.
Era o pai de Danny Harper.
Metade do corpo estava normal, mas o outro lado — o lado que tocava a água — parecia... transformado.
A pele era pálida, translúcida, com marcas em espiral que pulsavam como veias luminosas.
Os olhos estavam abertos, fixos no céu, e na boca havia lama, musgo e algo mais — algo vivo, que se movia lentamente, como uma pequena criatura aquática.
Sarah deu um passo para trás, horrorizada.
“Meu Deus…”
Tom engoliu em seco. “Acho que ele foi até o lago, procurando o filho. E… ela o encontrou primeiro.”
Ethan se ajoelhou, o coração acelerado, examinando as marcas.
Eram idênticas às do diário.
Símbolos de invocação e domínio.
A criatura havia marcado o corpo como se fosse parte de um ritual.
Henry Calder chegou pouco depois, arrastando o bastão pela lama.
“É o início” disse, com voz rouca. “Ela começou a tomar forma física. Precisa de um corpo para se ancorar neste lado. Este… é o primeiro.”
Tom olhou para o velho, furioso. “Você fala disso como se fosse inevitável!”
Henry o encarou sem emoção. “É. Porque é.”
O vento soprou forte, levantando pequenas ondas.
E então Ethan percebeu algo — as marcas na areia ao redor do corpo.
Padrões circulares, idênticos aos do diário, desenhados em torno do cadáver.
Mas o que o fez gelar foi o centro do círculo.
Ali, onde o corpo havia sido deixado, a areia estava afundada — como se algo tivesse emergido de dentro, e não vindo de fora.
Sarah percebeu também. “Ela não o trouxe. Ela o empurrou de dentro da terra.”
Ethan se levantou lentamente, os olhos fixos na água.
“O ciclo começou.”
Tom recuou, olhando em volta. “O que quer dizer?”
Ethan o fitou, sério. “Cada morte, cada marca, cada corpo… é um aviso. Ela está subindo. E quanto mais medo existir na cidade, mais fácil será atravessar completamente.”
Henry apontou o bastão para o lago.
“E quando ela atravessar, não haverá volta.”
Um som profundo ecoou — uma vibração grave, subterrânea, que fez a areia tremer.
A água do lago se moveu, lenta e densa, formando um redemoinho.
E no centro dele, por um instante, Ethan viu — ou acreditou ver — algo emergir.
Uma superfície n***a, úmida, coberta de olhos.
O olhar fixo nele.
O olhar de algo que o conhecia.
Ele cambaleou para trás, o coração disparado.
Sarah o segurou.
“Você viu, não viu?”
Ethan respirou com dificuldade. “Ela me viu também.”
O redemoinho desapareceu, e o lago voltou a ficar calmo.
Mas o silêncio que se seguiu não era paz.
Era expectativa.
Tom olhou para Ethan. “O que fazemos agora?”
Ethan limpou o rosto, ainda pálido.
“Agora… precisamos entender o diário completamente. As pistas, os selos, o que ainda resta do ritual. Se não encontrarmos uma forma de contê-la, Darrow’s Hollow vai se tornar parte dela.”
Henry se virou, começando a subir o barranco.
“O medo é a linguagem dela, Ethan Cole. E a cidade já aprendeu a falar.”
O vento soprou mais forte, trazendo novamente o cheiro metálico da água e um sussurro baixo, quase imperceptível, que só Ethan pareceu ouvir:
"Você é o sangue. Você é a porta."
E naquele instante, ele entendeu — a primeira morte era apenas o início da invasão.
E a criatura não planejava mais dormir.
O corpo foi levado para o necrotério improvisado na prefeitura.
Ninguém quis ajudar a carregá-lo.
Mesmo coberto, a simples presença daquele cadáver parecia pesar o ar, como se algo invisível o seguisse, como se o lago tivesse deixado parte de si preso à pele do homem.
Ethan observava de longe, os olhos fixos no pano que cobria o corpo.
Aquela metade humana e metade deformada parecia mais um aviso do que uma vítima.
Sarah permanecia próxima, sem falar.
A cidade toda sabia, agora.
O medo não era mais rumor — era realidade.
No fim da tarde, quando os gritos cessaram e o vento voltou a soprar do lago, as ruas ficaram vazias.
Cães latiam para o nada.
Janelas batiam mesmo sem vento.
E os postes pareciam piscar em sincronia com o pulsar invisível que vinha das águas.
Henry apareceu novamente, o rosto ainda mais cansado, a bengala afundando na lama molhada.
“Não é a primeira vez que Darrow’s Hollow vê isso” disse.
Ethan o encarou. “Está dizendo que já aconteceu antes?”
“Sim. Em 1887, o lago engoliu metade da vila. Corpos foram encontrados da mesma forma, marcados. O selo foi restaurado com sangue, o sangue dos Cole.”
Ethan respirou fundo, sentindo um calafrio percorrer-lhe o corpo.
“E se eu me recusar a repetir o que foi feito?”
Henry o olhou, grave. “Então ela atravessará por completo. O medo será tudo que restará desta cidade.”
Sarah interveio. “Não pode haver outra forma. Precisa haver.”
O velho balançou a cabeça. “Toda força antiga cobra um preço. Sempre foi assim.”
O silêncio se instalou, pesado, até que o som das águas quebrou a imobilidade.
Um barulho distante, um estalo grave, depois outro, depois o mesmo suspiro úmido que Ethan ouvira semanas antes.
O lago estava respirando.
E cada expiração parecia se aproximar mais da cidade.
Naquela noite, ninguém dormiu.
Ethan ficou sozinho na casa da mãe, sentado na sala, o diário aberto sobre a mesa.
As páginas tremiam com o vento que entrava pelas frestas, mas ele jurava ouvir um som mais baixo, mais íntimo.
Um sussurro que vinha de dentro do próprio livro.
"O sangue dorme em ti. Acorde-o, e o selo renasce."
Ele fechou os olhos, tentando afastar as palavras.
Mas algo dentro dele pulsava — um ritmo que não era seu.
O mesmo compasso que vinha do lago.
Do lado de fora, a neblina se movia com vida própria.
Sombras atravessavam as ruas.
Algumas eram humanas. Outras não.
*************
Na manhã seguinte, a cidade acordou diferente.
Ninguém falava alto.
As lojas não abriram.
Apenas o sino da igreja soava, lento, espaçado, como um lembrete de que ainda havia tempo — pouco, mas havia.
Tom apareceu à porta de Ethan, com olheiras fundas e o olhar perdido.
“Mais um” disse. “Encontraram outro corpo. Perto da escola.”
Ethan sentiu o estômago virar. “Quem?”
“O padeiro. Wallace.”
Eles foram juntos.
O corpo estava no pátio da escola, cercado por uma dúzia de curiosos que olhavam de longe, temendo se aproximar.
A cena era quase idêntica: metade do corpo normal, a outra marcada pelas mesmas espirais.
Mas desta vez, havia algo mais.
As marcas pareciam frescas, como se ainda estivessem vivas.
Sarah chegou logo depois, os olhos marejados. “Isso é um padrão, Ethan. Ela está escolhendo. Um de cada vez. Sempre alguém que se aproxima da água.”
Ele olhou ao redor, a mente fervendo.
As marcas, os símbolos, os locais… tudo formava um mapa.
Um círculo invisível que se fechava ao redor da cidade.
E ele estava no centro.
Henry apareceu novamente, o olhar cansado, a voz rouca. “O medo é o combustível. As mortes são o sacrifício. O selo se enfraquece. Ela está abrindo caminho, um corpo por vez.”
Ethan apertou o diário contra o peito.
“Então o selo não está apenas quebrando. Está sendo substituído. Ela está criando outro. Um feito de nós.”
O velho assentiu lentamente.
“Um selo de carne.”
O vento soprou forte, e o som do lago veio mais claro, mais próximo.
Um estalo.
Depois outro.
E então o sussurro, firme, nítido, dentro da cabeça de Ethan:
"O medo é teu sangue. E o sangue é minha voz."
Ethan fechou os olhos, o corpo tremendo.
A criatura falava através dele agora.
E ele sabia o que isso significava.
A barreira entre Darrow’s Hollow e o que dormia sob o lago estava se desfazendo… e o próximo corpo poderia ser o dele.
O céu começou a mudar de cor antes do fim da tarde. O azul se dissolvia em um cinza esverdeado que fazia o lago parecer metal líquido. Nenhum pássaro cantava. Até os cães haviam parado de latir.
Ethan estava de volta na casa da mãe, o diário sobre a mesa, as mãos trêmulas. Tentava reler as últimas páginas, mas as letras pareciam se mover no papel, as linhas se retorcendo como se o livro respirasse. Ele fechou os olhos por um instante e, quando os abriu, jurou ver uma sombra projetada na parede, uma forma humana, mas sem rosto.
O som veio primeiro como um eco distante, o mesmo ruído que ouvira nas margens do lago: um estalo grave, seguido de um sopro úmido, irregular.
Sarah entrou apressada. “Tem algo errado com o ar… Está pesado, como antes da tempestade.”
Ethan balançou a cabeça. “Não é uma tempestade.”
Do lado de fora, as ruas estavam desertas. A neblina cobria as casas até metade das janelas. Luzes piscavam. As árvores rangiam sem vento.
A cidade inteira parecia prender a respiração.
Eles foram até a praça central. Lá, o sino da igreja soava sozinho, em intervalos regulares, sem ninguém na torre. Henry Calder os encontrou perto dos degraus, apoiado na bengala, o olhar vazio.
“O medo chegou ao ponto que ela precisava” disse. “Agora, o que dormia pode chamar o que é seu.”
Ethan se aproximou. “O que isso quer dizer?”
Henry levantou o dedo trêmulo em direção ao lago. “Escute.”
O som vinha de todos os lados, da água, da terra, do vento. Era como se a cidade inteira murmurasse ao mesmo tempo.
Entre as vozes, uma se destacava, profunda, lenta, familiar:
"O sangue desperta. O selo abre. O medo fala."
Sarah tapou os ouvidos, mas o som estava dentro da cabeça, não fora. Ethan sentiu o chão vibrar sob os pés. O diário, ainda em suas mãos, começou a pulsar. As páginas se abriram sozinhas, revelando uma nova inscrição, escrita em sangue seco:
“Quando o olho se abrir, o reflexo tomará forma.”
Uma onda atravessou o lago, alta o suficiente para alcançar a rua. A água invadiu a praça, avançando por baixo das portas. As luzes da cidade se apagaram uma a uma.
E então, silêncio.
Por um segundo, parecia que nada aconteceria.
Mas da água ergueu-se um corpo.
Primeiro o topo da cabeça, depois o rosto, depois os ombros.
Não era um corpo comum — era o de Wallace, o padeiro, o mesmo que haviam enterrado pela manhã.
Ele ficou de pé, imóvel, o olhar vazio. A pele coberta pelas mesmas espirais brilhantes.
Ethan deu um passo atrás. “Meu Deus…”
Sarah prendeu o fôlego.
O corpo se virou lentamente em direção à cidade, e quando abriu a boca, não saiu som humano — apenas o rugido da água e o sussurro das vozes.
Outras figuras começaram a emergir ao redor dele. Rostos conhecidos. Rostos mortos.
A criatura usava o medo deles para moldar corpos, rostos, lembranças.
Era o medo tomando carne.
Henry caiu de joelhos, o rosto banhado de lágrimas. “Ela atravessou.”
Ethan sentiu o mundo girar.
O lago não era mais uma fronteira. Era uma boca aberta, respirando, faminta.
E Darrow’s Hollow, agora, era parte dela.
O sussurro final ecoou por toda a cidade, e Ethan soube que era apenas para ele:
"O olho vê o sangue. E o sangue vê o lago."
As luzes da cidade se apagaram de vez.
E a água começou a subir.